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Absolvição por não existir prova suficiente para a condenação do servidor público e a sua ampla repercussão no processo administrativo disciplinar.

Inconstitucionalidade do art. 386, VI, do Código de Processo Penal e de parte do art. 126 da Lei nº 8.112/90

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21/11/2005 às 00:00
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III. – DA VIOLAÇÃO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DA COISA JULGADA – INCONSTITUCIONALIDADE DE PARTE DO ARTIGO 126, DA LEI Nº 8.112/90

O art. 126, da Lei nº 8.112/90 (Regime Jurídico Único do servidor público Federal) estabelece que a responsabilidade administrativa do servidor público será afastada na hipótese apenas de absolvição criminal que negue a existência do fato ou de sua autoria, deixando de admitir a absolvição por não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal (CPP, art. 386, IV) e por não existir prova suficiente para a condenação (CPP, art. 386, VI).

Tal situação se afigura como inconstitucional e violadora de preceitos infraconstitucionais constitucionalizados, pois o inciso LVII, do art. 5º, da CF é claro em estabelecer que: ninguém será considerado culpado até o trânsito emjulgado de sentença penal condenatória.

Funciona a presunção de inocência como um dos direitos mais fundamentais para a sociedade e para o cidadão em específico, sendo que ela nasceu dos ideais da Revolução Francesa (1789-1799) como uma forma de acabar com o processo penal inquisitivo do Antigo Regime, que passou a ser acusatório.

Os princípios informadores da presunção de inocência também desde suas origens estão presentes na Constituição não escrita dos ingleses e se traduzem na garantia de certeza para um veredicto condenatório: beyond any reasonable doudt.

E pela Emenda V, da Constituição dos Estados Unidos da América, se reconheceu o direito a todo cidadão ao due process of law, que segundo interpretação da Suprema Corte daquele país, pressupõe a presunção de inocência, verbis: "Nadie puede ser condenado si la acusación no há probado su culpabilidad más allá de cualquier duda razonable".

Estas influências, foram suficientes para que o art. 9º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 se positivasse, de uma vez por todas, preconizando pela necessidade de se estabelecer a presunção de inocência nos seguintes termos: "Tout homme étant présumé innocent jusqu’à ce qu’il ait été déclaré coupable [...]." [33]

A referida Declaração resulta de um triunfo das lições de Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, (dentre outros) que havia afirmado em sua obra publicada em 1764, "Dei Delitti e delle Pene", a necessidade de se conferir aos acusados direitos e garantias.

Quanto à presunção de inocência, erigida a preceito fundamental do cidadão, assinala Beccaria: [34] "A um homem não se pode chamar culpado antes da sentença do juiz, nem a sociedade pode negar-lhe a sua protecção pública, senão quando se decidir que violou os pactos com os quais se outorgou. Qual é, pois, o direito, senão o da força que dá potestas ao juiz para impor uma pena a um cidadão enquanto há dúvidas se é réu ou inocente? Não é novo esse dilema: ou o crime é certo ou incerto. Se certo, não convém que se lhe aplique outra pena diferente daquelas que se encontram previstas na lei, e é inútil a tortura porque inútil a confissão do réu; se é incerto, não se deve atormentar um inocente, pois ele é, segundo a lei, um homem cujos direitos não estão provados."

Depois da Segunda Grande Guerra Mundial, se produziu na Europa a constitucionalização dos direitos fundamentais da pessoa humana e a tutela de garantias mínimas que deve guarnecer todo o processo judicial.

Tendo a nossa Constituição Federal positivado o princípio sub oculis todo o ordenamento infraconstitucional, aí incluído não só o Direito Penal, o Direito Processual Penal como o Direito Administrativo, estão obrigados "a absorver regras que permitam encontrar um equilíbrio saudável entre o interesse punitivo estatal e o direito de liberdade", [35] dando plena ênfase a sua aplicabilidade.

Funciona, portanto, o princípio da presunção de inocência como um elemento essencial em todo ordenamento jurídico, [36] aí incluído o Direito Administrativo.

