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Direito e escravidão: aspectos jurídico-políticos das relações anglo-brasileiras na supressão do tráfico de escravos

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02/08/2019 às 17:42
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SUPRESSÃO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS (1826-1850).

Lei para inglês ver, bill Aberdeen, Protesto Brasileiro.

Antes de ser sancionada a lei que abolia formalmente o tráfico por súditos e embarcações brasileiras, o tráfico se dava por meio da ida a África de embarcações, preparadas para o transporte de cativos, todavia, com os porões abarrotados com manufaturas tanto brasileiras quanto europeias e então realizavam o escambo, regressando com escravos. Porém a sistemática para seguimento do tráfico com a possibilidade de apresamentos pela armada britânica forçou mudanças operacionais, sendo que as manufaturas que seriam escambadas chegavam ao continente africano por meio de embarcações sob bandeira dos Estados Unidos ou de alguma outra nação europeia, ao passo que uma segunda embarcação, muitas vezes sem identificação de nacionalidade, fazia o transporte desde a costa da África até ao Brasil (ALENCASTRO, 2000, p. 6).

Ademais, com a sanção da Lei para inglês ver de 1831, houve uma abruta diminuição na entrada de cativos, conforme o Gráfico 121 - para a constituição dos dados foram analisados os registros des 34.948 viagens transatlânticas, das quais, aproximadamente 3,6% não lograram em chegar à costa africana por infortúnios diversos, assim, podendo ser deduzido que dois terços de todas as viagens destinadas ao tráfico foram documentadas - podendo ser alegada uma redução para aproximadamente 10% do número total de cativos que entravam nos 10 anos anteriores à Lei para inglês ver e que perdurou no decorrer dos cinco anos posteriores a essa Lei.

Esse foi o primeiro reflexo significativo na queda no número de entrada de escravos vindos da África, todavia, não persistiu por muito tempo, vez que a expansão das plantações de café exigia braços para os trabalhos nas lavouras, assim, ante a expansão do tráfico, ocorrida subsequentemente à lei de 7 de novembro de 1831, sem óbices pelas autoridades brasileiras, ao final da década de 1830 do século XIX o número de cativos que entravam no Brasil retomou aos números da década de 1820 - quando ainda não se havia suprimido legalmente o tráfico dos territórios portugueses (BETHELL, 2002, p.250).

Desse modo, ante a realidade fática da continuidade do tráfico, o congresso brasileiro elaborou substancial número de projetos com a finalidade de majorar as punições àqueles que fossem capturados transportando escravos ao Brasil, ou nos preparativos para fazê-lo. Porém esses projetos não obtiveram êxito na aprovação pelo Congresso Nacional, que reunia as elites rurais brasileiras e não eram afrontados pelo poder executivo, que passava por uma transição devido a volta de D. Pedro I à Europa para posse do trono em consequência da morte de seu pai. (PEIXOTO, 2013, 83). Logo, a supressão de facto do tráfico perduraria até meados da década de 1850, conforme se pode constatatar com os dados do Gráfico 1.

Face à continuação do tráfico, em 8 de agosto de 1845 o parlamento britânico sancionou An Act to amend an Act, intituled An Act to carry into execution a Convention between His Majesty and the Emperor of Brazil, for the Regulation and final Abolition of the African Slave Trade22 23, legislação conhecida por bill Aberdeen - Lorde Abeerdeen, ao tempo, era secretário de Estado para os assuntos estrangeiros do governo britânico. Essa lei também refletiu o posicionamento do governo brasileiro pelo fim das comissões mistas e a intepretação da perda de validade do tratado de 1817 e seus textos adicionais, uma vez que o prazo estipulado de 15 anos no tratado de 1826 se aproximava.

