Décimo terceiro salário: nossa jaboticaba de todo ano

29/10/2019 às 09:55
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Abordar-se-á o contexto histórico do décimo terceiro salário ou "abano natalino", como ficou conhecido. O escopo do presente escrito é contextualizar os marcos temporais e esclarecer os motivos jurídicos desse importante direito do cidadão brasileiro.

Nunca se falou tanto em jaboticaba como se falou na eleição presidencial de 2018. Bastou um “odiado” general[i], candidato a Vice-Presidente da República, discursar com sua peculiar linguagem militar e fazer uso de eufemismos que poucos entendem ou fingem não entender para que uma pequena frutinha tupiniquim virasse celebridade.

Para quem não conhece, a jaboticaba é uma fruta nativa da América do sul e encontrada no território brasileiro. Ela nasce grudada no tronco da jaboticabeira, árvore de folhas simples e que atinge razoável altura; de formato esférico e de cor escura puxada para o roxo, possui uma polpa branca e doce. Dado ao seu singular sabor e suas propriedades medicinais, esta singela frutinha é utilizada na culinária em geral e também como instrumento medicamentoso ou fitoterápico.[ii]

Eufemisticamente falando, quando se diz que tal coisa é uma jaboticaba está a se referir sobre algo que só acontece no Brasil. Ao dizer que o décimo terceiro salário, o um terço de férias e os encargos incidentes sobre eles são jaboticadas brasileiras, o General Hamilton Mourão sacudiu a árvore dos direitos trabalhista, cujas raízes estão fincadas no artigo 7º, da Constituição[iii] da República Federativa do Brasil de 1988.

Desde que, eufemisticamente, se rotulou o décimo terceiro salário como jaboticaba notícias ecoam, gerando inúmeras especulações. Assim, o presente arrazoando visa discorrer um pouco sobre a história desse inalienável direito dos trabalhadores brasileiros. Não se trata de artigo científico e não se pretende exaurir o tema. Todavia, visa discorrer um pouco sobre a temática, à luz de uma linguagem simples e acessível.

Enganam-se aqueles que enxergam o abono natalino, vulgo décimo terceiro salário, como um benefício ou prêmio ao trabalhador. Rezam as lendas que tudo começou na década de 1950, quando empregadores passaram a conferir aos colaboradores uma espécie de gratificação de natal, pelo bom desempenho. Tratava-se de mera liberalidade, ou seja, era facultativo; não existia regulamentação a respeito. Todavia, por intermédio da lei nº 4.090[iv], de 13 de julho de 1962, referida prática se tornou obrigatória[v].

Importante realçar que o idolatrado abono natalino nunca foi e jamais será um benefício. A bem da verdade, trata-se de um embuste que incutiram na mente do povo brasileiro e que faz crer que se trata de uma bondade ao trabalhador ou mais um fardo colocado nos ombros do empregador. Poucos são aqueles que conhecem a verdadeira história que jaz soterrada pelo tempo. Até mesmo nas graduações a história é mal contada. Professores apenas se limitam a dizer que é um direito e que ele está presente na magna carta e nas legislações infraconstitucionais.

O autor do anteprojeto que resultou na lei nº 4.090/1962 foi o Deputado Federal Aarão Steinbruch, à época pelo Estado do Rio de Janeiro. Segundo Rubens Sodré[vi], a ideia foi concebida por um economista e que em razão dela Aarão figurou entre os políticos influentes do país, inclusive atualmente ainda é lembrado pelo feito. A aprovação da dita lei trouxe alento às famílias brasileiras e, por ser um dinheiro extra, ajudou a movimentar a economia nos seus vários segmentos, fato este largamente difundido pelos meios de comunicação até hoje, contribuindo para reforçar a sensação de bondade do legislador que garantiu com unhas e dentes esta impoluta benesse.

Existem divergências acerca da origem da jaboticabinha. O especialista e escritor Gustavo Cerbasi[vii], em seu canal no YouTube[viii], explica que a institucionalização do décimo terceiro salário surgiu da paternalidade do governo brasileiro, onde visava ajudar as famílias a se organizarem financeiramente no final e inicio do ano, permitindo que elas tivessem recursos para honrar seus compromissos, especialmente aqueles relacionados aos tributos incidentes sobre o patrimônio (IPTU, IPVA, entre outros).

Não é possível afirmar que a frutinha visou incutir à população um planejamento financeiro doméstico. Caso tenha sido, certo é que não alcançou o propósito, uma vez que o povo brasileiro não é dado ao planejamento, pois entra ano e sai ano o dilema é sempre o mesmo: quitar dívidas; comprar presentes; poupar; ou, guardar para pagar as contas do começo do ano (matrícula e material escolar, tributos e outros). Independente do que se possa dizer, a jaboticabinha se revelou uma importante mola mestra da economia, assegurando melhores vendas no período que antecede às festas de fim de ano.

