Ética médica: segredo médico, Bioética e Direito

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07/09/2019 às 14:06
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4. Casos de Revelação “Quebra do Sigilo” permitidos segundo o CEM

O sigilo é absoluto ou relativo? Sobrevém daí o valioso ensinamento de profundo conhecedor da área médica, Miguel Kfouri Neto13,

“Basicamente, existem duas correntes em tema de segredo médico: a absolutista, que considera o dever de sigilo questão de ordem pública, não se admitindo revelação, e a relativista, que aceita o sigilo médico relativo, que poderá ceder, diante de valores jurídicos, éticos, morais e sociais de relevo. Já houve quem defendesse a abolição, pura e simples, desse dever de sigilo (escola abolicionista), sem lograr êxito, contudo.”

Como afirmou (KFOURI, 2003, p. 180), “não encontramos, na Jurisprudência, nenhum aresto ferindo consequências patrimoniais pela revelação de segredo médico”. Entretanto tudo está em constante mutação e no acórdão da Apelação n. 1.0024.06.025816-7/001 ou (numeração única: 0258167-10.2006.8.13.0024), da 15ª Câmara de Minas Gerais, da relatoria do Desembargador Wagner Wilson, julgado em 30/10/2008, Comarca de Afonso Pena, verificou-se essa possibilidade da sua leitura. Vejamos a ementa:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AUSÊNCIA FUNDAMENTAÇÃO SENTENÇA. INOCORRÊNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. PRODUÇÃO DE PROVA ORAL. PRECLUSÃO. VIOLAÇÃO DO SEGREDO MÉDICO. DIVULGAÇÃO DO PRONTUÁRIO DE PACIENTE SEM AUTORIZAÇÃO OU JUSTA CAUSA. DEVER DE INDENIZAR. PESSOA JURÍDICA. DANO MORAL. 1. O que gera a nulidade da decisão não é a escassez de fundamentação, mas a sua absoluta ausência. 2. Ocorrendo o indeferimento expresso de oitiva de testemunha, em audiência de instrução e julgamento, não tendo a parte se insurgido, naquela oportunidade pela via adequada - agravo retido, preclusa se encontra a alegação de cerceamento de defesa. 3. O segredo médico pertence ao paciente, e o médico, seu depositário e guardador, somente poderá revelá-lo em situações muito especiais, a saber: dever legal, justa causa ou com autorização expressa do paciente. 4. A obrigação compulsória do médico de manter sigilo quanto às informações confidenciais de que tiver conhecimento no desempenho de suas funções escora-se na preservação da intimidade do paciente e sua infração constitui ato ilícito, passível de punição. 5. A divulgação de prontuário médico, do qual se extrai relatos da vida íntima do paciente, sem autorização ou justa causa configura-se ato ilícito e acarreta o dever de indenizar. 6. Apesar de não ser titular de honra subjetiva, a pessoa jurídica é detentora de honra objetiva, que resta abalada sempre que o seu nome, imagem ou crédito forem atingidos no meio comercial por algum ato ilícito.(APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0024.06.025816-7/001 - COMARCA DE BELO HORIZONTE - 1º APELANTE (S): CAMED CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO NORDESTE DO BRASIL - 2º APELANTE (S): CENTRO PSICOTERAPICO LTDA - 3º APELANTE (S): ROMULO RONALDO DOS SANTOS - APELADO (A)(S): CAMED CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO NORDESTE DO BRASIL, CENTRO PSICOTERAPICO LTDA, ROMULO RONALDO DOS SANTOS - RELATOR: EXMO. SR. DES. WAGNER WILSON) [14]

No mesmo sentido, é a Apelação n. 00470438120098260562 SP 0047043-81.2009.8.26.0562 da 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, do Desemb. Relator Ferreira da Cruz, data do julgamento 03 de Abril de 2013, publicado em 04/04/2013, vejamos a ementa:

