Ao lado das hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, descritas na Constituição da República, a Emenda n. 45/2004 acrescenta um terceiro parágrafo ao art. 102 da Carta, cujo teor é: "No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros." Trata-se de novo requisito de admissibilidade do apelo extremo, normalmente chamado de transcendência; para ser admitido, o extraordinário deve encartar questão transcendente, de repercussão geral.
O quorum qualificado, de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal para a inadmissão do recurso, deixa transparecer que a nova disposição da Lei Fundamental presume a relevância dos temas levados à Corte por meio do apelo extremo, pois, em princípio, cuida-se de questões constitucionais transcendentes, cujo conhecimento só pode ser rejeitado por aquela maioria especial.
Também emerge da disposição uma falsa impressão de que somente o Plenário da Suprema Corte poderia julgar recursos extraordinários, desfigurando-se a competência regimental de suas Turmas, o que não é de se admitir. Apenas quando se tratar de controvérsia inédita no âmbito do Pretório Excelso, deverá o recurso ser afetado ao respectivo Plenário; após a formação do precedente, seja pela inadmissão ou não da relevância de determinada matéria, tanto as Turmas quanto os Ministros estarão habilitados a proceder ao julgamento de casos semelhantes, inclusive pela vocação do art. 557 do Código de Processo Civil.
Com efeito, a repercussão geral não é totalmente novidade no Brasil, onde, na década de setenta, desenvolveu-se o instituto da argüição de relevância. A Emenda Constitucional n. 07, de 13 de abril de 1977, deu a seguinte redação ao § 1º do art. 119 da Constituição então vigente, in verbis:
"Art. 119. (...)
§ 1º As causas a que se refere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal."
O RISTF, por seu turno, nos arts. 325 e seguintes, disciplinou com maiores detalhes tal instituto. A propósito, Evandro Lins e Silva anotou que "a relevância é uma pré-condição ou pré-requisito do recurso. Pode haver negativa de vigência da lei ou decisão divergente do próprio STF e a causa não ser considerada relevante, a ponto de exigir a correção extraordinária." [01] Cuidava-se de artifício então utilizado pela Corte Suprema na tentativa de reverter a crise que nela se instaurara desde os idos de 1950, ou melhor, a crise do recurso extraordinário, o qual, pela sua ambivalência, instrumento de guarda da Constituição e da legislação federal, multiplicou-se assustadoramente, alastrando-se por toda sorte de causas, de cíveis a criminais, de modo a engrossar as fileiras de processos no Tribunal.
Em verdade, Arruda Alvim esclarece a real vocação da argüição de relevância, ao tratá-la como um instrumento antagônico e neutralizador do critério de exclusão delineado no RISTF, in verbis:
"A argüição de relevância diferentemente das exclusões (que são objeto de disciplina negativa, ‘quase genérica’, em sede regimental, no sentido de que aí já se encontram concretizadas) desempenha, em rigor, função ‘neutralizadora’ das exclusões; vale dizer, o valor da causa, sua espécie, etc., são elementos possíveis para se poder cogitar da exclusão de cabimento de RE, sempre à luz da irrelevância da causa ou da questão, os quais elementos (valor da causa, espécie, etc.), serviram de suportes básicos do RI, precisamente, para sobre eles incidir o critério da relevância ou da irrelevância, quando da elaboração legislativa do elenco constante do art. 325. E, nos RIs anteriores, influíram esses elementos (avaliados pela relevância/irrelevância), gerando outra técnica de legislar, quando se elaboram os ‘elencos’ taxativos de causas e questões, que ficavam excluídas do cabimento de RE, já diferentemente, a argüição de relevância fornece o caminho adequado para incluir o que tenha sido objeto de exclusão por obra do Regimento Interno, que vale como lei, neste particular." [02]
Pois bem, o art. 325 do RISTF dispunha que, nas hipóteses das alíneas a e d do inciso III da Constituição de então, caberia recurso extraordinário, entre outros, (a) nos casos de ofensa à Constituição, (b) nos casos de divergência com a súmula do Supremo Tribunal Federal, e (c) nos processos por crime a que fosse cominada pena de reclusão. Ao final de seu rol, no inciso XI, estabelecia também ser cabível o apelo extremo "em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da questão federal."