Entender o décimo terceiro salário significa revisitar as páginas da história brasileira. É preciso recordar que as décadas de 1950 e 1960 é um período de grande ebulição política e econômica no Brasil, fato este que trouxe à tona inúmeras discussões sobre direitos trabalhistas, cujas pautas denotam a forte presença sindical nos debates e mobilização dos trabalhadores, tanto que a bonificação natalina era reivindicação dos sindicatos, os quais clamavam pela aprovação do anteprojeto do Deputado Arãao, inclusive, em dezembro de 1961, ameaçavam deflagrar greves até que o Senado Federal o aprovasse e presidente ‎João Belchior Marques Goulart (Jango) o sancionasse, ainda naquele ano. O desfecho foi a prisão de diversos sindicalistas e repressão das manifestações políticas.

Vale observar que o governo do presidente Jango (1961 – 1964) é um dos mais conturbados da história brasileira. Goularte sucedeu o presidente Jânio Quadros que renunciou (agosto de 1961) e deflagrou uma grave crise política, porque os militares e políticos não aceitavam a posse do então Vice Presidente, pelo fato dele possuir forte ligação sindicalista e simpatia pelas ideologias de esquerda. Visando evitar o impeachment ou a tomada do poder pelos militares a magna carta foi emendada, adotando-se o sistema parlamentarista de governo, com o escopo de reduzir as prerrogativas do Presidente da República, conforme se extrai da noticia disponibilizada no Portal de Noticias do Senado Federal[ix].

Em 1961, o Brasil enfrentava uma inflação na ordem de 47,8% ao ano. O anteprojeto de lei orçamentaria anual (LOA), encaminhado ao Congresso Nacional, apontava um déficit de Cr$ 135 bilhões nas contas na União, para 1962. Em meio à turbulência política e econômica os sindicatos pressionavam e ameaçam greve geral. Por outro lado, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), em nota publicada em 13 de dezembro de 1961, afirmou que a jaboticabinha serviria para “alimentar com um excelente combustível a fogueira da inflação, que, pouco a pouco devora o país”. [x] A classe empresarial pressionava pela não aprovação, enquanto os sindicatos se mantinham firmes. Em 27 de julho 1962, o Senado aprovou o anteprojeto de lei que instituiu o décimo terceiro salário aos trabalhadores brasileiros, fato este que promoveu calmaria nas agitações.

Assim, de acordo com a lei nº 4.090/1962 o empregador deve pagar, no mês de dezembro, a quantia de 1/12 avos da remuneração a que faz jus o trabalhador, por cada mês laborado. A lei nº 4.749/1965[xi] estabelece que entre os meses de fevereiro a novembro 50% da gratificação deve ser adianta e até 20 de dezembro o restante deve ser pago ou creditado na conta dos colaboradores.

Importante frisar que a jaboticaba, fruto do embate e das lutas trabalhistas entre os anos de 1950 até 1962, não é e jamais foi um benefício. Em que pese o forte levante empresarial ocorrido à época, inclusive suscitando que se tratava de mais fardo ao empregador e que serviria para alimentar a inflação, é preciso compreender que ele é um direito e expressa o trabalho exercido em prol daquele que detém o capital e se locupleta com os lucros advindos da exploração econômica da mão de obra alheia.

Para compreender como funciona o décimo terceiro salário é preciso recordar que alguns países não adotam a sistemática brasileira, a qual se estriba, como regra geral, no pagamento mensal dos salários devidos. Os Estados Unidos da América (EUA), por exemplo, paga por hora trabalhada ou quinzenalmente. Lá inexiste a figura do abono natalino, porém todos os trabalhadores recebem, proporcionalmente, 13 salários no ano, conforme explica o jornalista Claudio Lessa[xii], no seu canal no YouTube[xiii].

Lessa explica que o ano tem 12 meses, mas o trabalhador labora 13. Esclarece que o ano possui 52 semanas e que 02 semanas equivalem a 01 quinzena. Ao dividir 52 semanas por 02, obtêm-se 26 quinzenas no ano. Observa que 01 mês equivale a 02 quinzenas, logo 01 ano corresponde a 13 meses trabalhados e não 12. Segundo Lessa, alguns meses possuem 05 semanas e outros possuem 03, 04 ou 05 dias, além das duas quinzenas. Todas essas sobras formam o décimo terceiro mês, justificando assim o pagamento dos dias e horas trabalhadas e não pagadas dentro da sistemática adotada no Brasil, cujo pagamento é mensal.                           

O abano natalino se refere aos dias trabalhados igualmente aos outros, razão pela qual o Legislador Constituinte de 1988, ao insculpir o capitulo dos direito sociais no artigo 7º, VIII, dispôs que o “décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria” é direito de todo trabalhador, seja ele urbano ou não, e visa assegurar melhoria à sua condição social.

Realça-se que os direitos sociais são pilares constitucionais e sobre eles está edificada a República Federativa do Brasil que, como legítimo estado democrático de direito, possui como fundamentos[xiv], dentre outros, “a dignidade da pessoa humana” e “os valores sociais do trabalho” com vista à construção de uma sociedade justa, fraterna e igualitária. À luz disso se entende que os direitos dos trabalhadores, dentre eles o abono natalino, são cláusulas pétreas.