'WHEREAS a Convention was concluded between His late Majesty King George the Fourth and the Emperor of Brazil, for the Regulation and final Abolition of the African Slave Trade, and signed at Rio de Janeiro on the Twenty-third Day of November One thousand eight hundred and twenty-six: And whereas by the said Convention it was agreed between the High Contracting Parties to adopt, for the Purpose and Period therein referred to, the several Articles and Provisions of the Treaties concluded between His said late Majesty and the King of Portugal on this Subject on the Twenty-second Day of January One thousand eight hundred and fifteen and on the Twenty-eighth Day of July One thousand eight hundred and seventeen, and the several explanatory Articles which had been added thereto, [...] And whereas on the Twelfth Day of March One thousand eight hundred and forty-five it was notified by the Imperial Government of Brazil to Her Majesty's Government, that the British, and Brazilian Mixed Commissions established at Rio de Janeiro and Sierra Leone would cease on the Thirteenth Day of the said Month of March; but that the Imperial Government would agree that the said Mixed Commissions should continue for Six Months longer, for the sole Purpose of adjudicating the Cases pending, and those which might have occurred before the said Thirteenth Day of March [...].24 25

Esse primeiro artigo faz referência aos tratados firmados entre Grã-Bretanha e o Império do Brasil, e a continuação pelo período de seis messes das comissões mistas anglo-brasileiras, para adjudicação dos casos pendentes. Assim, a posição brasileira pela não continuidade das comissões mistas foi respeitada, porém as consequências dessa decisão se refletem na possibilidade do julgamento pela armada britânica das embarcações presas por tráfico.

III. And whereas by the said Convention of the Twenty-third Day of November One thousand eight hundred and twenty-six [...] carrying on of the African Slave Trade under any Pretext or in any Manner whatever, and that the carrying on such Trade after that Period by any Person, Subject of His Imperial Majesty, should be deemed and treated as Piracy [...] the Act of the Eighth Year of the Reign of His late Majesty King George the Fourth as prohibits the High Court of Admiralty and the Courts of Vice Admiralty from exercising Jurisdiction over Vessels captured in virtue of the said Convention shall be repealed, and that further Provisions be made for the due Execution of the same;' be it enacted, That so much of the said Act as prohibits the High Court of Admiralty or any Court of Vice Admiral in any Part of Her Majesty's Dominions from adjudicating on any Claim, Action, or Suit arising out of the said Convention, [...] shall be repealed26.

Esse artigo que revogou as orientações para que as presas fossem julgadas pelas comissões mistas, em consequência, dispensou o direito de julgamento pelo tráfico ao almirantado. O império britânico entendia que se por um lado os tratados não seriam mais respeitados, a possibilidade de julgamentos, mesmo em tempos de paz, era a única saída para interromper o infame negócio.

Para isso, os instrumentos que possibilitavam o tráfico não poderiam ser disponibilizados novamente à compra, após os apresamentos, por interessados pela trata, assim, as embarcações e toda e quaisquer ferramentas envolvidas no tráfico deveriam ser destruídas.

VI. And be it enacted, That any Ship or Vessel which shall be detained under any such Order or Authority as aforesaid, and shall have been condemned by Her Majesty's High Court of Admiralty or by any Court of Vice Admiralty, may be taken into Her Majesty's Service, [...] shall be broken up and entirely demolished, and the Materials thereof shall be publicly sold in separate Parts27.

Diante da bill Aberdeen, e do contexto político interno, o Império do Brasil, por seu ministro de negócios exteriores, Antonio Paulino Limpo de Abreu, emitiu Protesto contra o acto do Parlamento britânico, sancionado em 8 de agosto do anno corrente, que sujeita os navios brasileiros, que fizerem o tráfico de escravos, ao Alto Tribunal do Almirantado e a qualquer tribunal do Vice-Almirantado dentro dos domínios de sua magestade britânica28 para expressar as razões de fato e de Direito que resguardavam a posição brasileira.

A argumentação do Protesto se iniciou por um relatório que expôs os tratados de 1815, 1817 e 1826, e as respectivas convenções adicionais, construindo a cronologia pelo qual o governo português, e subsequentemente o brasileiro, aceitou as condições britânicas referentes ao tráfico de escravos, ademais, foi apontado os prazos pelo quais os tratados seguiriam válidos.

