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A promessa ou a distribuição de prêmios, mediante sorteios, vale-brindes, concursos ou operações assemelhadas pelas organizações da sociedade civil (OSCs)

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24/06/2019 às 18:48
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2. As disposições em questão são de fato inovadoras com relação ao nosso ordenamento jurídico? Caso contrário, produzem alguma antinomia?

Necessário, então, delimitar as espécies de jogos e apostas que as OSCs podem realizar com base no novo permissivo legal.

Como visto, os conceitos de sorteios, loterias e jogos de azar, embora distintos, estão interligados.

O conceito jurídico de “sorteios” possui duas acepções: i) a primeira, derivada de norma constitucional é mais ampla e engloba as loterias, os jogos de azar e similares; ii) a segunda, mais restrita, se refere à modalidade de obtenção do resultado de jogos e apostas em que prevalece a distribuição de elementos sorteáveis e escolha aleatória do ganhador.

As loterias são espécies de jogos ou apostas que dependem de sorteios. Os jogos de azar, englobam os sorteios, as loterias e outros jogos (com ou sem sorteio), que tenham a sorte como fator único ou primordial na apuração do resultado.

Com relação aos vale-brindes, concursos e operações assemelhadas, no grande universo legal pertinente aos sorteios no país, já existem os chamados sorteios filantrópicos. 

Os sorteios em referência estão previstos no art. 4º[10] da Lei n. 5.768/1971, verbis:

Art. 4º Nenhuma pessoa física ou jurídica poderá distribuir ou prometer distribuir prêmios mediante sorteios, vale-brinde, concursos ou operações assemelhadas, fora dos casos e condições previstos nesta lei, exceto quando tais operações tiverem origem em sorteios organizados por instituições declaradas de utilidade pública em virtude de lei e que se dediquem exclusivamente a atividades filantrópicas, com fim de obter recursos adicionais necessários à manutenção ou custeio de obra social a que se dedicam

A exceção prevista no dispositivo legal em tela tem como objeto a promessa ou distribuição de prêmios por meio de vale-brindes, concursos e operações assemelhadas, desde que tais operações se originem de sorteios; como destinatário instituições declaradas de utilidade pública em virtude de lei que se dediquem exclusivamente a atividades filantrópicas, e; como finalidade a obtenção de recursos adicionais necessários à manutenção ou custeio de obra social a que se dedicam.

Já a norma prevista no art. 84-B, III da Lei n. 13.019/2014 é destinada às OSCs que cumpram os requisitos do art. 84-C; tem como objeto a promessa ou distribuição de prêmios através dos sorteios, vale-brindes, concursos e operações assemelhadas, e; como finalidade a arrecadação de recursos adicionais destinados à sua manutenção ou custeio.

Decerto, tratam-se de normas jurídicas totalmente distintas em seu conteúdo, a começar pelos destinatários da norma.

Em 1972 não havia ainda sido criado e instituído o conceito de Organização da Sociedade Civil, que abrange muito mais entidades do que apenas as "instituições declaradas de utilidade pública em virtude de lei", que se "dediquem exclusivamente a atividades filantrópicas."

Há de se ressaltar, oportunamente, que o Título de Utilidade Pública Federal, fundamentado na Lei nº 91 de 1935, foi extinto com a revogação da mencionada lei pelo art. 9º, I da Lei n. 13.204/2015Não existe mais em nosso ordenamento jurídico a figura do Título de Utilidade Pública Federal, afigurando-se, porquanto, ilegal a referida exigência.

Ademais, a previsão contida no art. 84-B, III, da Lei n. 13.019/2014 se aplica independentemente de certificação, valendo a ressalva para o título de UPF e também para o demais títulos e certificados, como, por exemplo, o título de OSCIP e o Certificado de Entidade Beneficente e de Assistência Social – CEBAS.

Quanto à exclusividade na dedicação a atividades filantrópicas, entende-se por atividades filantrópicas aquelas de assistência social que não exigem do beneficiado nenhuma contraprestação, vale dizer, são totalmente gratuitas[11].

Essas entidades são legalmente reconhecidas, vale lembrar, por meio de cadastro no Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS e do CEBAS[12].

As entidades filantrópicas, embora possam se enquadrar no amplo conceito de OSC, o atual permissivo legal não se limita a tais destinatários, incluindo-se na hipótese as outras entidades (não filantrópicas) também enquadradas como OSCs.