Desta maneira, como o estado de inocência gera presunção juris tantum, após o título judicial que absolve o acusado, inclusive pela falta/insuficiência de prova, a aludida presunção se torna um dogma, assumindo a posição de certeza (juris et de jure).

Adquirindo a certeza da inocência pelo título judicial penal, não vemos como ele poderá ser alterado na instância administrativa disciplinar. A redação de parte do art. 126, da Lei nº 8.112/90 é inconstitucional por limitar o princípio da presunção de inocência no âmbito administrativo e deixar de fora do seu raio de ação a absolvição por falta/insuficiência/inexistência de provas. A absolvição, independente da parte dispositiva da sentença penal, gera o reflexo imediato e positivo para a sociedade de que o réu não era culpado da imputação que lhe fora feita pelo representante do Ministério Público Estadual e ou Federal.

Em abono ao que foi dito, Miguel Angel Montañés Pardo, [37] se baseando em decisões do Supremo Tribunal Constitucional da Espanha, ensina: "La extensión del derecho a la presunción de inocencia al âmbito administrativo sancionador garantiza ‘el derecho a no sufrir sanción que no tenga fundamento en una previa actividad probatória sobre la cual el órgano competente pueda fundamentar un juicio razonable de culpabilidad’ (STC 212/1990), dado que toda resolución sancionadora ‘requiere a la par certeza de los hechos imputados, obtenidas mediante pruebas de cargo, y certeza del juicio de culpabilidad sobre los mismos hechos, de manera que el artículo 24.2 CE rechaza tanto la responsabilidad presunta y objetiva como la inversión de la carga de la prueba en relación con el presupuesto fáctico de la sanción’ (STC 76/1990, antes citada)." –(aspas no original)-

No mesmo sentido, Jorge de Figueiredo Dias [38] preconiza a inconstitucionalidade material de toda lei ordinária que viole as garantias de defesa do acusado, bem como da presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença criminal: "As duas normas constitucionais mais importantes neste domínio, são o art. 32,1, proclamando que ‘o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa’, e o art. 32,2, segundo o qual ‘todo o argüido se presume inocente até o trânsito em julgado da sentença de condenação.’ Daqui resulta que toda a lei ordinária que afete o ‘conteúdo essencial’ (art. 18, 2) destas garantias padeça de inconstitucionalidade material." -(aspas no original)-

Na mesma direção, seguiu a decisão do HC nº 29.588/SP, [39] sob a relatoria do Min. Paulo Medina: "...O princípio da presunção de inocência constitui garantia individual de porte constitucional, que não pode ser destruído por mera presunção de culpa, sob pena de configurar punição antecipada, vedada pelo ordenamento jurídico vigente [...]."

Não resta dúvida que o reflexo da decisão penal no Direito Administrativo sancionador é uma conseqüência da subordinação dos atos administrativos ao resultado produzido na via judicial, quando os fatos jurídicos forem os mesmos e previstos como ilícitos penais.

A responsabilidade disciplinar do servidor público pode ser oriunda de uma violação de normas estabelecidas tanto no Direito Administrativo, como no Direito Penal. Esta violação de deveres funcionais estabelece a infração disciplinar, que como visto, pode gerar múltiplas incidências (disciplinares e penais). Constituindo-se na violação de um ou mais deveres, a cujo cumprimento o servidor público se encontra vinculado, a infração disciplinar é formal, decorrente de uma ação ou de uma omissão ocasionada em razão da função exercida.

Quando se tratar de um ilícito previsto como crime, a ordem jurídica une o Direito Administrativo ao Direito Penal para que uma mesma ilicitude, com reflexos nas duas instâncias, seja decidida pelo Poder Judiciário, afim de estabelecer a devida segurança jurídica e a paz social.

Esta solução decorre do caráter subsidiário do Direito Penal, que, de acordo com a unidade da ordem jurídica (unidade de ilícitos criminais e administrativos), submete-se a um único Regime Jurídico Constitucional.