Pelo Tratado de 22 de janeiro de 1815, o Governo do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves obrigou-se a abolir o comércio de escravos ao norte do Equador [...] a Convenção adicional de 28 de julho de 1817 [...] Nesta Convenção estabeleceu-se, entre outras providências, o direito de visita e de busca, e a criação de Comissões mistas para julgarem os apresamentos feitos pelos cruzadores das Altas Partes Contratantes, [...] No mesmo ano de 1817 foi assinado em Londres [...] um artigo separado, pelo qual se concordou em que, logo depois da abolição total do tráfico de escravos, as duas Altas Partes Contratantes conviriam em adaptar, de comum acordo, às novas circunstâncias as estipulações da Convenção adicional de 28 de julho do mesmo ano, e acrescentou-se que, quando não fosse possível concordar em outro ajuste, a dita Convenção adicional ficaria válida até a expiração de 15 anos contados desde o dia em que tráfico de escravos fosse totalmente abolido. Pelo artigo 1º da Convenção celebrada entre o Brasil e a Grã-Bretanha no dia 23 de novembro de 1826, e ratificada no dia 13 de março de 1827, estabeleceu-se que, “acabados três anos depois da troca das ratificações, não seria mais lícito aos súditos do Império do Brasil fazer o comércio de escravos na costa da África [...] seria considerado e tratado como pirataria” [...] o direito de visita e busca exercido em tempo de paz pelos cruzadores britânicos contra embarcações brasileiras, e as Comissões mistas criadas para julgarem as presas feitas pelos ditos cruzadores britânicos ou pelos brasileiros, deviam expirar no dia 13 de março de 1845, por ser esta a época em que terminavam os 15 anos depois de abolido totalmente o tráfico de escravos, pelo artigo 1º da Convenção celebrada em 25 de novembro de 1826, e ratificada em 13 de março de 1827.

Também foi examinado os infortúnios que acarretam com que um novo tratado, em substituição àqueles cujos prazos de validade expiraram, fosse ratificado. Ao fazer referência ao comércio lícito de seus súditos em sequência às negociações de 1835, 1840 e 1842, o governo imperial brasileiro defende a produção agrícola, principal fonte de equilíbrio da balança de pagamentos, que necessitava de braços para a produção.

Culpa não foi do Governo imperial se antes da expiração do prazo de quinze anos, acima mencionado, não foi possível obter-se um acordo justo e razoável entre o mesmo Governo imperial e o da Grã-Bretanha, para adaptar às novas circunstâncias da abolição total do tráfico as medidas estabelecidas na Convenção adicional de 28 de julho de 1817. É uma verdade incontestável que no ano de 1835, assim como nos de 1840 a 1842, o Governo imperial prestou-se sempre com o mais decidido ardor a diversas negociações propostas pelo Governo de S. M. Britânica. Se nenhuma destas negociações pôde concluir-se nem ratificar-se, a razão foi porque o Governo imperial viu-se colocado na alternativa, ou de recusar-se, malgrado seu, a tais negociações, ou de subscrever a completa ruína do comércio lícito de seus súditos, que aliás deve zelar e proteger. A escolha não podia ser duvidosa a um Governo que tivesse consciência dos seus deveres.

A soberania do Estado em suas relações exteriores se fundamenta na capacidade de participação das relações internacionais em condições de independência, ou seja, tomando suas próprias decisões e obrigações em regime de igualdade jurídica com outras nações, par in parem non habet imperium, não importando as diferenças existentes entre os Estados. Essa condição de soberania, e.g., permite ao Estado participar na construção de normas e assumir compromisso por tratados. (BROTONS, 1997, p. 135).

BOBBIO aponta que “Externamente cabe ao soberano decidir acerca da guerra e da paz: isto implica um sistema de Estados que não têm juiz algum acima de si próprios” (1997, p. 1180). É nesse sentido a argumento do governo brasileiro no Protesto, vez que o conceito soberania está atrelado ao território, sendo que as embarcações são reputadas partes do território de uma nação, assim, os crimes cometidos em embarcações brasileiras devem ser perquiridos pelo governo do Brasil. Logo, a ação de captura de embarcações brasileiras é apresentada como uma afronta aos princípios do Direito Internacional.

