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A judicialização das decisões do Tribunal Marítimo

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10/04/2024 às 21:39
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3. AS DECISÕES DO TRIBUNAL MARÍTIMO E SUA JUDICIALIZAÇÃO

O crescimento da judicialização nos tribunais brasileiros vem sendo cada vez mais discutido, fenômeno este, que se desenvolveu ao longo da história e tem ganhado destaque diante das resoluções adotadas pelo Poder Judiciário em relevantes assuntos no âmbito social, moral e político.

O “poder” depositado nas mãos do judiciário para decidir questões que poderiam ser solucionadas pelas instâncias políticas tradicionais, como Congresso Nacional e Poder Executivo, tem sido frequentemente questionado no meio jurídico, e, em contrapartida, ganhado cada vez mais “apoio” dos brasileiros devido ao momento político vivenciado em nosso país.

Na Judicialização, o Poder Judiciário tem a sua atuação nos processos decisórios ampliada, de forma que é possível enxergar, na maioria das vezes, uma preponderância deste poder em comparação aos demais poderes, em particular com relação ao Executivo.

Nesse sentido, entende Ernani Rodrigues de Carvalho (2004, p. 121), vejamos:

A ampliação da problemática da judicialização, saindo daquilo que chamo de “conceito mínimo de judicialização”, ou seja, o hiperdimensionamento do caráter procedimental tem mostrado que o aumento puro e simples do número de processos não implicou uma intervenção efetiva do Judiciário. Portanto, existe também um hipodimensionamento do caráter substancial, isto é, até que ponto os juízes modificam as leis ou atos dos demais poderes? (GRIFO NOSSO)

Levando em conta a indagação feita pelo autor supracitado, verifica-se que apesar de o Tribunal Marítimo respeitar a ampla defesa e o contraditório, o devido processo legal durante as fases do processo, e de suas decisões possuírem valor probatório e presumirem-se certas, conforme preconiza o artigo 18 da Lei nº 2.180/54, são suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro utilizou-se desse dispositivo legal para basear sua decisão no entendimento proferido pelo Tribunal Marítimo, vejamos:

INDENIZATÓRIA. ABALROAMENTO ENTRE EMBARCAÇÕES. TRIBUNAL MARÍTIMO. DECISÃO CORROBORADA PELA PROVA PRODUZIDA NO JUDICIÁRIO. Apelação da sentença que condenou a ré a pagar à autora reparação pelos danos materiais decorrentes do abalroamento do navio desta pelo ferryboat daquela. Acórdão unânime do Tribunal Marítimo, concluindo que o acidente foi causado por imprudência do comandante do ferryboat. Acórdão precedido de minucioso inquérito instaurado pela Capitania dos Portos da Bahia e de Laudo de Exame Pericial Indireto. Nos termos do art. 18 da Lei nº 2.180 /54,"As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário."Ausência de qualquer prova hábil a contrariar a conclusão do mencionado acórdão. A extensão do dano, a conduta do preposto da ré e o nexo causal foram amplamente comprovados nos autos, restando inequivocamente configurada a responsabilidade da apelante pela reparação dos prejuízos causados à apelada. Recurso desprovido, nos termos do voto do desembargador relator."

(Apelação Cível n. 0322085-50.2010.8.19.0001, Desembargador Relator Ricardo Rodrigues Cardozo, 15ª Câmara Cível, julgado em 31.7.2012) (GRIFO NOSSO)

Observa-se, contudo, que a Lei em um momento reconhece o Tribunal do Mar como uma autoridade técnica especializada, e prevê que suas decisões gozam de valor probatório e de presunção de certeza, mas, por outro lado, consente o reexame de suas decisões pelo Poder Judiciário.

Desse modo, a Lei nº. 2.180/54, ao criar o Tribunal Marítimo, fez com o fito de ter um órgão especializado, com membros tecnicamente capacitados para julgar dentro de sua competência (acidentes e fatos de navegação) com maior rigor e seriedade possível, já que, o Poder Judiciário não possui conhecimento técnico da área marítima.

Nesse sentido entendeu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Agravo de Instrumento nº 62.811:

A criação do Tribunal Marítimo, órgão administrativo integrado por técnicos, a que se atribui competência quase jurisdicional para o deslinde de questões de direito marítimo se insere na tendência do Estado moderno de aliviar as instituições judiciais de encargos puramente técnicos, para os quais não estão elas preparadas. (GRIFO NOSSO)

Em contrapartida, nem toda demanda apreciada pelo Tribunal Marítimo, implicará em outra lide a ser reapreciada pelo Poder Judiciário, do mesmo modo que o Poder Judiciário não está vinculado ao julgamento do Tribunal Marítimo, não há essa obrigatoriedade ou correspondência necessária.