Tal argüição tinha lugar em recursos referentes a processos, cuja controvérsia, em princípio, não se achava albergada pelo elenco nominal do art. 325, I a X, do RISTF. Estava-se diante, portanto, de uma cláusula aberta que franqueava o acesso ao Supremo Tribunal Federal a certas causas, que, apesar de não constarem da enumeração regimental, tivessem a respectiva relevância provada. E, nos termos do § 1º do art. 327 do RISTF, considerava-se relevante "a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal."
À Suprema Corte, em sessão do Conselho, competia privativamente, o exame da argüição de relevância da questão federal (art. 327, caput, do RISTF). Conforme as palavras do Ministro Sydney Sanches em palestra proferida na OAB/SP, em 1987, o "julgamento de relevância de uma questão federal não é atividade jurisdicional, é ato político, no sentido mais nobre do termo. Por ele se deve chegar à conclusão sobre se uma causa, mesmo não se encaixando em qualquer das hipóteses previstas nos incisos I a X do art. 325 do RISTF, deve, apesar disso, ser examinada pelo S.T.F., em recurso extraordinário." [03] E, continuando sua conferência, o referido Ministro narrou a forma de seleção dos temas relevantes, para serem julgados pela Corte, ao lado daqueles descritos exemplificativamente pelo RISTF. O apontamento das questões federais dava-se em sessões administrativas fechadas ao público, pois não se tratava propriamente de julgamentos de casos concretos, mas, sim, de declinação abstrata da temática que seria apreciada pelo Tribunal, que divulgava o acolhimento ou não das argüições. Para ilustrar, citem-se alguns exemplos: "n. 10. Necessidade de vistoria em quebra de peso de carga em transporte marítimo. Relevância Econômica"; "n. 19. Termo inicial de correção monetária sobre honorários de advogado. Relevância jurídica"; e "n. 37. IPTU. Aumento por decreto. Relevância jurídica." [04]
Não se pode confundir, assim, a atual repercussão geral (ou transcendência) com a antiga argüição de relevância. Enquanto esta constituía um mecanismo de atribuição de admissibilidade apenas a recursos que não se encontrassem expressamente previstos na enumeração regimental, aquela é exigida de todo e qualquer apelo extraordinário, ao menos na vocação literal do novo inciso III do art. 102 da Constituição da República.
A par da revogada argüição de relevância, o ordenamento brasileiro, na atualidade, tem experimentado a polêmica acerca da trascendência do recurso de revista no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho. A respectiva disciplina foi veiculada pela Medida Provisória nº 2.226, de 04 de setembro de 2001, cuja constitucionalidade foi questionada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2527, ainda pendente de julgamento.
O mencionado diploma inseriu o art. 896-A na Consolidação das Leis do Trabalho, estabelecendo que, no recurso de revista, a Corte Superior do Trabalho examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica. Apenas quando a demanda se revestir de tal caráter será admitida a impugnação.
A celeuma que se formou quanto à transcendência na Justiça do Trabalho, a rigor, encontra fundamento em circunstâncias que não se apresentam quanto à repercussão geral do extraordinário, como, v. g., a ausência de norma constitucional relativa ao tema, ou mesmo a liberdade que a legislação conferiu ao RITST.
Com efeito, embora a Medida Provisória n. 2.226/01, em seu art. 2º, tenha imputado ao RITST a tarefa de disciplinar a transcendência, até o momento isso não ocorreu. Por óbvio, essa omissão deve-se à existência da mencionada argüição de inconstitucionalidade que tramita perante o Supremo Tribunal Federal.