Segundo este entendimento, um simples ato administrativo pode funcionar como causa de exclusão da ilicitude criminal, bem como a declaração de inexistência ou da falta de prova de um ilícito penal possui o efeito de retirar a tipicidade de uma infração disciplinar. Isto porque estamos direcionando o problema para o fato considerado como ilícito no âmbito penal que também se desdobra no Direito Administrativo como uma infração disciplinar.

Assume grande relevância o que afirmamos quando se infere que compete tanto ao legislador como ao intérprete do direito a tarefa de harmonizar as diferentes condições violativas, à luz dos princípios da hierarquia normativa, para que seja aplicada a norma mais adequada ao fato concreto.

Esta harmonização do direito é uma obrigação quando se trata de um mesmo fato investigado, mesmo que ele reflita em dois campos distintos do direito. Esta imbricação visa privilegiar o princípio da igualdade como valor de justiça, pois não é jurídico, crível e nem moral, que o servidor público seja absolvido perante o Direito Penal e condenado pelo Direito Administrativo pelo mesmo e idêntico fato ilícito.

Esta deformidade jurídica acaba por desmerecer e desacreditar o próprio Direito Administrativo Disciplinar, que existe para tutelar a Administração Pública, visto que declarado inexistente o ilícito penal, por não restar provado, não há como ser alterado este dogma na instância extrajudicial (administrativa).

O princípio da unidade da infração disciplinar foi concebido pelo Direito Administrativo com a finalidade de proteger a capacidade funcional da Administração Pública, "o qual impõe a consideração global das diferentes violações de deveres cometidas por um agente administrativo, atenta até a continuidade da relação", [40] aplicando-se, via de conseqüência, esta orientação quando houver reflexo para outra esfera do direito, quando o ilícito investigado for o mesmo.

Admitir o isolamento de uma infração disciplinar prevista como ilícito pelo ordenamento jurídico, pelo fato das instâncias serem independentes, viola o subprincípio constitucional da segurança jurídica. Por esta razão é que o legislador infraconstitucional estabeleceu a ligação estreita do Direito Penal ao Direito Administrativo quando é afastada a autoria ou negado o fato ilícito investigado (art. 126, da Lei nº 8.112/90). Sucede, que ao deixar de aplicar os reflexos de uma absolvição criminal se os fundamentos da parte dispositiva da decisão penal forem por exemplo, os contidos nos incisos IV ou VI, do art. 386, do CPP fere-se o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), visto que o servidor público é e será sempre inocente, até que haja sentença criminal condenatória transitada em julgado. Assim sendo, a absolvição criminal possui a finalidade de declarar a inexistência formal de um determinado ilícito.

Mesmo sendo independentes, a instância administrativa é obrigada a respeitar os princípios constitucionais da proporcionalidade e da presunção de inocência, dentre outros, como defendido corretamente por Luís Vasconcelos Abreu: [41] "O que importa, porém, é verificar o respeito pelas exigências decorrentes do princípio constitucional da presunção de inocência, designadamente aferir da proporcionalidade das conseqüências jurídicas [...] atentos os resultados que com o mesmo se obtêm, tendo presente a autonomia dos ilícitos disciplinar e penal, e, conseqüentemente, dos respectivos processos. Ora, a referida independência não se compadece com automatismo, violadores do princípio da proporcionalidade, do qual decorre a exigência de um juízo em concreto acerca da adequabilidade, necessidade e proporcionalidade proveniente dita, ou seja, ponderação dos custos e benefícios, numa óptica disciplinar [...]."

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Em nossa 2ª edição dos "Comentários à Lei nº 8.112/90" [42] deixamos bem claro que o pensamento jurídico atual estabelece o fim do dogma da incomunicabilidade das instâncias, pois elas se relacionam e se influenciam em algumas hipóteses legais. Uma delas é quando o servidor público é absolvido da prática de um ilícito penal, pois que são apagados os resquícios da culpa funcional na esfera administrativa se os fatos investigados forem os mesmos. Bem como o provimento de um determinado recurso administrativo pode retirar a ilicitude penal, atitude de uma prematura representação criminal do órgão administrativo, exemplo: sonegação fiscal, crime contra o sistema financeiro nacional, etc.