A letra do sobredito artigo 1º da Convenção só compreende os súditos brasileiros e o tráfico ilícito que estes possam exercer. Ninguém contesta que os crimes cometidos no território de uma nação só podem ser punidos pelas autoridades dela, e outrossim que se reputam parte do território de uma nação os seus navios, para o efeito, entre outros, de serem punidos por suas leis os crimes que neles forem perpetrados. Absurdo fora reconhecer no Governo britânico o direito de punir súditos brasileiros nas suas pessoas ou na sua propriedade, por crimes cometidos no território do Império, sem muito expressa, clara e positiva delegação deste direito, feita pelo soberano do Brasil ao da Grã-Bretanha. Onde está no Tratado esta delegação clara e positiva? Subentender, a título de interpretação, a delegação de um poder soberano que não se acha expressa, seria quebrantar o primeiro preceito da arte de interpretar, e é, que não é permitido interpretar o que não precisa de interpretação. Quando um ato está concebido em termos claros e precisos, quando o seu sentido é manifesto e não conduz a absurdo algum, nenhuma razão há para recusar-se ao sentido que semelhante ato apresenta naturalmente. Recorrer a conjecturas estranhas para restringi-lo ou ampliá-lo é o mesmo que querer iludi-lo. Acresce a isto que, subentender no caso de que se trata, a delegação de um poder soberano feita pelo Governo imperial ao da Grã-Bretanha sem que igual delegação fosse feita pelo Governo da Grã-Bretanha ao Governo imperial, contraviria, se alguma obscuridade houvesse no artigo, a outro preceito que se recomenda como regra de interpretar, e vem a ser, que tudo o que tende a destruir a igualdade de um contrato é odioso e, neste caso, é necessário tomar as palavras no sentido o mais restrito para desviar as conseqüências onerosas do sentido próprio e literal, ou o que ele contém de odioso.

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A pirataria - ato ilegal de violência, detenção ou depredação de embarcações ou de seus passageiros, tripulantes, e/ou dos bens desses – também é questionada no Protesto por se considerar que o tráfico de escravos não envolvia abordagens a embarcações de terceiros em busca de proveitos. Assim, a compreensão de ficção jurídica, válida unicamente entre as partes que assumem essa interpretação, é apontada para desqualificar o caráter danoso à navegação livre que a Grã-Bretanha tenta atribuir ao tráfico brasileiro.

O tráfico é no referido artigo equiparado a pirataria, somente por uma ficção de direito, e sabido é que as ficções de direito não produzem outro efeito além daquele para que são estabelecidas. Em verdade, o tráfico não é tão facilmente exercido como o roubo no mar; não há tanta dificuldade em descobrir e convencer aos seus agentes como aos piratas; em uma palavra, o trafico não ameaça o comércio marítimo de todos os povos como a pirataria.

Também é apontado pelo Ministro Antonio Paulino Limpo de Abreu o histórico britânico da trata de escravos e os benefícios auferidos pelos ingleses com o comércio triangular por mais de três séculos, fundamentando essa visão nos discursos de importantes atores políticos do velho mundo.

Nem é concebível como possa o tráfico ser considerado hoje pirataria, segundo o direito das gentes, quando ainda no ano de 1807 afirmava Lord Eldon no Parlamento britânico que o tráfico tinha sido sancionado por Parlamentos em que tinham assento os jurisconsultos mais sábios, os teólogos mais esclarecidos, e os homens de Estado mais eminentes; quando Lord Hawksbury, depois Conde de Liverpool, propunha que as palavras inconsistente com os princípios de justiça e humanidade fossem riscadas do preâmbulo da lei que aboliu o tráfico de escravos; quando enfim o Conde de Westmoreland declarava que ainda que ele visse os presbíteros e os prelados, os metodistas e os pregadores do campo, os jacobinos e os assassinos reunidos em favor da medida da abolição do tráfico de escravos, ele havia de levantar bem alto a sua voz contra ela no Parlamento. Não é concebível como possa o tráfico ser considerado hoje pirataria, segundo o direito das gentes, quando não há muitos anos ainda a mesma Inglaterra não se reputava infamada em negociar em escravos africanos, e quando outras nações cultas ainda há bem pouco tempo prescreveram esse tráfico. Escravos índios conserva presentemente a Grã-Bretanha. Rússia, França, Espanha, Portugal, Estados Unidos da América do Norte, Brasil e outras potências ainda não aboliram e escravidão. Obvio é portanto que fatos que tantas nações praticam atualmente, e que ainda não há muitos anos eram praticados por todo o mundo, não serão com justiça considerados pirataria senão entre povos que como tal os classificarem expressamente nos seus Tratados.

Outrossim, a jurisprudência internacional à época respaldava a posição do Império do Brasil no que tange à ilegalidade da ação britânica de visita e apresamento de embarcações sob bandeira brasileira, isso porque os conceitos relativos à universalidade de valores somente seriam desenvolvidos em finais do século XIX e início do século XX. Os tribunais e juízes franceses à época respaldavam integralmente o Direito à livre navegação alcançado no decorrer do século XV por doutrinadores como Hugo Grotius.

