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Eutanásia, ortotanásia e distanásia.

Breves considerações a partir do biodireito brasileiro

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4. Eutanásia e ortotanásia no Direito Penal projetado

Em 1984, juntamente com a proposta de reforma da Parte Geral do Código Penal, havia também um anteprojeto para modificação da Parte Especial. A modificação da Parte Especial não ocorreu. Esse anteprojeto da Parte Especial do Código Penal Brasileiro previa expressamente a ortotanásia, no art. 121, § 4º: "Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém, por meio artificial, se previamente atestada, por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do doente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão".

Observe-se que o texto se referia à definição dada à ortotanásia e não à eutanásia. O parágrafo 3º previa a situação em que o processo de morte já se iniciou, estando a vida mantida artificialmente, sem chance de cura ou melhora. Nesta situação há apenas o prolongamento do processo de morte natural, por via artificial. Não é a previsão da eutanásia, em que tal processo ainda não se iniciou, embora sofra o paciente de doença incurável. Na eutanásia produz-se a causa imediata da morte, o que é crime, encaixando-se a conduta na previsão do homicídio privilegiado do texto do Código Penal atual.

O Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal Brasileiro prevê, no art. 121:

"Eutanásia

§ 3º Se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave:

Pena – Reclusão de três a seis anos.

Exclusão de ilicitude

§ 4º Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão".

Quanto ao parágrafo 3º, entende-se que o fato de a doença ser grave apenas não deve ser suficiente para o privilégio da pena reduzida do crime de homicídio, devendo a doença ser também incurável e tratar-se de paciente terminal.

Deve-se lembrar que a lei de transplante de órgãos determina que o médico que atesta a morte não pode pertencer à equipe de médicos responsável pelos transplantes de órgãos.

A ortotanásia, prevista no parágrafo 4º, é causa de exclusão de ilicitude.

Verifica-se que em ambos os casos há a exigência do "pedido da vítima" e do "consentimento do paciente", tanto para a configuração da eutanásia quanto para a configuração da ortotanásia, que é excludente de ilicitude, se bem que, neste último caso, a proposta admite que o consentimento seja dado por ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão. Esta tipificação de eutanásia difere das definições que a maioria da doutrina dá para a expressão: necessariamente, não se exige o consentimento do paciente na maioria das definições.

No Código Penal atual, o pedido da vítima não afasta a ilicitude, sendo o consentimento, no texto, irrelevante para a caracterização do que se chama de eutanásia. Este detalhe, na verdade, é um dos mais difíceis, na prática, com o qual lidar: como valorar o consentimento?

Maria Helena Diniz informa que em 1991, foi aprovada uma lei nos Estados Unidos sobre a autodeterminação do paciente, The Patient Self-Determination Act – PSDA. Segundo a lei, no momento da admissão do paciente, o hospital deve informá-lo sobre seu direito de aceitar ou recusar o tratamento, visando-se, com isso, à garantia da autodeterminação do paciente e à participação deste nas decisões quanto à sua saúde e à sua vida. A lei recomenda, inclusive, que o paciente se utilize de "ordens antecipadas (advance directives)" sobre o tratamento 15. De acordo com a autora, com base na lei PSDA, o paciente pode estabelecer sua decisão de três formas: a) declaração expressa do próprio paciente, através de testamento vital (living will); b) decisão por parte do representante legal específico, ou seja, de um curador com competência específica de tomar decisões quanto à saúde do paciente, figura admitida também no Código Civil de Quebec; c) decisão do paciente, dirigida ao médico, após consulta a este, sobre o tipo de tratamento que deseja receber num futuro estado terminal, em documentos escrito 16.

No entanto, a defesa da autonomia do paciente não pode afastar uma indagação feita por Maria Helena Diniz quanto a possíveis defeitos na formação da declaração de vontade do paciente: "Poder-se-ia exaltar esse poder decisório do doente, ante o fato de que a autonomia de sua vontade pode ser uma arma contra ele mesmo, porque a decisão, em regra, vale conforme o seu grau de esclarecimento ou informação?" 17. Portanto, é imprescindível a preocupação com as circunstâncias em que se forma a vontade do paciente, devendo-se afastar, ao máximo, todos os fatores que possa interferir ou reduzir sua capacidade de compreensão e de decisão livre.


5. Testamento vital

Ao lado da figura do consentimento informado e esclarecido, aparece o testamento vital, também chamado de testamento biológico, testamento em vida, living will, testament de vie.

O testamento vital é um documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não tratamento que deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade. Visa-se, com o testamento vital, a influir sobre os médicos no sentido de uma determinada forma de tratamento ou, simplesmente, no sentido do não tratamento, como uma vontade do paciente que pode vir a estar impedido de manifestar sua vontade em razão da doença.

No Brasil não há regulamentação sobre o testamento vital, mas admitimos sua validade, diante da autonomia da pessoa e do princípio da dignidade.

Nos Estados Unidos esse documento tem valor legal, tendo surgido com o Natural Death Act, na Califórnia, na década de 1970. Exige-se que o testamento vital seja assinado por pessoa maior e capaz, perante duas testemunhas independentes e que só tenha efeitos depois de quatorze dias da assinatura, sendo revogável a qualquer tempo. Além disso, tem um valor limitado no tempo, de aproximadamente cinco anos. O estado de fase terminal deve ser atestado por dois médicos. O médico que desrespeita as disposições do testamento sofre sanções disciplinares 18.

