Artigo Destaque dos editores

Das dificuldades da aplicação do direito perante o poder dos bancos no atual governo brasileiro:

anatocismo institucionalizado

01/10/2000 às 00:00
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DO CONTEXTO HISTÓRICO QUE NORTEOU A ATUAL CARTA

Se retrocedermos no tempo para realizar uma análise dos fundamentos das normas jurídicas constitucionais e o contexto em que foram editadas poderemos, somente então, sentirmos o espírito da Lei e a vontade do legislador constitucional.

O Estado de Direito, hoje, no Brasil, existe na estreita dependência da vontade de um único Poder, o Poder Executivo. Isto leva a um profundo desequilibrio dos princípios basilares tanto da República, quanto da Democracia. A equação fica: Legislativo e Executivo editam as normas "jurídicas", que somente após o exame e interpretação pelo STF, são consideradas "em vigor" , não importando a clareza da legislação. Isto, vale dizer, que o nosso Estado de Direito reforça o Estado e enfraquece, ou anula, o Direito.

O ideário da Revolução Francesa, embasado no governo do povo para o povo, e na conseqüente e indispensável independência absoluta entre os Três Poderes, se estabeleceu quando a insuportável situação social exigia uma nova ordem não opressora que permitisse, aos homens e mulheres, o reconhecimento de sua cidadania.

O desenvolvido sentido de autoritarismo que deixou enormes cicatrizes em nossa história, durante o regime da ditadura militar que comandou os anos "dourados", idealizou o Decreto Lei que deu suporte ao absolutismo ditatorial que ainda hoje, embora de forma dissimulada, se faz presente travestido de diploma legal na figura lamentável da Medida Provisória.

No discurso de promulgação da atual Carta Magna, um certo brasileiro chamado Ulisses Guimarães, Presidente da Assembléia Nacional Constituínte, chamou-a de "A Constituição Cidadã ".

Cidadã, porque voltada para atender aos anseios de um povo que tinha visto subtraída a sua liberdade, por quase trinta anos, e que foi subjulgado pelas forças do poder à cega obediência, ou à muda resistência.

Foi nesse contexto histórico, com este espírito de cidadania e liberdade, que os legisladores constituíntes da época, plenos do espírito da reconquista do Estado de Direito em seu país, editaram a Lei Maior da Nação Brasileira, em 1988 .

É na exata medida, a do respeito à esta norma mãe brasileira, que o cidadão vê respeitado e resguardado o seu próprio direito, sua dignidade e sua cidadania.

O conceito de justiça se baseia em uma única premissa: No equilíbrio das relações tuteladas pelo direito.

É com fundamento neste equilíbrio que é viabilizada a convivência harmônica entre os tutelados pelas normas de direito; portanto, tudo o que foge deste equilíbrio é tendencioso e mau. Mau, no sentido jurídico da palavra, naquele sentido que envolve a má-fé ou a boa-fé.

Nosso legislador constituínte deu preferência aos atos de boa-fé.

Naquele contexto histórico de ufanismo, de amor à pátria, de reconquista do Estado de Direito em que as normas constitucionais foram editadas, era absolutamente impossível cogitar-se qualquer possibilidade de manipulação futura, contra o real sentido das regras nascidas naquele contexto histórico e contidas na sagrada Carta Magna desta Nação.

Isto é verdadeiro, pois esta Constituição se inicia apontando como seus fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana, comprovando a sua razão de ser na garantia dos direitos e garantias individuais dos cidadãos:


DO SENTIDO DE PREVALÊNCIA DAS NORMAS MAIORES

"Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;"

A Lei Maior, em seu artigo 3º, dispõe:

Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

No Capítulo que contempla os Direitos e Garantias Individuais, no artigo 5º e seus incisos, temos:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

...

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação

...

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

...

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Sabemos que, nenhuma norma legal pode ser interpretada isoladamente, fora do sistema jurídico e, muito menos, ser admitida quando estiver em conflito direto com as maiores normas jurídicas que regem as relações do país, expressadas na Carta Magna.

Assim,nesta esteira de raciocínio todos os atos que atentarem contra os direitos elencados na Constituição da República devem ser simplesmente repudiados não sendo acolhidos sob nenhum pretexto, pois há risco de que, tal prática se torne regra, ensejando violação da nobreza dos princípios da Lei maior deste país, arrastando, neste correnteza, o Estado de Direito tão duramente reconquistado pelo povo brasileiro.


DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS X SISTEMA FINANCEIRO

Ao admitir-se a liberação dos juros aplicados pelas instituições de crédito neste país, sejam eles " reais" ou "irreais", como ora se propõe, estaremos admitindo o tratamento desigual, vedado pela própria Carta Magna.

Ao agirmos desta forma estaremos desprezando as normas constitucionais brasieiras.