Já se mostrou que o direito das gentes não reconhece o direito de visita e busca no alto mar em tempo de paz, os Tribunais ingleses assim o tem por vezes reconhecido, como aconteceu no caso do navio francês Louis, capturado no ano de 1820 na costa d’África, por se ocupar no tráfico de escravos, declarando-se que tal captura era nula, porque o direito de visita e busca no alto mar não existe em tempo de paz. Lord Stowell na decisão deste caso alegou como argumento especial que, ainda mesmo admitindo que o tráfico estivesse efetivamente proibido pelas leis municipais da França, o que era duvidoso, o direito de visita e busca, sendo um direito exclusivamente beligerante, não podia, conforme o direito das gentes, ser exercido em tempo de paz para executar-se aquela proibição por meio dos Tribunais britânicos, a respeito da propriedade de súditos franceses. Proferindo o julgamento do Supremo Tribunal do Almirantado neste caso, Lord Stowell declarou mais que o tráfico de escravos, posto que injusto, e condenado pelas leis municipais da Inglaterra, não era pirataria, nem era crime à face do direito das gentes absoluto.

Essa perspectiva, assim como as demais expostas e alegadas pelo ministro Antonio Paulino de Limpo Abreu, corroborou com a defesa dos interesses e direitos brasileiros. Porém, em uma perspectiva do realismo político, a letra da lei não pode estabelecer diálogo simétrico com a diplomacia das ganhoneiras britânica.

Lei Eusébio de Queirós, Últimos Cativos e Hegemonia.

Passada a bill Aberdeen, no ano seguinte, 1846, o governo inglês revogou as Corn Laws29 que favoreciam os grãos britânicos, assim, com o mercado aberto aos produtos advidos de outras partes do globo, os produtores brasileiros eram compelidos a seguir no tráfico de cativos para fomentar a produção nacional para exportação, tanto que, conforme o Gráfico 1, o número de escravos desembarcados em território brasileiro anualmente retomou à soma dos anos anteriores às leis de proibição do tráfico.

Devido à dependência da produção agrícola, a elite fundiária brasileira acirrou os ânimos nas discussões no congresso uma vez que a supressão do tráfico afetaria o status quo da política nacional. Além disso, a pressão diplomática do império britânico, amparada na armada real, influenciava no acalouramento dos embates ideológicos, sendo que os apresamentos começavam a se intensificar e o número de embarcações que conseguiam êxito no retorno ao Brasil com escravos diminuía.

Assim, em 4 de setembro de 1850, ante a situação fática posta, foi aprovada a Lei Eusébio de Queirós, então ministro à época. Essa lei nos moldes da bill Aberdeen trazia duras condições aos que tentavam realizar o tráfico de cativos, tanto que apenas “sinais” de emprego no tráfico já era suficiente para o apresamento da embarcação e a condenação pela tentativa de importação de escravos.

Art. 1º As embarcações brasileiras encontradas em qualquer parte, e as estrangeiras encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros, ou mares territoriaes do Brasil, tendo a seu bordo escravos, cuja importação he prohibida pela Lei de sete de Novembro de mil oitocentos trinta e hum, ou havendo-os desembarcado, serão apprehendidas pelas Autoridades, ou pelos Navios de guerra brasileiros, e consideradas importadoras de escravos. Aquellas que não tiverem escravos a bordo, nem os houverem proximamente desembarcado, porêm que se encontrarem com os signaes de se empregarem no trafico de escravos, serão igualmente apprehendidas, e consideradas em tentativa de importação de escravos30.

A condenação, antes imputada aos proprietários das embarcações e aos capitães responsáveis ao tempo da empreensão, passaram a ser estendidas a todos os membros da tripulação, sendo que os de menor escalão respondiam na condição de cúmplices. Considerando que o crime estava tipificado como de pirataria, a pena passível de ser atribuídas aos agentes variava entre galé perpétua - prisão perpétua - e a média de 20 anos de prisão, tendo como pena mínima de 10 anos de prisão, conforme a Lei de 16 de dezembro de 1830 que manda executar o Codigo Criminal.

