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Reflexos do Código Civil nos contratos administrativos

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27/10/2005 às 00:00
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8.Enriquecimento sem causa

            O art. 884 do Código Civil enuncia o princípio do enriquecimento sem causa que, repetimos, é um princípio geral de direito universal. Há muito vem sendo o mesmo amplamente invocado e aplicado pela doutrina e por nossos tribunais, mas só agora é consagrado no direito posto:

            "Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários".

            MARCEL WALINE o define como fundamentado no cuidado da justiça comutativa e no desejo de restabelecer o equilíbrio entre dois patrimônios, dos quais um se enriqueceu, enquanto o outro se empobrecia, sem que nenhuma causa jurídica válida possa justificá-lo.

            Mas o Código não se limitou ao simples enunciado do preceito. Todo o seu texto, na parte de contratos, é permeado de dispositivos que aplicam o princípio a hipóteses concretas. Destacaremos, a título de exemplo, o disposto no parágrafo único do art. 619:

            "Art. 619. Salvo estipulação em contrário, o empreiteiro que se incumbir de executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou, não terá direito a exigir acréscimo no preço, ainda que sejam introduzidas modificações no projeto, a não ser que estas resultem de instruções escritas do dono da obra.

            "Parágrafo único. Ainda que não tenha havido autorização escrita, o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando e nunca protestou. "

            A consagração, em letra do Código, do princípio do enriquecimento sem causa, traz amplo respaldo, assim, a numerosos casos em que subsiste a responsabilidade contratual da Administração pela execução de obra ou de serviços, ainda que ocorrendo ausência de contrato formal, ou em presença de contratos irregularidades.

            Fica mais cômoda a posição dos advogados públicos para o reconhecimento e aplicação de tal princípio, quando cabível, sem que possa pairar suspeita sobre sua isenção, como às vezes ocorre na pratica.

            Fica mais confortável a posição do contratado, freqüentemente obrigado a recorrer ao calvário das vias judiciais para que lhe seja reconhecido o seu direito, por aplicação daquele princípio universal.


09.Onerosidade excessiva.

            O conjunto das disposições do Código Civil constantes dos artigos 478,479 e 480, consagrando a possibilidade de resolução do contrato por onerosidade excessiva representa poderosa inovação, que se harmoniza amplamente com o tratamento já consagrado nos contratos administrativos em geral, quanto às alterações e quanto às hipóteses de rescisão contratual, por efeito da superveniência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis :

            Vale destacar, por curioso, que, embora a lei 8.666/93 e a própria nova lei baiana 9.433/05 não aludam à ocorrência de áleas materiais, nem à aplicação da teoria das agravações ou sujeições imprevistas, amplamente admitida na doutrina e na jurisprudência, o Código Civil assim o faz, no art. 625, inciso II:

            "Art. 625. Poderá o empreiteiro suspender a obra:

            I -..... ..(ommisis)

            II- quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de execução, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços".


10.Empreitadas

            Na matéria pertinente à execução e ao recebimento do objeto contratual, principalmente no que se refere a obras e serviços de engenharia, tem lugar importante a aplicação subsidiária das regras do direito civil, sobretudo quando disciplina as empreitadas.

            Justo é assinalar que a lei baiana 9.433/05 se ocupou muito proficientemente do tema, harmonizando-se com as disposições pertinentes do diploma civil. Sua orientação é muito mais clara e segura que a da Lei 8.666/93, no particular.

            Vale ressaltar algumas disposições novas da lei civil a respeito da matéria, de ampla aplicação aos contratos administrativos:

            "Art. 614 – (ommissis)

            §1o- ( ommissis)

            §2o- O que se mediu presume-se verificado se, em 30 ( trinta) dias, a contar da medição, não forem denunciados os vícios ou defeitos pelo dono da obra ou por quem estiver incumbido da sua fiscalização.

            É uma regra utilíssima para o dia-a-dia das execuções contratuais, acentuando a responsabilidade da fiscalização e pondo termo a inúmeras controvérsias entre contratantes e contratados.

            O art. 618 do Código Civil, correspondente ao antigo art. 1245, relativo à responsabilidade qüinqüenal do empreiteiro pela solidez e segurança do trabalho, de obrigatória remissão pelas leis administrativas, ganhou novos contornos:

            "Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais de execução responderá, durante o prazo irredutível de 5(cinco) anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

            "Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos 180 (cento e oitenta) dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito".

            Vê-se que a regra se tornou mais rígida que no direito anterior, em relação ao problema da solidez e segurança do solo, sem as ressalvas do Código de 1916.

            Por outro lado, o estabelecimento do prazo decadencial mais uma vez reforça a responsabilidade da fiscalização do contrato. O que vai ensejar algumas controvérsias, é a exata interpretação do que quis significar a lei com a menção ao "aparecimento" do vício ou defeito, que está muito vaga.


11.Contrato de transporte.

            O Código Civil se ocupou com muito rigor da matéria relativa ao contrato de transporte, incorporando muitas das regras que se encontravam esparsas em leis extravagantes e dando uma atenção muito especial ao aspecto da responsabilidade civil objetiva do transportador em geral, inadmitindo, em regra, quaisquer cláusulas excludentes ( art. 734)

            É de destacar-se o disposto nos art. 731 e 732, por suas amplas conseqüências práticas:

            Art. 731. O transporte exercido em virtude de autorização, permissão ou concessão, rege-se pelas normas regulamentares e pelo que for estabelecido naqueles atos, SEM PREJUÍZO DO DISPOSTO NESTE CÓDIGO.