Desse modo é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em que:

“As conclusões estabelecidas pelo Tribunal Marítimo são suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário, ainda que a decisão proferida pelo órgão administrativo, no que se refere à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tenha valor probatório. (…) As decisões do Tribunal Marítimo possuem eficácia apenas no âmbito administrativo, razão pela qual suas conclusões podem ser revistas pelo Judiciário. Por conseguinte, ainda que as conclusões técnicas do Tribunal Marítimo devam ser valoradas da mesma forma que a prova judicial, o julgamento realizado no âmbito administrativo não condiciona a análise à lesão de direito realizada no âmbito do Judiciário.

(Recurso Especial nº 811769/RJ, 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator Ministro Luis Felipe Salomão). (GRIFO NOSSO)

Muito se discute sobre a natureza jurídica e os efeitos dos acórdãos proferidos pelo Tribunal Marítimo, se tais decisões são meros pareceres técnicos, por serem proferidas por um Tribunal administrativo, ou se possuem natureza de “coisa julgada administrativa”, haja vista a grande capacidade técnica empenhada nessas decisões, e assim, o Poder Judiciário apenas poderia reexaminá-las mediante “forte” prova em contrário.

Desse modo, o Judiciário ao adentrar no mérito do julgamento do Tribunal Marítimo, precisa fundamentar os aspectos técnicos discordantes, ponto a ponto, valendo-se de rigorosa prova técnica conclusiva, eis que, a simples argumentação do julgador, sem a produção de uma contraprova técnica, é insuficiente para desconstituir a decisão técnica do Tribunal Marítimo (VIANA, 2016).

No mesmo sentido destaca o Superior Tribunal Justiça, vejamos:

INEXISTENCIA, RESPONSABILIDADE CIVIL, EXPLOSÃO, EMBARCAÇÃO, MOMENTO, ESTACIONAMENTO, PREPOSTO, CLUBE NAUTICO, RESPONSABILIDADE, GUARDA, HIPOTESE, TRIBUNAL MARITIMO, ENTENDIMENTO, AUSENCIA, CULPA, FUNDAMENTAÇÃO, PERICIA, RELEVANCIA, INEXISTENCIA, DECISÃO CONTRARIA A PROVA DOS AUTOS, NÃO OCORRENCIA, LESÃO A DIREITO.CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRIBUNAL MARÍTIMO. As decisões do Tribunal Marítimo podem ser revistas pelo Poder Judiciário; quando fundadas em perícia técnica, todavia, elas só não subsistirão se esta for cabalmente contrariada pela prova judicial. Recurso especial conhecido e provido.Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conhecer do recurso especial e lhe dar provimento. Participaram do julgamento os Srs. Ministros Menezes Direito, Nilson Naves, Eduardo Ribeiro e Waldemar Zveiter.

(Resp 38082 PR 1993/0023708-0, Órgão Julgador Terceira Turma. Publicação 04/10/1999 p. 52. Julgado em: 20 maio de 1999. Relator Ministro Ari Pargendler)

Conforme o entendimento supracitado no Resp. 38082, o qual é mencionado na obra de Matusalém Pimenta (Processo Marítimo, pag. 108/112) e, posteriormente transcrito no artigo de Fernando Viana (2016), se nenhuma prova relevante for produzida no juízo cível, sua decisão terá que ser em conformidade com a decisão do Tribunal Marítimo, assim, a atividade jurisdicional de revisão da decisão técnica do Tribunal Marítimo é excepcional, e somente ocorre quando a parte interessada apresentar razões relevantes e convincentes para que a matéria seja reapreciada (até porque existe uma presunção, ainda que relativa).

Destaca-se que conforme mencionado anteriormente, existe a possibilidade de sobrestamento do processo na Justiça Comum, para aguardar a conclusão do julgamento no Tribunal Marítimo, vez que, naturalmente, os Tribunais Comuns não possuem o conhecimento específico do direito marítimo para julgar, devendo-se levar em conta, a complexidade da matéria que foi apreciada por um tribunal administrativo especializado.

Desse modo, aduz Matusalém Pimenta (Processo Marítimo, p. 110) em sua obra:

[...] o reexame não diminui nem torna apoucada a decisão do colegiado do mar, eis que é garantia constitucional, no âmbito intangível da Carta Política. Entretanto, aquele que quiser modificar uma decisão do TM, na esfera do Judiciário, terá a herculana tarefa de ilidir prova robusta, vez que produzida perante tribunal especializado. (GRIFO NOSSO)

Para tanto, entende-se que a sentença do Tribunal Marítimo, faz coisa julgada administrativa, com isso, quando o Poder Judiciário necessitar decidir acerca dos mesmos fatos e acidentes, deve ser cuidadoso ao reexaminar a decisão técnica do Órgão, devido ao valor probatório que esta possui (VIANA, 2016).

Mas qual o sentido de judicializar uma decisão que respeita às garantias legais e constitucionais?

Crê-se que essa foi à indagação feita no momento em que o legislador decidiu incluir a proposta do inciso X, do artigo 551 da lei que introduziu o Código de Processo Civil de 2015, quis conceder a possibilidade de os acórdãos proferidos pelo Tribunal Marítimo possuírem natureza de título executivo judicial, como título executivo judicial, logo, a decisão proferida essencialmente vincularia o Poder Judiciário.