O testamento vital, ao lado de evitar os procedimentos médicos desmedidos, evita que o médico seja processado por não ter procedido a um procedimento em paciente em fase terminal, conforme solicitado por este no documento.

Maria Isabel de Azevedo Souza, ao reconhecer o direito de autodeterminação do paciente, inclusive quanto ao momento de sua morte, afirma que, nesse caso,

"tem lugar a discussão acerca da manifestação antecipada da pessoa sobre as medidas a serem tomadas para o caso em que não possa mais se manifestar através dos chamados testamentos vitais (living-will) e do consentimento por substituição" 19.

Tereza Rodrigues Vieira conta que, nos Estados Unidos, a organização Choice in Dying orienta sobre os direitos de pacientes terminais e oferece modelos de procurações para que outras pessoas possam tomar decisões médicas em nome do paciente, caso este fique incapaz de tomá-las 20.

Maria Helena Diniz apresenta um modelo de documento que pode ter a mesma finalidade, chamado "Diretrizes Antecipadas Relativas a Tratamentos de Saúde e Outorga de Procuração", pelo qual uma pessoa poderia se posicionar sobre tratamentos médicos a que viesse se submeter, independentemente das conseqüências de sua recusa ao tratamento e independentemente do posicionamento contrário de seus familiares 21.

Maria Celeste Cordeiro dos Santos apresenta, em sua obra O equilíbrio do pêndulo: a bioética e a lei, implicações médico-legais, um exemplo de testamento vital. 22


Conclusão

O livre desenvolvimento da personalidade humana está intrinsecamente ligado à idéia de autonomia do sujeito, de âmbito de autodeterminação jurídica, pois a liberdade é imprescindível para a materialização dos direitos de personalidade, para o livre desenvolvimento da pessoa, para sua dignidade.

É necessário refletir sobre o grau de autonomia jurídica que a pessoa tem quanto ao processo de morte. Afastando-se a eutanásia, a idéia de morte digna permite à pessoa a autodeterminação a respeito dos últimos momentos de sua vida, com poderes, inclusive, para elaborar documentos que vinculem terceiros, como no caso do testamento vital. O reconhecimento da autonomia da pessoa quanto a esses momentos é imprescindível para a garantia de sua dignidade. Por isso, embora no Brasil, atualmente, a eutanásia e o auxílio ao suicídio sejam considerados condutas ilícita, não o é a ortotanásia, procedimento utilizado para se afastar a distanásia.

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Deve-se compreender que a dignidade da pessoa humana não é um conceito objetivo, absoluto, geral, possível de ser abstraído em padrões morais de conduta e a serem impostos a todas as pessoas. Sem a consideração da alteridade e da tolerância, ignorando-se a pluralidade e a complexidade da sociedade atual, o uso do princípio da dignidade humana pode ser usado para a negação da pessoa, para a homogeneização dos indivíduos e para a negação da dignidade.


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Notas

  1. Cf. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos (org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: RT, 2001.

  2. BAUDOUIN, Jean-Louis, BLONDEAU, Danielle. Éthique de la mort et droit à la mort. Paris: Press Universitaires de France, 1993, p. 89.

  3. Ibidem, loc. cit.

  4. Ibidem, p. 107.

  5. ENCICLOPEDIA del diritto. Aggiornamento. V. I. Italia: Giuffrè, 1997. Vocábulo Bioetica (diritto internazionale), p. 253.

  6. MEIRELLES, Jussara, TEIXEIRA, Eduardo Didonet. Consentimento livre, dignidade e saúde pública: o paciente hipossuficiente. In: RAMOS, Carmem Lúcia Nogueira et al (orgs.). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 371.

  7. BAUDOUIN, J. L., BLONDEAU, D. Op. cit., p. 104.

  8. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 307.

  9. Ibidem, p. 316.

  10. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. O equilíbrio do pêndulo: a bioética e a lei, implicações médico-legais. São Paulo: Ícone, 1998, p. 107.

  11. Ibidem, p. 110.

  12. VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e direito. São Paulo: Jurídica Brasileira, 1999, p. 90.

  13. MATEO, Ramón Martín. Bioética y derecho. Barcelona: Ariel, 1987, p. 106.

  14. Op. cit., p. 105.

  15. Op. cit., p. 335.

  16. Ibidem, p. 336-337.

  17. Ibidem, p. 337.

  18. BAUDOUIN, J. L., BLONDEAU, D. Op. cit., p. 93.

  19. Op. cit., p. 316.

  20. Op. cit., p. 90.

  21. Op. cit., p. 206-207.

  22. P. 13-14.

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Sobre a autora
Roxana Cardoso Brasileiro Borges

doutora em Direito Civil pela PUC/SP, mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela UFSC, coordenadora do Curso de Especialização em Direito Civil da UFBA, professora nos Cursos de Direito da UFBA, UCSal e FTC, advogada em Salvador (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Eutanásia, ortotanásia e distanásia.: Breves considerações a partir do biodireito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 873, 21 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7571. Acesso em: 27 abr. 2024.

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