            Art. 732. Aos contratos de transporte em geral são aplicáveis, quando couber, DESDE QUE NÃO CONTRARIEM AS DISPOSIÇÕES DESTE CÓDIGO, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais.

            Verifica-se, pois, que o Código pretendeu assumir, nessa matéria, marcada predominância sobre outras normas que já dispunham sobre o assunto, - o que já está gerando não poucas controvérsias na esfera judicial.


12.A concessão de superfície.

            O Código Civil de 2002 trouxe uma nova figura contratual, a concessão de superfície, disciplinada pelos artigos 1369 a 1377, e já antecipada pelos artigos 21 a 24 do Estatuto da Cidade. A nosso ver, trata-se de instituto que, por ser mais completo, substituirá, com vantagem, a concessão de direito real de uso, tornando esta verdadeiramente ultrapassada, e inadequada para as relevantes necessidades de interesse coletivo que é chamada a atender.

            Aliás, dispõe taxativamente o art. 1377, do Código Civil, que:

            "Art. 1377 – O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por este Código, no que não for diversamente disciplinado em lei especial".

            Existe, pois, na lei civil, como que um verdadeiro chamamento, para que o legislador venha a adaptar o instituto às peculiaridades do direito público.

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13. Considerações finais.

            Em breve e aligeirado exame das disposições do Código de 2002, ainda que apenas abordando alguns aspectos pontuais, vemos que o novo diploma civil se atualizou, incorporando as mais expressivas conquistas da Constituição de 1988 e colocando-se em consonância com seus generosos princípios.

            Nesse contexto, um dos pontos mais marcantes dessa nova dimensão se configura na humanização das relações contratuais, consagrando-se o predomínio de regras morais que, antes, constituíam peculiaridades dos contratos administrativos, nem sempre bem aceitas.

            Curiosamente, nesse processo, mais uma vez se diluem as fronteiras entre o direito público e o direito privado, e os contratos, na órbita civil, se aproximam cada vez mais dos institutos que até então eram considerados como cláusulas exorbitantes na seara administrativa, tais como as regras pertinentes à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos.

            Sendo a lei civil, - que, entre nós, disciplina as regras da teoria geral do direito, - fonte subsidiária do regime jurídico especial dos contratos administrativos, não é difícil prever que se anuncia uma verdadeira reviravolta na interpretação desses contratos, bafejada pelos novos princípios. A jurisprudência de nossos tribunais encontrará respaldo cada vez maior, dentro do próprio direito privado, para conter os desvios éticos e verdadeiros abusos do comportamento dos poderes públicos nas relações com seus contratados, com apoio nos amplos desdobramentos dos princípios da boa fé, do abuso de direito e do enriquecimento sem causa, que agora enriquecem nosso Código Civil.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

            BÉNOIT, Francis-Paul, Le Droit Administratif Français, Parissrtids, Dallox, 1968.

            BORGES, Alice Gonzalez - Temas Atuais do Direito Administrativo, Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2004.

            _______________________ - O equilíbrio econômico-financeiro nos contratos administrativos, in Boletim de Direito Administrativo da Editora NDJ, ano 1997, vol.2.

            CIRNE LIMA, Ruy - O Código Civil e o Direito Administrativo, Porto Alegre, Sulina.

            DESPOTOPOULOS, Michel – La notion de synallagma chez Aristote, in Sur les Notions du Contrat, Paris, Sirey, 1968, Archives de Philosophie du Droit, n. 13.

            DINIZ, Maria Helena – Código Civil Anotado, São Paulo, Saraiva, 2003.

            JALUZOT, Béatrice – La bonnne foi dans les contrats, Paris, Dalloz, 2001.

            MOTTA, Carlos Pinto Coelho – Aplicação do Código Civil às licitações e contratos – Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2004.

            NERY JUNIOR, Nelson, e NERY, Rosa Maria Andrade – Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados – São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002.

            PEREZ, Manoel Jesus Gonzalez- El principio general de la buena fé en el derecho administrativo, Madrid, Civitas, 1989.

            PLANIOL & RIPERT – Traité Élémentaire de Droit Civil, Paris, LGDJ, 1952, t. 2.

            RIPERT, Georges – A regra moral nas obrigações civis, Campinas, Bookseller, 2000.

            VENOSA, Silvio Savo, Direito Civil, 3a ed., São Paulo, Atlas, 2003, vl. 2- Teoria das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos.

            WALINE, Marcel – Précis de Droit Administratif, Paris, Montchrestien, 1969


Notas

            01

Código Civil Anotado, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 321-322.

            02

Direito Civil. 3. ed. São Paulo, Atlas, 2003,v.2- Teoria das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, p. 378-379.

            03

Aplicação do Código Civil às Licitações e Contratos, Belo Horizonte, Del Rey, 2004, p. 36-39.

            04

Ob.cit., p. 181.

            05

El Principio General de la Buena Fé em el Derecho Administrativo. 2 ed. Madrid.Civigas,1989, p. 54-55.

            06

Temas do Direito Administrativo Atual, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2004,p. 187-192.

            07

O equilíbrio econômico-financeiro nos contratos administrativos, in Boletim de Direito Administrativo da Editora NDJ, Ano 1997, vol.2 : 82-88.
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Sobre a autora
Alice Gonzalez Borges

advogada e consultora jurídica em Salvador (BA), procuradora do Estado da Bahia aposentada, professora da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador aposentada

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Alice Gonzalez. Reflexos do Código Civil nos contratos administrativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 846, 27 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7509. Acesso em: 17 mai. 2024.

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