RESPONSABILIDADE CIVIL Sigilo médico Violação Hipótese em que o médico desdisse seus dois primeiros atestados, oralmente inclusive, a permitir fosse o autor investigado nas esferas criminal e administrativa Dolosa observação acrescida em relatório posterior. Conduta antiética inadmissível Afronta à boa-fé objetiva e à intimidade do paciente Ausência de justa causa e/ou de prévia e expressa autorização, não sendo o caso de comunicação compulsória Recurso provido. RESPONSABILIDADE CIVIL Atestado que é parte integrante do ato ou do tratamento médico, sendo pública apenas a conclusão nele inscrita Elaboração e divulgação de boletim e/ou de relatório capaz de revelar diagnóstico, prognóstico ou terapêutica que dependem de expressa autorização do paciente ou do seu responsável legal Uso para fins de afastamento do serviço público Irrelevância Recurso provido. DANO MORAL Prova Violação do segredo médico que ofende a intimidade do paciente, um dos elementos da sua personalidade A quebra do dever de sigilo e a simples entrega do prontuário médico, sem autorização, acarretam dano moral Hipótese de dano in re ipsa Precedente do STJ Recurso provido. DANO MORAL Estimativa Hipótese em que se deve considerar o incontroverso sofrimento daquele que se vê, de modo abusivo e injusto, investigado administrativa e criminalmente Fixação em R$ 13.000,00 Funções compensatória e intimidativa atendidas Correção monetária de hoje e juros de mora (1% a.m.) da citação Súms. 326 e 362 do STJ c.c. art. 405 do CC Recurso provido. SOLIDARIEDADE Hospital Cabimento em benefício do consumidor Erro do médico preposto que se soma à negligência na guarda do prontuário Sujeitos que são titulares da mesma cadeia produtiva, no mínimo, unidos por uma espécie de cooperação contratual, parceria coligada por de certo vínculo de reciprocidade econômica Precedente do STJ Recurso provido. [15]

A violação do segredo médico ocorre sob vários ângulos, quais sejam: ético; disciplinar; penal e constitucional da privacidade. No campo ético, espera-se que o médico mantenha o dever de guardar segredo na atividade profissional e social, ser discreto na relação médico-paciente, entretanto poderá haver violação em casos de necessidade, por isso, atualmente, ele é relativo. Neste sentido, LOPES proclama:

“Pode-se dizer que o estudo atual do tema possibilita verificar o segredo médico sob o prisma da ética, ainda que o remeta ao prisma do Direito. Desta forma, não mais está limitado à violação do segredo médico enquanto ato eticamente incorreto, mas passa ao ilícito disciplinar e ao ilícito penal. Ao ultrapassar esses limites pode ser identificado como violação do direito à privacidade, constitucionalmente normatizado. Este é aspecto relevante na atualidade e que pode ser caracterizado por sua universalidade. (2012, p, 406):

Na esfera constitucional a quebra do sigilo viola a privacidade e a intimidade do paciente16ao lado da Declaração Universal de Direitos Humanos17. Não podemos olvidar que o dano a outras pessoas não se limita ao paciente que revelou ao médico, mas sim, alcança todas aquelas pessoas que cercam o paciente de alguma forma. Nas palavras de LOPES (2012, p. 408):

“Por fim, verificado o dever de segredo médico sob o pálio do artigo 5º, inciso X da Constituição da República como ilícito civil, assume vasta configuração ao abranger o dolo e a culpa e ampliar o universo dos sujeitos passivos.”

Segundo Rosado as circunstâncias hoje estão mudadas. As relações sociais massificaram-se (Apud LOPES 2012, p. 405). No entender de Fachin o direito bioético, ainda que amplo e complexo, está repleto de incompletudes ante as necessidades de certeza de seus investigadores. (2000, Apud LOPES 2012, p. 405)

No campo disciplinar ou administrativo, ocorre a violação do segredo médico violando a conduta do dever médico prevista no Capítulo I como princípio fundamental no inciso XI18 e nos artigos 73 a 79 do Código de Ética Médica, além disso, a quebra do segredo pode gerar na esfera penal o crime do artigo 154 do Código Penal19.

O Capítulo IX, em seu artigo 7320, apresenta a direção a ser seguida pelos médicos, entretanto entendemos que o artigo em estudo deve ser interpretado de forma exemplificativa e nunca taxativa, pois se assim fosse muitas situações ficariam esquecidas ensejando diversas injustiças, ou seja motivos outros não elencados pelas expressões de conteúdo semântico aberto21, e por situações da vida cotidiana não previstas.