Incontestável, nesse sentido, que os destinatários das referidas normas são completamente distintos e os respectivos objetos igualmente o são.

Na antiga lei, permitia-se a distribuição de prêmios por meio de vale-brindes, concursos e operações assemelhadas, desde que tais operações se originassem em sorteios (tiverem origem em sorteios, na redação do art. 4º da Lei n. 5.768/71).

A nova previsão não faz essa restrição. Os sorteios (espécie) não são condição necessária para a distribuição dos prêmios.

Quanto às finalidades, essas são de fato semelhantes, mas não são idênticas. Se referem à obtenção/arrecadação de recursos adicionais pelas entidades para a manutenção ou custeio: i) de obra social a que se dedicam (lei n. 5.768/71), e; ii) de suas despesas em geral (lei n. 13.019/14).

Nesse raciocínio, a regra instituída pelo art. 84-B, III, da Lei n. 13.019/14 é uma norma jurídica inovadora, com conteúdo diverso de qualquer outra norma pertinente à matéria em vigor no país.

Não se vislumbra, logo, nenhuma antinomia ocasionada pela entrada em vigor da nova norma. Aplica-se ao caso a regra insculpida no art. 2º, § 2º da LINDB, abaixo transcrita:

Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

[...]

§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

As referidas normas, distintas por natureza, integram o ordenamento jurídico em vigor, produzindo, cada qual, seus peculiares efeitos, inexistindo qualquer espécie de conflito entre as mesmas.

Ainda com relação às antinomias, muito embora a nova regra não seja conflitante com a prevista na Lei n. 5.768/71, vale ressaltar a antinomia clássica na qual se fundamenta a possiblidade da realização de loterias e jogos de azar em todo o território nacional.

Como cediço, tanto os jogos de azar como as loterias são consideradas contravenções penais pelo ordenamento em vigor. Esse enquadramento encontra palco no art. 50, art. 51 do Decreto-lei n. 3.688/41 e art. 40 do Decreto-lei n. 6.259/44, acima citados.

Com relação à exploração das loterias, tendo em vista as disposições do Decreto-lei n. 204/67, entende-se haver uma derrogação das normas do direito penal que proíbem os jogos de azar, razão pela qual a referida exploração é admitida.

Assim está disposto na norma contida no art. 1º do supracitado diploma legal:

Art. 1º A exploração de loteria, como derrogação excepcional das normas do Direito Penal, constitui serviço público exclusivo da União não suscetível de concessão e só será permitida nos termos do presente Decreto-lei.

Fácil vislumbrar que a exploração de loterias, segundo determina o dispositivo legal acima, é um serviço público exclusivo da União, admitida por meio da derrogação das normas do direito penal.

O STF entende que essa deve ser a interpretação aplicável ao caso, deixando claro o seu posicionamento quando do julgamento da ADI n. 2.847-2.

Outras espécies de sorteios, que não as loterias, são permitidas pelo ordenamento jurídico em vigor, desde que instituídos por lei especial destinada a tal fim, conforme preceitua o art. 51, § 3º da Lei de Contravenções Penais (§ 3º Não se compreendem na definição do parágrafo anterior os sorteios autorizados na legislação especial).

Daí porque os sorteios promocionais e filantrópicos realizados com fulcro na Lei n. 5.768/71, bem como os previstos na Lei n. 13.019/14, não repercutem na derrogação de leis penais. Não são considerados pelo ordenamento como espécie de loterias.

Nesse caso, a exploração de tais atividades não poussui natureza de serviço público, mas sim de atividade econômica.

São atividades econômicas voltadas à manutenção e o custeio das entidades referidas, legalmente autorizadas[13] pela União, único ente competente para legislar sobre a matéria.

Acerca da afirmação supra, traz-se à baila trecho do raciocínio do Exmo. Min. Eros Grau, em seu voto no julgamento da ADI n. 2.847-2 DF, abaixo transcrito:

[...]

Ela vai a esse campo da atividade econômica ilícita, que não é nem o da atividade licita, nem o do serviço público, e retira dele uma parcela dela. A lei federal poderá fazê-lo, para inserir, fazer migrar essa parcela da atividade econômica ilícita seja para o campo do serviço público, seja para o campo da atividade econômica em sentido estrito. Fez com as loterias, no Decreto n° 204, e disse que a exploração de loteria deixava de ser ilícita, passava a ser licita, consubstanciando serviço público. Mas fez de modo diverso na Lei Pelé e na Lei Zico, quando a trouxe não para o campo do serviço público, mas, sim, para o campo da "atividade econômica em sentido estrito".