Infelizmente, o inciso mencionado foi vetado pelo Presidente da República, com a fundamentação de que “Ao atribuir natureza de título executivo judicial às decisões do Tribunal Marítimo, o controle de suas decisões poderia ser afastado do Poder Judiciário, possibilitando a interpretação de que tal colegiado administrativo passaria a dispor de natureza judicial”.

Observa-se que a justificativa dada, coloca como algo negativo uma decisão administrativa possuir natureza judicial, no entanto, é o que ocorre com a sentença arbitral, uma vez que, o artigo 3º do Código de Processo Civil, constitui a arbitragem como jurisdição, sendo instituída legalmente como forma de resolução de conflito, possuindo natureza de título executivo judicial, prevista no inciso VII, do artigo 551 do CPC, sendo delimitado no artigo 42 do CPC que “As causas cíveis serão processadas e decididas pelo órgão jurisdicional nos limites de sua competência, ressalvado às partes o direito de instituir juízo arbitral, na forma da lei”.

Dessa maneira, apesar do veto, a pretensão do legislador de atribuir força executiva ao acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo, com certeza seria um grande avanço para área marítima, e também, para o Judiciário, que teria condições de julgar as ações que lhe são demandadas com mais celeridade, de acordo com a duração razoável do processo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A busca pela efetividade e pela celeridade processual tem sido inquestionavelmente “imposta” não apenas pela sociedade que visa a um desenvolvimento processual eficaz, mas, principalmente, pelos aplicadores do direito que pleiteiam para que as propostas trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015, realmente sejam colocadas em práticas.

De um lado, vivenciamos a busca para minimizar a quantidade absurda de processos judiciais, através da divulgação dos meios alternativos de resolução de conflitos, mutirões conciliatórios, o reconhecimento da sentença arbitral como título executivo judicial e com estabelecimento de metas para julgamento.

E, em contrapartida, deparamo-nos com a possibilidade de sobrestamentos das ações na justiça comum, para aguardarem a conclusão das decisões do Tribunal Marítimo, a fim de serem utilizadas como meios de provas no reexame do Judiciário, momento pelo qual passarão por uma nova e demorada instrução processual.

Desse modo, apesar de o Tribunal Marítimo respeitar a ampla defesa e o contraditório, o devido processo legal durante as fases do processo, e de suas decisões possuírem valor probatório e presumirem-se certas, conforme preconiza o artigo 18 da Lei nº 2.180/54, são suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.

Podemos observar que o processo adotado pelo Tribunal Marítimo para a tomada de suas decisões, não apenas se assemelha ao tomado pelo Judiciário, mas também se utiliza das normas e princípios do direito processual civil, assim como constitucionais.

Quando essas “lides maritimistas” são colocadas no âmbito do Poder Judiciário, são apreciadas por juízes que naturalmente não possuem o conhecimento específico necessário do direito marítimo para julgar, levando-se em conta a complexidade da matéria.

Exigindo-se do julgador, que após formar o seu convencimento de forma fundamentada, quanto à necessidade de adentrar no mérito da decisão do Tribunal Marítimo, que nomeie técnicos especializados na área marítima, já que, uma prova altamente técnica apenas será refutada por outra prova de igual ou superior tecnicidade.

Diante da problemática da judicialização das decisões do Tribunal Marítimo, constatamos que o trabalho que vem sendo desempenhado por este órgão, para a tomada de suas decisões, observa as garantias constitucionais, resguarda o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, bem como um julgamento devidamente fundamentado.

Assim, possuem condições de adquirirem natureza de título executivo judicial, como a proposta trazida pelo inciso X, do artigo 551 da lei que introduziu o Código de Processo Civil de 2015, que infelizmente foi vetada, mesmo existindo essa previsão para a sentença arbitral em nosso ordenamento jurídico.

Outro meio de resolução, seria a criação de uma Justiça Especializada em Direito Marítimo, assim como ocorre com a Justiça do Trabalho e a Eleitoral, a criação de uma “Justiça Marítima”, ou melhor, a adaptação do Tribunal Marítimo para exercer a função jurisdicional, o que seria um grande passo para a efetivação da busca pela celeridade processual.

Portanto, podemos observar que grandes foram as conquistas e a trajetória traçada pelo Tribunal Marítimo no decorrer histórico, sendo hoje respeitado e considerado como um órgão altamente técnico, capaz de julgar as lides de sua competência e até mesmo executá-las, grande avanço seria evitar a judicialização de suas decisões, assim, evitar-se-ia uma nova e longa instrução.

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Sobre a autora
Aline dos Santos Pires Silva

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV. Especialização em Direito Marítimo e Portuário pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV. Cursa especialização em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito de Vitória - FDV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Aline Santos Pires. A judicialização das decisões do Tribunal Marítimo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7588, 10 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/76934. Acesso em: 18 mai. 2024.

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