Podemos afirmá-lo diante do simples cotejo, entre os argumentos daqueles que são favoráveis à "não auto-aplicabilidade do § 2º, do art. 192 da Constituição", com os artigos retrocitados, por ser inadimissível que convivam, simultaneamente, no mesmo país, um sistema financeiro nacional que remunera a Caderneta de Poupança com juros menores do que 1% ao mês, taxas e índices mensais de correção com percentuais equivalentes ao da poupança, e instituições de crédito e financeiras que cobrem juros que chegam à casa dos 350% anuais...

Se não bastasse tal argumento, por parecer estapafúrdio aos olhos dos diretamente interessados, podemos elevar nossos olhos para os direitos e garantias individuais capitulados no artigo 5º da Carta Magna para vermos que:

1. Como poderia ser acolhida a tese de que a União se fundamenta na Dignidade da Pessoa Humana (artigo 1º), quando o mesmo cidadão que tem seu salário congelado por anos e sua poupança remunerada na forma atual, é o mesmo que, compelido pelo sistema na busca do crédito, é sugado pelos juros que chegam até a 350% ao ano?

2. Como pode ser acolhida a proposta do anatocismo praticado pelas instituições de crédito e financeiras, com juros que configuram literalmente a usura, criminalizada em nossa legislação e na das nações democráticas e civilizadas, quando em vigor a norma do artigo 3º da Carta Brasileira que diz, ter a República Federativa do Brasil, como objetivos fundamentais "construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais ?

3. Como poderá prosperar a tese dos juros livres, se comparada à realidade brasileira consideradas as normas de proteção, estatuídas no artigo 5º da Constituição?

"Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

...

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação

...

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

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Não estarão sendo considerados, os cidadãos brasileiros, como "les uns", enquanto "les autres" são as instituições financeiras e de crédito?

Onde estã o respeito aos princípios constitucionais que determinam os direitos e garantias apontados?

É possível, é jurídico, é de Direito que o mesmo cidadão que recebe seu salário sem correção há anos, na busca de honrar seus compromissos, esteja sendo obrigado a pagar estes empréstimo com juros de agiotagem?

Não estaria sendo ele submetido a tratamento desumano e degradante, como proíbe e a Carta Constitucional?

Este mesmo cidadão não estaria sendo violado em sua honra, em sua imagem, por ser impossível mantê-las diante de tal situação pois é compelido, pelo próprio governo de seu país , a abrir mão dos seus direitos e vedado de postular a competente indenização pelos danos materiais ou morais decorrentes.

Quando o legislador constitucional, no desempenho de sua competência, estabeleceu normas para o Sistema Financeiro Nacional, no artigo 192, determinou que sua estruturação devia promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade:

Como se pode argumentar que haverá desenvolvimento equilibrado e atendimento aos interesses da coletividade, com este fosso de desequilíbrio de tratamento entre as instituições financeiras ( serão elas a "coletividade"?) e os cidadãos desta nação, em termos de juros?


DAS EXIGÊNCIAS CONSTITUCIONAIS PARA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

A Carta Magna determina:

Art. 192 - O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:

...

§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.

A manipulação jurídica da norma constitucional, que se apoia sobre a palafita de que os juros não foram regulamentados é tendenciosa e inconsistente pois, a própria Carta define quais juros não poderão ser superiores a 12% ao ano, dizendo que as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão do crédito, como podemos verificar aí se incluem todas as remunerações capazes de se embutir como "juro".

A Carta, na proteção do desenvolvimento equilibrado do país, e do serviço aos interesses da coletividade, exige a obediência ao equilíbrio entre os valores tomados como empréstimo, acrescidos da compensação financeira paga pelo custo real do dinheiro, e aquele que será retornado ao credor, de forma diferente deste custo hoje cobrado, imperialmente imposto pelas próprias instituições financeiras e de , em seu próprio favor, que foge à similariedade com todas as outras remunerações compensatórias, pagas ao aplicador normal.

Tal argumentação , por si só, bastaria. No entanto ainda devemos obediência ao próprio "caput" do artigo 192, que limita a regulamentação do Sistema Financeiro Nacional à lei complementar e nenhum outro diploma, que não contenha a sua força e legitimidade.

A própria Lei de Introdução ao Código Civil, parte integrante do sistema jurídico nacional, estabelece que quando em determinado prazo, o legislador não regulamenta certo dispositivo legal, este estará em pleno vigor.

Perguntamos: Nossa Carta Magna estará no terreno das hipóteses há 12 anos? Sete, além dos costumeiros prazos decadenciais e prescricionais deste país?

Considerando os argumentos relatados, devemos continuar nos pronunciando pela prevalência das normas constitucionais às interpretações contrárias ao melhor entendimento do direito e do bem estar dos cidadãos, sugerindo que não se acolha outras ponderações diversas das contidas no espírito da Carta Magna Brasileira.

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Sobre a autora
Elza Alinde Miranda Cardoso

advogada, ex-assessora da Casa Civil do Estado do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Elza Alinde Miranda. Das dificuldades da aplicação do direito perante o poder dos bancos no atual governo brasileiro:: anatocismo institucionalizado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/721. Acesso em: 22 nov. 2024.

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