Em termos práticos, portanto, o requisito da transcendência não tem sido aplicado, conforme consta da mansa e pacífica jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho.
De toda sorte, o requisito da relevância, como era chamado pelo RISTF, ou da repercussão geral, na vocação da Emenda Constitucional n. 45/2004, não foi idéia brasileira. A Suprema Corte norte-americana, há muito, orienta-se por ele, não sendo diferente com o ordenamento argentino, no qual, a propósito, "Em 1990, a lei 23.774 reformou parcialmente o procedimento do recurso extraordinário federal. A reforma afetou o art. 280 do Código Processual Civil e Comercial da Nação que dispôs, a partir de então, na parte pertinente: ‘A Corte, segundo sua discrição, e apenas com a invocação desta norma, poderá rechaçar o recurso extraordinário, por falta de gravame federal suficiente ou quando as questões suscitadas resultarem inconsistentes ou carentes de transcendência." [05]Apesar da adoção desse expediente, Eduardo Orteiza aponta a atual sobrecarga de trabalho da Corte, assim como a falta de uma política judicial capaz de superá-la. [06]
Além das idéias já expostas no início deste texto, outra investigação que se alinha é aquela referente à eficácia da novel disposição constitucional. O § 3º introduzido no art. 102 da Lei Fundamental refere-se à transcendência, nos termos da lei, ou seja, demanda norma infraconstitucional para que se concretize. Cuida-se, pois, de norma de eficácia limitada. Não se pode fugir disso. É necessário que a legislação venha regular o procedimento de aferição da transcendência, bem como dar densidade àquilo que se reputa ser a transcendência. Seria ela analisada em sessão administrativa da Corte, como ocorria com a argüição de relevância? Poderia ser a transcendência econômica, social, política ou jurídica? Caberia intervenção das partes ou de terceiros no momento de seu exame? Trata-se de perguntas que, sem dúvida, reclamam respostas legislativas.
Em qualquer caso, assim que se aprovar eventual legislação sobre a matéria, ou ainda que o Supremo Tribunal entenda que ela seja desnecessária, a transcendência não poderá ser exigida dos recursos manejados antes de sua eficácia na ordem jurídica.
Não obstante exista regra geral sobre a aplicação imediata da norma processual, é indispensável adequá-la às diversas fases ou atos processuais, especialmente aos recursos, sob pena de se desrespeitarem direitos dos jurisdicionados. A propósito, vale transcrever a lição de Galeno Lacerda, manifestada em sua clássica obra sobre a lei processual no tempo, dedicada a solucionar os conflitos de normas quando da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1973, in verbis:
"Em direito intertemporal, a regra básica no assunto é que a lei do recurso é a lei do dia da sentença. Roubier, citando dentre outros, Merlin e Gabba, afirma, peremptório, que ‘os recursos não podem ser definidos senão pela lei em vigor no dia do julgamento: nenhum recurso novo pode resultar de lei posterior e, inversamente, nenhum recurso que existe contra uma decisão poderá ser suprimido, sem retroatividade, por lei posterior’ (ob.cit., II, 728).