Em última análise, o décimo terceiro salário não é gentileza ou representa prêmio pelo bom desempenho ou, muitos menos, representa bondade do empregador. A bem da verdade, é o pagamento pelo tempo trabalhado e não devidamente remunerado no momento oportuno. Melhor dizendo, ele é a jaboticaba cultivada ao longo do ano e não colhida no momento oportuno por quem de direito. Contudo, somente colhe quem cultiva, ou seja, somente recebe quem trabalha...


Notas

[i] CAMPOS, João Pedroso de. Vice de Bolsonaro critica 13º salário e adicional de férias. Disponível em:  https://veja.abril.com.br/economia/vice-de-bolsonaro-diz-ser-contra-pagamento-de-13o-salario/. Acesso em 06/11/2018.

[ii] TORRES, Leidiana. Jaboticaba: benefícios para saúde, propriedades e para que serve. Disponível em: https://mentesacorposao.com/jaboticaba-beneficios-para-saude/. Acesso em 14/11/2018.

[iii]    BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 06/11/2018.

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[iv] BRASIL. LEI Nº 4.090, de 13 de julho de 1962. Institui a gratificação de natal no Brasil. Disponível em: http://www.guiatrabalhista.com.br/legislacao/lei4090.htm>. Acesso em 06/10/2018.

[v][v][v][v][v][v] Art. 1º - No mês de dezembro de cada ano, a todo empregado será paga, pelo empregador, uma gratificação salarial, independentemente da remuneração a que fizer jus.

§ 1º - A gratificação corresponderá a 1/12 avos da remuneração devida em dezembro, por mês de serviço, do ano correspondente.

§ 2º - A fração igual ou superior a 15 (quinze) dias de trabalho será havida como mês integral para os efeitos do parágrafo anterior.

§ 3º - A gratificação será proporcional:

I - na extinção dos contratos a prazo, entre estes incluídos os de safra, ainda que a relação de emprego haja findado antes de dezembro; e

II - na cessação da relação de emprego resultante da aposentadoria do trabalhador, ainda que verificada antes de dezembro.

Art. 2º - As faltas legais e justificadas ao serviço não serão deduzidas para os fins previstos no § 1º do art. 1º desta Lei.

Art. 3º - Ocorrendo rescisão, sem justa causa, do contrato de trabalho, o empregado receberá a gratificação devida nos termos dos parágrafos 1º e 2º do art. 1º desta Lei, calculada sobre a remuneração do mês da rescisão.

[vi] YOUTUBE. A fraude do décimo terceiro. Disponível em: https://www.youtube .com/watch?v=zMmnLXVRVQQ>. Acesso em 06/10/2018.

[vii] CERBASI, Gustavo. Disponível em: <http://www.gustavocerbasi.com.br/con sultor-financeiro/>. Acesso em 06/10/2018.

[viii] CERBASI, Gustavo. O 13º salário deveria ser extinto. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7fJeLZ2_IvI&t=193s>. Acesso em 06/10/2018

[ix] PONTUAL, Helena Daltro. No Brasil, parlamentarismo vigorou durante o império e após a renúncia de Jânio Quadros. Disponível em: https://www.senado.gov.br/noticias/Especiais/eleicoes2010/historia/no-brasil-parlamentarismo-vigorou-durante-o-imperio-e-apos-renuncia-de-janio-quadros.aspx. Acesso em 04/11/2018.

[x] SANGLARD, Julia. João Goulart institui 13º salário em 1962, sob pressão de patrões e trabalhadores. Disponível em:  https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/joao-goulart-institui-13-salario-em-1962-sob-pressao-de-patroes-trabalhadores-21560370. Acesso em 06/11/2018.

[xi] BRASIL. Lei no 4.749, de 12 de agosto de 1965. Dispõe sobre o Pagamento da Gratificação Prevista na Lei n º 4.090, de 13 de julho de 1962.

em: <http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Leis/L4749.htm>. Acesso em 04/11/2018.

[xii] LESSA, Claudio. Sobre Claudio Lessa/About Claudio Lessa. Disponível em: <https://claudiolessa.com/?page_id=2>. Acesso em 04/11/2018.

[xiii] LESSA, Claudio. Décimo terceiro salário não é um benefício e sim um direito! Confiram. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cwh7GMKuSSI>. Acesso em 04/11/2018.

[xiv] Constituição da República Federativa do Brasil:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

 II - a cidadania;

 III - a dignidade da pessoa humana;

 IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

 V - o pluralismo político.   

 Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

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Sobre o autor
Miqueas Liborio de Jesus

Auditor Fiscal da Receita Municipal de Joinville/SC e Professor na Associação Catarinense de Ensino - ACE/FGG, no curso de Direito, ministrando as disciplinas de Direito Tributário I e Direito Tributário II. Bacharel em Ciências Jurídicas (Direito) pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, Aprovado no Exame da OAB em 21/05/2006 e MBA em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV.

Informações sobre o texto

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