Isto porque, o lançamento tributário ou a autuação administrativa, pendente de recurso por parte do contribuinte servidor público, para a instância competente, suspende a exigibilidade do crédito tributário, fazendo com que inexista ilícito penal ou administrativo, até o exaurimento da respectiva instância interna. No caso de provimento do recurso sub oculis, fica caracterizado, por completo, a inexistência do ilícito, tanto penal quando administrativo.

Essa nova fase do Direito Público afasta a ultrapassada visão de que a independência das instâncias possui a força de não deixar penetrar uma na outra, com as necessárias influências, pois o direito visa uma solução justa.

Como forma de evitar sanções injustas e despropositadas, o ius puniendi do Estado, manifesto através de seus órgãos (instâncias), fica limitado pelo direito e pela proporcionalidade dos seus atos: "Para la protección de dichos intereses el Estado se reserva la capacidad de crear y ejecutar sanciones, en aquellos supuestos en que una conducta dañe o incumpla las prescripciones derivadas de las normas jurídicas. Es el donominado ius puniendi estatal, que se manifesta a través de diversos órganos y dentro del marco jurídico delimitado por el orden constitucional, de ahí necesidad de coordenación ‘para que todos los conjuntos normativos que incidan en una misma realidad se edifiquen sobre un global y claro conocimiento de la misma y tiendan hacia metas idénticas o armónicas’, así como de determinación de los condicionamientos que inciden en dicha capacidad. De esta forma se evitarán situaciones injustas o lesivas de los derechos individuales, como puede ser la imposición de una sanción desproporcionada en función del daño cometido, situación proyectada en lo principio tradicionalmente denominado ne bis in idem." [43] –(itálico e aspas no original)-

Ainda, em defesa da unidade fundamental do direito, quando é debatido o direito sancionatório, Enrique R. Aftalión, [44] sustenta também posição de supremacia do Direito Penal: "... la tesis que sostengo-de la unidad fundamental de todo el Derecho Representativo: delitos y faltas, leyes penales nacionaes y disposiciones locales – encuentra un sólido fundamento en esa continua recurrencia a las normas de la Parte General del Código Penal, recurrencia que es un dato de nuestra experiencia jurídica, de nuestro Derecho tal como es vivido y aplicado por los jueces."

Esta unidade da pretensão punitiva do Estado através do direito ganhou contorno de solidez na jurisprudência do Tribunal Europeu de Direito Humanos, que mais preocupada com os valores humanos, estabeleceu limites à possibilidade do Poder Público punir duplamente sobre o mesmo ilícito disciplinar e penalmente. Isto se dá pelo fato das infrações penais e administrativas não terem diferença ontológica entre si.

Em nosso Direito brasileiro, também não há diferença ontológica e sim dogmática, visto que o art. 1º, da Lei de Introdução ao Código Penal [45] considera como crime a infração penal a que a lei comina com a pena de reclusão ou de detenção, [46] se depreendendo que a sua regulação se faz pela lei penal, ao passo que a infração disciplinar que não esteja classificada como tal é regulada pelas normas do Direito Administrativo. Sendo que a plena autonomia do Direito Administrativo [47] se estabelece quando o ilícito é puramente disciplinar, sem se desdobrar em ilícito criminal.

Constituindo subespécies do ius puniendi estatal, os princípios do Direito Penal se aplicam ao Direito Administrativo disciplinar, "con ciertos matizes o modulaciones." [48]

Referendando o que foi analisado, Fábio Medina Osório, [49] aduz: "Não há diferenças substanciais que separam o ilícito penal do ilícito administrativo, mas apenas o critério dogmático. Assim o é, também, no direito brasileiro, em que vinga o critério dogmático da sanção carcerária prevista no art. 1º, da Lei de Introdução ao Código Penal, cujo comando estabelece claramente a linha que separa ilícitos penais e administrativos."