Isto porque, proferida a decisão, a partir desse momento nasce o direito subjetivo à impugnação, ou seja, o direito ao recurso autorizado pela lei vigente nesse momento. Estamos, assim, que não pode ser ferido por lei nova, sob pena de ofensa à proteção que a Constituição assegura a todo e qualquer direito adquirido." [07]
Na seqüência, o autor acrescenta: "Explicando o conceito de ‘dia da sentença’, resulta, desde logo, que os recursos interpostos pela lei antiga, e ainda não julgados, deverão sê-lo, consoante as regras desta, embora abolidos ou modificados pelo novo Código." [08]
Especificando ainda mais a questão da lei processual no tempo, Nelson Nery Júnior lembra que "a lei vigente no dia em que foi proferido o julgamento é a que determina o cabimento do recurso; e a lei vigente no dia em que foi efetivamente interposto o recurso é a que regula o seu procedimento." [09]
Não é outro o entendimento do Supremo Tribunal, que, no julgamento dos Embargos infringentes na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.591-RS, firmou que, a despeito de o art. 26 da Lei n. 9.868/99 tornar irrecorrível o aresto prolatado em ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade, salvo embargos de declaração, era de se admitir aquele recurso, porquanto manifestado contra acórdão proferido em data anterior ao início da vigência da então nova legislação. [10]
Em virtude do contraditório e da ampla defesa, portanto, há de se aplicar aos recursos a legislação em vigor na data de ocorrência do julgamento hostilizado e, em suma, esse pensamento aplica-se à transcendência delineada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, pois se trata de verdadeiro requisito de cabimento do recurso extraordinário, não sendo razoável nem constitucional exigi-lo dos recursos interpostos anteriormente à sua eficácia. Ele só deve ser cobrado dos extraordinários interpostos contra decisões proferidas em julgamentos ocorridos após os seus amplos efeitos jurídicos. [11]
Por fim, em prognose, talvez se possa prever que a Suprema Corte abrandará o rigor no exame do demais requisitos do recurso extraordinário, como, por exemplo, o prequestionamento, em proveito, por óbvio, da relevância das questões de mérito. É que o Supremo Tribunal Federal, na aplicação do novo instituto, perceberá sua idoneidade para selecionar aquilo que será, ou não, por ele apreciado, podendo, assim, romper com sua tradicional jurisprudência defensiva.
Notas
01 SILVA, Evandro Lins e. O recurso extraordinário e a relevância da questão federal. In: Revista Forense 255/43.
02 ALVIM, Arruda. A argüição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo: RT, 1988, p. 27.
03 SANCHES, Sydney. Argüição de relevância da questão federal. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 1988, p. 7.
04 SANCHES, Sydney. Argüição de relevância da questão federal. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 1988.
05 LEGARRE, Santiago. Una puesta en matéria de certiorari. In: RIVAS, Adolfo A. et PELLONI, Fernando M. Machado (coord.) Derecho procesal constitucional. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003, p. 313.
06 OTEIZA, Eduardo. La corte suprema de justicia de la nación: el recurso extraordinario, la sobrecarga de tareas, y la falta de una política judicial superadora. In: RIVAS, Adolfo A. et PELLONI, Fernando M. Machado (coord.) Derecho procesal constitucional. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003, p. 327/328.
07 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 68.
08 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 69.
09 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios fundamentais – teoria geral dos recursos. São Paulo: RT, 2000, p. 426.
10 Consta da ementa da ADI mencionada: "I- Ação direta de inconstitucionalidade – irecorribilidade da decisão definitiva declaratória da inconstitucionalidade ou constitucionalidade de normas, por força do art. 26 da L. 9868/99, que implicou abolição dos embargos infringentes previstos no art. 333, IV, RISTF: inaplicabilidade, porém, da lei nova que abole recurso aos casos em que o acórdão, então recorrível, seja proferido em data anterior ao do início da sua vigência: análise e aplicação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal." (ADI n. 11.591, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, ac. 27/11/2002).
11 Nesse particular, vale transcrever as palavras de J. J. Calmon de Passos, que, ao tratar da Emenda n. 3 do RISTF, referente à argüição de relevância, esclareceu: "O primeiro problema que decorre da Emenda n. 3 é o de sua aplicabilidade aos feitos pendentes. Publicada no DOU de 19.6.1975, prevê, contudo, em seu art. 2º, se inicie sua vigência a 1º de agosto do mesmo ano, ressalvando, entretanto, que suas disposições não se aplicam a causas cujas decisões tenham sido proferidas até 31.7.1975." (O recurso extraordinário e a emenda n. 3 do regimento interno do supremo tribunal federal. Revista de Processo 5/48).