Com efeito, os médicos devem evitar a quebra, ou seja, de não revelar segredo, fato do paciente, salvo, os motivos que o Código de Ética Médica disciplina, vejamos: Por motivo justo, dever legal ou seja diante de ordem judicial ou imposição legal, contudo não significa dar publicidade a qualquer pessoa, repórter, órgão, mas sim, a autoridades específicas (diante da autoridade), além disso, a revelação deve ser relativa apenas ao diagnóstico22. Como exemplo, cite-se aqui a necessidade do médico, ao preencher o atestado de óbito, ao comunicar as doenças de notificação compulsória previstas na Lei n. 6259/75 sob pena de cometer o crime do artigo 269 do Código Penal. Frise-se que, é a doença que deverá ser notificada e não os dados do paciente que deverão ser protegidos pelo sigilo médico.

A revelação também ocorre, sem que haja quebra do segredo nos casos a - do médico dar um atestado solicitado por um trabalhador que contenha o diagnóstico, com fins a obtenção de licença, b – ou atestado dirigido a Perícia do INSS; c – ou para o setor médico de uma empresa com vistas a justificar faltas.

Pode ocorrer também, ter o médico consentimento escrito do paciente. O consentimento por escrito do paciente, ou seja, se o paciente permitir fica o médico liberado para revelar.

Cumpre esclarecer que, o médico terá que ter autorização expressa do paciente para revelar o sigilo, ainda que o paciente já tenha divulgado o seu sigilo médico, como prescreve o artigo 73 do Código de Ética Médica.

Ainda, se for para defesa própria (autodefesa) segundo o artigo 8923 do Capítulo X (CEM, 2009), que dispõe sobre documentos médicos, em que o sigilo será quebrado para fornecer prontuários em cumprimento a ordem judicial. (CABETTE, 2011, p. 122).

Quando verificada a situação de violência a criança e ao adolescente, é conveniente a quebra do sigilo com a revelação ao Conselho Tutelar ou autoridade competente (indivíduos incapazes e vulneráveis) artigo 13 do Estatuto da Criança e Adolescente combinado com o artigo 245. Com o implemento do Estatuto do Idoso, verificada violência, também, poderá haver a quebra. Por outro lado, casos há em que o menor pode estar planejando um homicídio, como realmente ocorreu no caso TARASOFF em uma universidade da California, um estudante matou a colega da Tatiana Tarasoff. Dias antes, tinha contado ao médico da universidade que planejava concretizar o intento. O médico levou o caso para deliberação da universidade que por sua vez achou por bem manter o sigilo, porém houve o homicídio e os pais moveram uma ação indenizatória contra a universidade. No caso, o mais prudente era a quebra do sigilo24.

No caso de doenças de informação compulsórias25, como a AIDS e outras. O médico deve tentar inicialmente fazer com que o paciente por livre e expressa vontade comunique seu parceiro (a), caso o médico perceba que ele está omitindo e colocando a integridade e vida de outrem em risco, poderá haver a quebra e ainda o paciente responder criminalmente (artigo 269 CP). Sempre foi tormentosa a questão, que abarca as mais variadas opiniões em matéria de ética e segredo médico, ocasionando grande polêmica. Imaginemos um portador do vírus HIV que se recuse a informar e proteger seu parceiro sexual do risco ou em outro caso, de um portador que continua com a vida sexual ativa contaminando outras pessoas. Entendemos que, no caso haveria uma justa causa para a quebra (revelação) do segredo médico, amparada na proteção à vida de terceiros, mas com uma pequena peculiaridade, qual seja, depois de esgotadas todas as tentativas no sentido de convencer, exigir e fazer com que o paciente infectado cientifique seu parceiro (a) sexual ou se for usuário de drogas, o grupo a que participa. Este seria apenas nosso entendimento. Em que pese nossa opinião, a verdade é que, atualmente é recomendado pelo Conselho Federal de Medicina que os médicos informem os parceiros sexuais acerca do diagnóstico, amparados na justa causa, como pondera Clóvis Arns da Cunha:

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“Se por um lado, a conduta ética atual se preocupa em manter o sigilo, a confidencialidade, do paciente, este preceito não pode fazer com que outras pessoas sejam colocadas em risco de infecção pelo HIV. Assim sendo, o (a) parceiro sexual do (a) paciente, ou parceiros sexuais, têm o direito de serem informados sobre o diagnóstico. Alguns poucos juristas não concordam com tal concepção, mas é a atualmente aceita e recomendada pelo Conselho Federal de Medicina.”