Desse modo, a Lei n. 13.019/14, assim como o fez a Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé), adentra ao ordenamento jurídico sem qualquer conflito com outra norma jurídica, de natureza penal ou não, tendo em vista se tratar de legislação especial, hipótese em que se aplica o art. 51, § 3º da Lei de Contravenções Penais, sendo que as operações em questão não são consideradas espécies de loterias.


3. Existe algum ente ou órgão previamente competente a regular a distribuição ou promessa de distribuição de prêmios prevista pela Lei n. 13.019/14?

O questionamento acima é de suma importância prática, visto que se refere à necessidade de prévia autorização administrativa para que as OSCs fruam da permissão legal estabelecida pelo novo diploma legal.

No sítio eletrônico da Caixa Econômica Federal[14] consta a seguinte informação:Sorteio Filantrópico é modalidade de distribuição de prêmio, na qual é emitida série de bilhetes numerados, distribuídos concomitantemente, aleatória e equitativamente, cujos contemplados são definidos exclusivamente com base no resultado das extrações da Loteria Federal.

Conforme disposto no artigo 4º da Lei nº 5768/71 e artigo 84-B da Lei nº 13.019/14, as Organizações da Sociedade Civil, assim consideradas as entidades privadas sem fins lucrativos, as sociedades cooperativas e as organizações religiosas, podem realizar sorteio filantrópico, sendo, no entanto, imprescindível a obtenção da autorização prévia da Caixa.

O benefício tratado acima pode ser concedido a todas as entidades privadas sem fins lucrativos, sociedades cooperativas e organizações religiosas, desde que apresentem em seus objetivos sociais, pelo menos, uma das finalidades previstas no artigo 84-C da Lei nº 13.019/14.

A competência para autorização de sorteios filantrópicos por instituição beneficente é exclusiva da Caixa.

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A referida empresa pública, como visto, entende que: i) os sorteios filantrópicos englobam a distribuição de prêmios pelas OSCs; ii) que, para a realização da distribuição de prêmios, as OSCs devem obter autorização prévia da CEF.

A fortiori, merece destaque a entrada em vigor da Lei n. 13.756/2018, que, dentre outras disposições, revogou os §§ 1º a 3º do art. 18-B da Lei no 9.649[15], de 27 de maio de 1998 e retirou da CEF a competência para a operacionalização, a emissão das autorizações e a fiscalização dos sorteios filantrópicos.

Essa competência, atualmente, é exclusiva do Ministério da Fazenda, conforme estipulado no art. 26 da Lei n. 13.756/2018, ora reproduzido:

Art. 26. Ressalvadas as competências do Conselho Monetário Nacional, são de responsabilidade do Ministério da Fazenda as atribuições inerentes ao poder público estabelecidas na Lei no 5.768, de 20 de dezembro de 1971.

§ 1o Em razão do disposto no caput deste artigo, ficam sob responsabilidade do Ministério da Fazenda a análise dos pedidos de autorização, a emissão das autorizações e a fiscalização das operações de que trata a Lei nº 5.768, de 20 de dezembro de 1971.

Fácil observar que o mencionado dispositivo não incluiu dentre as competências do Ministério da Fazenda a autorização para a distribuição de prêmios pelas OSCs, vez que a Lei n. 13.019/14 não é mencionada no texto legal. Isso porque, conforme exposto, as operações são distintas, fundamentadas em diferentes normas jurídicas, não sendo possível confundi-las.

Os sorteios filantrópicos, aqueles fundamentados no art. 4º da Lei n. 5.768/1971, foram originalmente previstos sob a competência do Ministério da Fazenda, nos termos do § 1º[16] do citado artigo. Posteriormente, com a entrada em vigor da Medida Provisória nº 2.216-37, de 31 de agosto de 2001, essa competência foi atribuída à CEF, e, em 2018, novamente devolvida ao Ministério da Fazenda.

Com relação à distribuição de prêmios pelas OSCs, a Lei n. 13.019/14 não determinou a obrigatoriedade de obtenção de nenhuma espécie de autorização, seja a nível federal, estadual ou municipal.