Assim, o ius puniendi do Estado deve ser compatibilizado com os preceitos fundamentais que são concedidos para tutelar o direito de liberdade da coletividade, ou em outras palavras, havendo a declaração judicial de inocência de um servidor público, que foi processado por ter praticado –em tese- determinado ilícito penal, que também serve de suporte para a instauração do processo administrativo disciplinar, ela deve refletir, como conseqüência legal do que foi decidido no âmbito penal.

O respeito ao texto constitucional é que dá validade aos atos estatais, constituindo-se em obrigação para as normas legislativas infraconstitucionais. O procedimento administrativo deve respeitar a prova produzida no decorrer da instrução criminal, ou seja, da instância judicial, pois ela serviu de base para a sentença penal, quer absolutória, quer condenatória.

Os princípios e as normas constitucionais possuem grande valor normativo, constituindo-se à própria realidade jurídica, com reflexos em todos os ramos do direito. E o ato administrativo discricionário, em seu todo, fica vinculado aos critérios objetivos dos princípios constitucionais, não como uma forma de limitação, mas sim como um aperfeiçoamento da medida a ser adotada. Este respeito constitucional assume particular relevo no âmbito disciplinar, posto que somente será possível verificar a existência de uma infração prevista como crime se a sentença penal não absolver o réu. A partir do momento em que a presunção de inocência só pode ser elidida após o "Trânsito em Julgado de Sentença Penal Condenatória", falta reserva de Constituição para a instância administrativa disciplinar estabelecer o contrário.

O princípio da supremacia da Constituição se exprime também pela reserva deconstituição, que segundo J. J. Gomes Canotilho [50] se revela através de dois princípios: o princípio da tipicidade constitucional de competência e o princípio da constitucionalidade das restrições a direitos, liberdades e garantias: "O princípio fundamental do estado de direito democrático não é o de que a Constituição não proíbe é permitido (transferência livre ou encapuçada do princípio da liberdade individual para o direito constitucional), mas sim o de que os órgãos do estado só têm competência para fazer aquilo que a Constituição lhes permite [...] No âmbito dos direitos, liberdades e garantias, a reserva de constituição significa deverem as restrições destes direitos ser feitas directamente pela Constituição ou através de lei, mediante autorização constitucional expressa e nos casos previstos pela Constituição."

Esta reserva de Constituição (Verfassungsvorbehalt) vincula os órgãos legislativos, que apesar de serem dotados de discricionariedade peculiar à função política que exercem, dentro da margem de ação permitida pela Constituição, estão obrigados a cultuar os princípios fundamentais estabelecidos na Lei Fundamental.

Os direitos fundamentais asseguram a liberdade e a dignidade humana, como dito por Konrad Hesse: [51] "Los derechos fundamentales deben crear y mantener las condiciones elementares para asegurar una vida en liberdad y la dignidad humana."

Fica, via de conseqüência o Estado limitado pelos direitos fundamentais do cidadão, como inclusive é explicitado por Juarez Freitas: [52] "De conseguinte, imperativo esclarecer que da subordinação dos agentes públicos à lei e ao direito a discricionariedade resulta invariavelmente vinculada aos princípios constitutivos do sistema e aos direitos fundamentais."

Em vista disto, a parte do art. 126, da Lei nº 8.112/90 que não permite o reflexo da decisão criminal que absolve o servidor público por não existir prova suficiente para a condenação (CPP, art. 386, VI) é inconstitucional por afrontar o princípio da presunção de inocência e a coisa julgada material da sentença penal.

Quanto à eficácia no Direito Penal da sentença absolutória a doutrina entende haver duas espécies: absolvição própria e absolvição imprópria.