Com efeito, segundo doutrina portuguesa especializada no assunto,

“O médico tem o poder de avisar o (a) parceiro(a) sexual do portador (a) do vírus da Sida, caso este o não queira fazer nem encete prática sexual segura ou protegida, quando é médico de ambos os membros do casal. Isto significa que face a circunstâncias específicas da situação da vida e da previsão normativa do artigo 34º do Código Penal Português é facultado ao médico revelar informação protegida. [26]

A Resolução do Conselho Federal de Medicina Nº 1.665/2003 é clara27 ao mencionar que apenas nos casos de justa causa será permitida a quebra salvaguardando a vida de terceiros.

Lembramos que, mesmo com a morte, o sigilo deve ser preservado é o chamado sigilo post mortem. Houve importante alteração no artigo 7728 do CEM através da Resolução nº 1997/2012, a respeito dos dados do prontuário, após a morte do paciente, que agora fica vedado ao médico, contudo, no mais das vezes, esse sigilo absoluto pode ser prejudicial, visto que um parente pode necessitar das informações, para investigação sobre se o tratamento clínico antes do falecimento foi adequado, sendo assim poderia haver a quebra do sigilo29.

De suma importância, a advertência que Cabette sugere na análise da amplitude da aplicação da alínea “a” do art. 73 do Código de Ética Médica e que pode ir muito além do artigo do 15430 do Código Penal que exige a configuração da lesão ao bem jurídico e tem relação direta com Princípio da Lesividade (dano), portanto mais limitado, pois exige o elemento objetivo (dano) e elemento subjetivo (dolo), conforme Cabette:

“Então, na seara criminal é indiscutível a aplicação do Princípio da Lesividade no caso, o qual é explícito no próprio tipo penal ao exigir a potencialidade danosa da conduta. Ora, se o conteúdo supostamente sigiloso já é de conhecimento público, não há fala-se em lesão ao bem jurídico tutelado e assim afasta-se claramente a possibilidade da aplicação do tipo penal.” (2011, p. 127-129).

Como se sabe, embora não se configure o crime do art. 154, nada impede a configuração das outras responsabilidades, assim a infração deontológica do Código de Ética Médica prevista no artigo 73 alínea “a” pode ser até mais rigorosa que a penal, afinal nem todo bem jurídico é um bem jurídico-penal. Segundo Cabette:

“Então, nada impede que inobstante não haja correspondência com a seara criminal, no âmbito deontológico administrativo encontre-se um interesse jurídico tutelável pela norma específica em discussão. Nesse passo, ao vedar-se a divulgação do segredo médico pelo profissional, ainda que este já seja do conhecimento geral, o Código Deontológico prima pela proteção, para além do segredo, da intimidade e da vida privada do paciente. [...]. Portanto, há sim, no campo deontológico, um bem jurídico a ser tutelado por tal norma de elevado rigor, mas extremamente oportuna, tendo em conta a honrabilidade da profissão médica. (2011, p.128)”

Em suma, de acordo com a alínea “a”, o médico continua impedido de fazer comentários mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido, visto que os danos alcançam o falecido e pessoas da família, por isso chamado crime de alcance amplo, além do artigo 154 do CP.

No que toca a alínea “b”, merece cautela em três situações, se o paciente é acusado e responde a processos, mesmo assim, o medico não poderá revelar nada que possa causar prejuízo e esse paciente, e expor a processo penal (alínea “c”). Se o paciente for vítima e o acusado qualquer outra pessoa e o médico for liberado a revelar, o mesmo deverá ponderar, seguir a verdade e declarar o que for benéfico. Se o paciente for vítima e o médico acusado, o médico terá a obrigação de depor, pois precisara se defender 31.

Sobre a autora
Roberta Martins Pires

Pós-Graduada em Direito Civil, em Processo Civil, em Direito Médico pela Faculdade Legale – São Paulo. Pós-Graduada em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Advogada em São Paulo. Alteração de Nome em geral

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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