Como a Lei n. 13.019/14 é uma lei com eficácia nacional, somente por lei federal é que essa obrigação pode ser imposta. Essa exigência não pode ser imposta por meio de decreto federal, lei estadual, municipal, ou outras espécies de normas infra legais, mas tão somente por lei ordinária federal.

Essa constatação é clarividente face à regência do princípio da legalidade em nosso sistema jurídico, que permite ao particular agir livremente desde que sua ação não seja contrária à lei e obriga à Administração Pública a cumprir obrigatoriamente a lei, limitando as suas ações ao que a lei lhe permite.

Noutro giro, a ausência da obrigatoriedade de autorização, e, por conseguinte, de submissão a qualquer órgão público, é medida legal compatível com as finalidades da Lei n. 13,019/2014, que visa, dentre outros objetivos, garantir meios para facilitar às OSCs a captação de recursos.

O texto do art. 84-B, III, da Lei n. 13.019/14 é notoriamente inclusivo, não se exigindo das OSCs, v.g., quaisquer certificados para que as mesmas prometam ou distribuir prêmios.

Se o legislador pretendesse de fato que a fruição desse benefício somente ocorresse frente à obtenção de autorizações, certamente teria incluído essa exigência no texto da Lei. 13.019/14.  

Não o fazendo, forçoso concluir que se trata de uma omissão intencional do legislador, o qual, abstendo-se de exigir autorizações, desburocratizou as operações a que alude a citada lei, facilitando a sua realização, e, via de consequência, captação de recursos às OSCs.

Logo, inexistindo qualquer correlação entre os sorteios filantrópicos e a promessa ou distribuição de prêmios pelas OSCs, visto que amparados em dispositivos legais diversos e não conflitantes, não se afigura legal a usurpação de competência de que se valeu a CEF ao equivaler as duas figuras.

Essa equivalência é inexistente, desprovida de fundamentação legal, sendo falsa qualquer linha de argumentação nesse sentido.

Não existindo, pois, nenhuma lei que atribua à CEF ou ao Ministério da Fazenda a competência para conceder autorização para a realização das operações a que faz referência o art. 84-B, III, da Lei n. 13.019/14, a usurpação de competência pela CEF é hialina.

Nesse aspecto, acertou a Lei n. 13.756/2018 ao não incluir as operações da Lei n. 13.019/14 entre as competências do Ministério da Fazenda, fazendo-o tão somente com relação os sorteios filantrópicos.

Ademais, deve-se insistir no fato de que essas operações são realizadas para a manutenção e custeio das OSCs, ou seja, voltam-se a atividades de interesse público, de cunho social, única hipótese em que se admite a derrogação das leis penais. (Decreto-lei n. 204/67: Art. 1º [...] Parágrafo único. A renda líquida obtida com a exploração do serviço de loteria será obrigatoriamente destinada a aplicações de caráter social e de assistência médica, empreendimentos do interesse público.) 

Essas entidades submetem-se a rigorosa escrituração fiscal e contábil, além de necessariamente terem que ser transparentes e terem de prestar contas ao Ministério Público.  

Os recursos arrecadados com as operações em voga pelas OSCs são integralmente aplicados em seus respectivos fins.

Havendo autorização legal para a realização das operações previstas na Lei n. 13.019/14, sendo obrigatória a destinação dos recursos arrecadados em finalidades de interesse público, não existe razão para a exigência de qualquer tipo de prévia autorização.

Logo, como a Lei 13.756/2018 se refere tão somente às operações da Lei n. 5.768/71, ou seja, aos sorteios filantrópicos, não há em vigor nenhuma lei que obrigue as OSCs a obterem autorização para a realização das operações do art. 84-B, III, da Lei n. 13.019/14.

Até que seja promulgada lei ordinária federal nesse sentido, as OSCs não estão obrigadas a obter, de nenhum ente ou órgão, qualquer espécie de autorização para prometer ou distribuir prêmios com base nas disposições da Lei n. 13.019/14.

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Sobre o autor
Paulo Sérgio Furtado Chiabai

Advogado especializado em Direito Tributário pelo IBET.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHIABAI, Paulo Sérgio Furtado. A promessa ou a distribuição de prêmios, mediante sorteios, vale-brindes, concursos ou operações assemelhadas pelas organizações da sociedade civil (OSCs). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5836, 24 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73376. Acesso em: 4 mai. 2024.

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