A absolvição própria é aquela que a sentença penal libera o denunciado da imputação. Por sua vez, já a absolvição imprópria é definida por Maurício Zanoide de Moraes et al, [53] como: "a sentença penal que, a despeito de conhecer causa excludente de culpabilidade (inimputabilidade), o que pelo legislador de 1984 elimina o crime (fato típico, antijurídico e culpável), não deixa de reconhecer a prática de um injusto penal (ato típico e antijurídico) praticado pelo acusado e que gera a necessidade de aplicação de uma medida legal para seu tratamento, a ‘medida de segurança’ (art. 386, parágrafo único, III, c/c os arts. 96 a 99, do CP)." –(aspas no original)-

Portanto, o caso sub oculis versa sobre os efeitos da eficácia de sentença penal qual seja, o que possui os efeitos da absolvição própria.

Ora, a decisão judicial faz coisa julgada "acarretando a proibição de outra decisão sobre a mesma causa em outro eventual processo." [54]

Ou, segundo Claus Roxin: [55] "El agotamiento de la acción penal, originada por la cosa juzgada material, repercute como un impedimento procesal amplio (jurisprudencia constante desde la sentencia RGST2, 347; cf BGHST5, 328; BverfGE3, 251); un nuevo procedimiento es inadmisible, una nueva sentencia de merito está excluida: ne bis in iden (= bis de ladem re ne sit actio). Si, no obstante, de merito, ella es nula, según la opinión dominante. Es indiferente para ello que el fallo firme sea condenatoria o absolutoria. El art. 103, II, GG, proibe también la realización simultánea de dos procesos por el mismo hecho; por consiguiente, también es inadmisible una duplicación de la orden de detención por el mismo hecho y contra el mismo imputado (BGHS 38,54). La cosa juzgada material sirve a la protección del, como ya lo demuestra su aseguramiento a través de un derecho básico (cf. Art. 103, III, y 93, I, nº 4ª, GG); con ello se reconoce jurídico-fundamentalmente su interés a ser desejado en paz después del dictado de una decisión de mérito que ya no es más impugnable. La cosa juzgada cumple, a la vez, una función sancionatoria: el risgo de que quede excluida la posibilidad de un esclarecimiento posterior de los hechos a través de investigaciones complementarias debe llevar a los órganos de la persecución pena a una realización realmente meticulosa ya una valoración correcta del hecho [...]." -(itálico no original)-

Ora, se a coisa julgada material imutabiliza o tipo penal que foi objeto de apreciação no processo penal, impedindo que haja nova acusação sobre o mesmo fato, não resta dúvida que o mesmo ilícito penal que é investigado na instância administrativa supletivamente, fica prejudicado após o esgotamento da via judicial. Não se admite, pela coisa julgada, que ocorra posição diferente da que é estabelecida no título judicial. Como as instâncias situam-se paralelamente, no caso de uma demissão ou de outra sanção administrativa aplicada após a regular tramitação do processo administrativo disciplinar, antes da conclusão definitiva do processo penal, a decisão desta última esfera penal deverá repercutir integralmente, servindo de base de uma futura revisão administrativa, que poderá ser a requerimento do servidor punido ou ex officio.

O que é inadmissível é a não repercussão do título judicial na esfera extrajudicial (administrativa) se a conseqüência do decisum é trazer paz para a sociedade e certeza sobre os fatos litigiosos, estabilizando as relações jurídicas dos servidores com o poder público. Assim, a absolvição deve abarcar o objeto do processo e sua totalidade, inclusive as sanções ou conseqüências acessórias, como se infere, inclusive, das lições de Claus Roxin: [56] "La cosa juzgada abarca tal objeto procesal en su totalidade. Abarca también las sanciones acesorias y las consecuencias accesorias [...]. La cosa juzgada abarca el hecho bajo todos los puntos de vista jurídicos."

Como o Direito Administrativo Disciplinar utiliza-se supletivamente do Direito Penal quando se trata de ilícito penal ele passa a ser acessório, visto que compete ao Poder Judiciário julgar o ilícito levado à sua jurisdição.