Art. 3º São autores do crime de importação, ou de tentativa dessa importação o dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação, e o sobrecarga. São complices a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escravos no territorio brasileiro, ou que concorrerem para os occultar ao conhecimento da Autoridade, ou para os subtrahir á apprehensão no mar, ou em acto de desembarque, sendo perseguido. Art. 4º A importação de escravos no territorio do Imperio fica nelle considerada como pirataria, e será punida pelos seus Tribunaes com as penas declaradas no Artigo segundo da Lei de sete de Novembro de mil oitocentos trinta e hum. A tentativa e a complicidade serão punidas segundo as regras dos Artigos trinta e quatro e trinta e cinco do Codigo Criminal.

Até mesmo as viagens à Costa da África foram dificultadas, isso porque fianças eram exigidas para concessão dos passaportes mercantes, além de que escravos, tanto cativos, for força dessa Lei Eusébio de Queirós, quanto libertos, por força do artigo 7º da Lei para inglês ver, não poderiam ser aceitos a bordo uma vez que não poderiam entrar em território brasileiro.

Art. 7º Não se darão passaportes aos navios mercantes para os portos da Costa da África sem que seus donos, capitães ou mestres tenhão assignado termo de não receberem á bordo delles escravo algum; prestando o dono fiança de huma quantia igual ao valor do navio, e carga, a qual fiança só será levantada se dentro de dezoito mezes provar que foi exactamente cumprido aquillo a que se obrigou no termo.

No que tange ao artigo sétimo da Lei para inglês ver, cabe destacar o caráter eugênico inserido no texto da lei e que garantiu que os imigrantes com destino ao Império do Brasil adviessem de países europeus. Conforme já exposto, “Art. 7º Não será permittido a qualquer homem liberto, que não fôr brazileiro, desembarcar nos portos do Brazil debaixo de qualquer motivo que seja”.

Exemplo da aplicação desse dispositivo, John Abraham Cole, americano do Mississipi, “tinha a intenção de embarcar para o Rio de Janeiro uma mulher negra e seus dois filhos” (SILVA, 2011, P. 210). Ao comentar com o Agente de Colonização sobre o interesse de outros compatriotas na migração para o Brasil nas mesmas condições, testemunhou a fala de que “... a questão é grave, e me parece indispensavel alguma providencia a esse respeito”. (SILVA, 2011, p. 211).

Assim, com os reflexos dessa Lei para inglês ver, em concomitância com a força investida na supressão do tráfico pela Lei Eusébio de Queirós, em meados da década de 1850 o tráfico havia sofrido baixas consideráveis e o número de embarcações que ainda faziam a travessia de forma pontual estavam reduzidas e já não figuravam de forma categórica como no decorrer dos três séculos anteriores à supressão. Também influenciou na redução do tráfico as recompensas oferecidas àqueles que denunciassem o tráfico, além de que havia o policiamento das costas brasileiras e vistorias aos navios que se encontrassem nos portos nacionais. (COSTA, 1997, p. 91).

Quanto ao conceito de hegemonia, de acordo com Arrighi teriam existido três períodos de hegemonia em nível internacional, interessando-nos o segundo, relativo ao de proeminência britânica. As mudanças perpetradas pela Revolução Industrial em fins do século XVIII, e que se expande para outras nações europeias, bem como aos EUA, a partir da segunda metade do século XIX, levam a Grã-Bretanha à condição de liderança no âmbito internacional, período conhecido por Pax Britannica.

O conceito de hegemonia mundial está relacionado à capacidade de um Estado em exercer a liderança sobre determinado grupo de nações soberanas, que difere de uma capacidade de dominação pura e simples na medida em que a liderança se dá em um plano intelectual e moral (ARRIGHI, 1996, p. 27-28).

Arrighi remete ao conceito de Gramsci de hegemonia, válido para o plano nacional. Em Gramsci, o conceito é estabelecido a partir da relação entre coerção e consenso contida na metáfora do centauro, de Maquiavel:

“Deveis saber, assim, que duas formas há de combater: uma, pelas leis, outra pela força. A primeira é natural do homem; a segunda, dos animais. Sendo, porém, a primeira muitas vezes insuficiente, é necessário recorrer à segunda. Ao príncipe se faz preciso, porém, saber empregar de maneira conveniente o animal e o homem. Isto foi ensinado em segredo aos príncipes, pelos cronistas antigos, que cantam a sucedida a Aquiles e outros príncipes da antiguidade, entregues aos cuidados do centauro Quiron, que os educou. É que isso (ter preceptor meio homem meio animal) significa que o príncipe sabe empregar uma e outra natureza.” (MAQUIAVEL, s.d., p. 102-103).