Dessa forma, a coisa julgada sobre os fatos e fundamentos vinculados no provimento judicial que afastou a responsabilidade penal do acusado, mesmo que por não existir prova suficiente para a condenação, a teor do art. 5º, XXXVI, da CF, retira o resíduo [57] da instância disciplinar.

Desqualificar o título judicial, como o disposto em parte do art. 126, da Lei nº 8.112/90 faz, quando é absolvido o réu por não existir prova de ter o mesmo concorrido para a infração penal ou por não existir prova suficiente para a condenação (CPP, art. 386, incisos IV e VI) é inadmissível, tendo em vista que o acusado, sobre o ilícito julgado, se encontra em estado de inocência, não existindo a certeza absoluta tão necessária e imprescindível para qualquer punição administrativa.

A inexistência de prova suficiente ou a falta de provas do fato delituoso acarreta a absolvição do servidor acusado, devendo ser aplicada a carga declaratória do julgado na jurisdição administrativa, que, como dito alhures, é acessória: "Quanto à independência das instâncias civil, penal e administrativa, tal independência não tolhe a influência da coisa julgada penal no Juízo Civil e na jurisdição administrativa. As aludidas instâncias são efetivamente distintas, não só para os efeitos do direito disciplinar, mas, igualmente, para os efeitos da coisa julgada penal na instância criminal." [58]

Também adere à este posicionamento (presente ótica), embora sob outro fundamento, Nelson Hungria: [59] "Pena administrativa e pena criminal: - Se nada existe de substancialmente diverso entre ilícito administrativo e ilícito penal, é de negar-se igualmente que haja uma pena administrativa essencialmente distinta da pena criminal."

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho também ratifica o que foi dito pela doutrina clássica: "Com efeito, na absolvição por falta de provas (in dubio pro reo), a opção é dada pela própria lei, em face de não ter o juiz - e a acusação - produzido provas capazes de fundar um juízo condenatório. E tanto é vero o acertamento que a sentença absolutória, na hipótese, passa em julgado materialmente. Destarte, a regra é que a atividade jurisdicional de acertamento dos casos penais é indeclinável". [60] –(itálico no original)-

Tem-se que a coisa julgada é pois a verdade material de um determinado direito, se projetando entre as partes para reger determinada relação jurídica. In casu, a absolvição, por falta/inexistência de provas, de um ilícito penal, se projeta também para a instância administrativa, que não poderá desconsiderar seus efeitos.

O poder-dever de punir encontra limites na própria conduta do acusado, que se não cometer ilícito previsto pela lei penal estará imune a respectiva condenação, mesmo na instância administrativa, tendo em vista que a coisa julgada afasta qualquer resíduo de responsabilidade penal sobre os mesmos fatos, apesar de discutidos em instâncias independentes.

A intercomunicação das instâncias é uma conseqüência lógica da segurança jurídica, pois mesmo elas sendo independentes, a responsabilidade penal e administrativa do servidor público quanto à autoria da conduta não é objetiva e sim subjetiva. Sem a prova de sua responsabilidade criminal, o processo criminal onde o servidor público foi denunciado não poderá ter outro desfecho senão a absolvição; fato este que reflete na jurisdição administrativa, quando o ilícito penal for o mesmo, pois só se pune com certeza. Sendo que a presunção de certeza é elidida pelo julgado penal, no âmbito administrativo disciplinar.

Por esta razão é que o Estado Democrático de Direito efetua o devido controle da legalidade no âmbito administrativo, quando se trata da aplicação de penalidades disciplinares.

Nestas condições, parte do artigo 126, da Lei nº 8.112/90 é inconstitucional, por afrontar também a coisa julgada material do título penal (CF, art. 5º, XXXVI).

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Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Absolvição por não existir prova suficiente para a condenação do servidor público e a sua ampla repercussão no processo administrativo disciplinar.: Inconstitucionalidade do art. 386, VI, do Código de Processo Penal e de parte do art. 126 da Lei nº 8.112/90. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 871, 21 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7570. Acesso em: 6 mai. 2024.

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