Já para Gramsci:

“Outro ponto a ser fixado e desenvolvido é o da ‘dupla perspectiva’ na ação política e na vida estatal. Vários graus nos quais se pode apresentar a dupla perspectiva, dos mais elementares aos mais complexos, mas que podem ser reduzidos teoricamente a dois graus fundamentais, correspondente à natureza dúplice do Centauro maquiavélico, ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade, do movimento individual e daquele universal (da ‘Igreja’ e do ‘Estado’), da agitação e da propaganda, da tática e da estratégia, etc.” (GRAMSCI, 2007, p. 33).

A coerção implica em utilização da força, ou a ameaça de seu uso, enquanto o consentimento implica em uma relação de liderança moral, centrada na ideia de que a liderança do grupo dominante, ou do Estado dominante, para nossos propósitos, seja representante do interesse geral. A hegemonia para Gramsci está vinculada à relação de consenso no âmbito de um Estado, ou seja, a partir das relações sociais que são estabelecidas internamente. (ARRIGHI, 1996, p. 28-29).

A transplantação do conceito de hegemonia para o plano das relações interestatais leva a alguns desafios. O primeiro deles se desdobra em dois sentidos, porque há um duplo aspecto na palavra “liderança”, particularmente quando aplicado nas relações interestatais. De acordo com Arrighi um “Estado dominante exerce uma função hegemônica quando lidera o sistema de Estados numa direção desejada e, com isso, é percebido como buscando um interesse geral. É esse tipo de liderança que torna hegemônico o Estado dominante.” (ARRIGHI, 1996, p. 29). Entretanto, um Estado dominante também pode atrair os demais para sua via de desenvolvimento, o que levaria no decorrer do tempo a um acirramento da competição interestatal, em vez de aumentar o poder do Estado hegemônico. De acordo com Arrighi, só a liderança de primeiro tipo configuraria uma situação hegemônica (ARRIGHI, 1996, p. 29).

O segundo porque é mais complexo definir um interesse geral no nível internacional do que no plano interno a um Estado nacional, onde a ampliação do poder deste último, por si só, se constitui um objetivo geral. No caso de um sistema de Estados o poder não pode se ampliar a não ser por um grupo de Estados à custa de outros Estados e, se isso ocorrer, significa que a liderança hegemônica de um Estado é regionalizada, e não verdadeiramente global (ARRIGHI, 1996, p. 29).

Diante disso, a definição de hegemonia é apresentada por Arrighi como condicionada a outros determinantes:

“As hegemonias mundiais, como aqui entendidas, só podem emergir quando a busca do poder pelos Estados inter-relacionados não é o objetivo da ação estatal. Na verdade, a busca do poder no sistema interestatal é apenas um lado da moeda que define, conjuntamente, a estratégia e a estrutura dos Estados enquanto organizações. O outro lado é a maximização do poder perante os cidadãos. Portanto, um Estado pode tornar-se mundialmente hegemônico por estar apto a delegar, com credibilidade, que é a força motriz de uma expansão geral do poder coletivo dos governantes perante os indivíduos. Ou, inversamente, pode tornar-se mundialmente hegemônico por ser capaz de afirmar, com credibilidade, que a expansão de seu poder em relação a um ou até a todos os outros Estados é do interesse geral dos cidadãos de todos eles.” (ARRIGHI, 1996, p. 29-30).

Sendo assim, a liderança britânica no século XIX é exercida a partir de uma relação entre coerção e consenso em que podemos identificar a presença de elementos ferinos na relação que é estabelecida com o Império do Brasil. Ao mesmo tempo, o aspecto humano do centauro pode ser levantado a partir da identificação entre liberalismo de livre comércio e a definição dos direitos humanos em nível internacional, momento em que a Grã-Bretanha passa a exercer uma liderança moral.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMARGO, Wainesten. Direito e escravidão: aspectos jurídico-políticos das relações anglo-brasileiras na supressão do tráfico de escravos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5875, 2 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75291. Acesso em: 17 mai. 2024.

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