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Direitos indígenas:

proteção necessária à luz dos direitos humanos

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É lamentável que os primeiros habitantes de nosso território ainda sejam tratados com espécie – e muitas vezes com indiferença - por meio de uma "escala hierárquica" de "menos ou mais evoluídos".

Sumário: 1.Introdução; 2. Direitos indígenas e direitos fundamentais; 3.Conclusões; 4. Referências bibliográficas.


            "Numa faixa de terra de 28 mil hectares, localizada no agreste pernambucano, habitam cerca de 8 mil seres da espécie humana. Eles não querem vingança. Eles só querem justiça. Querem punição para os covardes assassinos de seu bravo Cacique Xicão. Distribuídos por 23 aldeias, permanecem resistindo após quase 500 anos de massacres e perseguições reivindicando nada menos que o reconhecimento e a demarcação da terra sagrada que herdaram de seus ancestrais... "

(Trecho da canção O Outro Mundo de Xicão Xukuru, de autoria de Fred Zeroquatro e Zenilda Maria de Araújo).


1.INTRODUÇÃO

            Quando se deseja abordar juridicamente questões afetas a índios, comunidades indígenas ou sociedades indígenas [01], muitas são as vertentes das quais podemos nos valer, seja iniciando pelo histórico dos sistemas de proteção que lhes foram conferidos pelas Constituições Federais Brasileiras, seguindo pela competência em processar e julgar lides que os envolvam, ou mesmo se atendo apenas à necessidade do reconhecimento de seus valores próprios, com projetos de futuro, enfim, de elementos que contribuam com a sociedade nacional.

            Nesse contexto, um outro enfoque, subjacente a todos os demais, parece-nos deveras relevante e não pode, jamais, ser relegado a plano que não seja o principal: a análise dos direitos indígenas sob a ótica constitucional dos direitos humanos [02], de sorte a garantir aos povos indígenas o gozo pleno dos direitos e garantias fundamentais reconhecidos pela Constituição Federal e por Acordos e Convenções Internacionais.

            Entretanto, é lamentável, e porque não dizer revoltante, que os primeiros habitantes de nosso território ainda sejam tratados com espécie – e muitas vezes com indiferença - por meio de uma "escala hierárquica" de "menos ou mais evoluídos", mesmo diante de uma Constituição conhecida como Cidadã, que inegavelmente ampliou seus direitos, sobretudo como reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e legitimou-os processualmente para garantia a respectiva efetivação [03].

            Mesmo passados 500 anos do descobrimento, o tema ainda é objeto de ensaios, artigos, livros, enfim, de dedicação por estudiosos que, encarando-o como um verdadeiro sacerdócio, não se furtam em denunciar o desrespeito pungente que assola esses povos, que de tempos em tempos preenche os noticiários com manchetes que refletem a ignorância de parcela da sociedade, resultante, porque não dizer, de visões seculares equivocadas sobre o papel do indígena.

            O que dizer sobre a "célebre" idéia de um respeitado empresário nacional, ao propor, tempos atrás, que os índios brasileiros fossem vendidos a outros países como solução de sua causa? Ou, em nível de doutrina jurídica, a do Professor Caio Mário S. Pereira, para quem os índios podem ser equiparados a quase crianças, sendo sua educação lenta e difícil [04]. Em igual sentido, acentua Maria Helena Diniz [05].

            Essa mentalidade de inferioridade traz à tona, na verdade, um enorme desprezo que a população "branca" dispensa aos índios, quando, em não raras vezes, trazem consigo, de forma dissimulada, uma causa econômica forte: a luta por terra, mesmo que algumas destas sejam constitucionalmente assegurada aos índios.

            A cultura, crenças, tradições, e outras contribuições indígenas repassadas à sociedade como um todo, são "agradecidas" com exemplos negativamente marcantes, os quais podemos citar, sem reduzir a importância dos demais, os massacres de Yanomamis na Amazônia ou o assassinato do índio Galdino, queimado em via pública por jovens de classe média da capital nacional.

            A primeira impressão é que tais crimes assemelham-se àqueles que cotidianamente compõem as estatísticas de violência em nosso país. Entretanto, não é bem assim. Há um elemento que não pode ser desprezado: são minorias que receberam do constituinte originário uma proteção especial, exatamente por serem especiais. Segundo Hélder Girão Barreto, Professor Assistente da Universidade Federal de Roraima, região de grandes conflitos envolvendo comunidades indígenas, "enquanto direito à diferença e não mais como escala hierárquico-evolutiva é que devem ser encaradas as relações interétnicas da comunidade envolvente com os índios, suas comunidades e organizações" [06].

            Estando os direitos indígenas positivados, as considerações seguintes cuidarão de analisá-los por um prisma interno e internacional de proteção dos direitos humanos.


2. DIREITOS INDÍGENAS ENQUANTO DIREITOS HUMANOS

            O desenvolvimento do mercantilismo impôs o rompimento de fronteiras com o fito de levar seus princípios para além-mar, o que se concretizou por meio das expansões ultramarinas, as quais importaram a subjugação dos autóctones que habitavam as terras "descobertas".

            O desfecho de tais expansões dominadoras é bem sintetizado por Jacques Poumarède [07], para quem, "(...)..o choque produzido pelo encontro de 1492 conduziu aos mesmos resultados: o esbulho dos povos autóctones de seus territórios, sua alienação material e cultural em graus diferentes, sua minoração, ou seja, sua inferiorização jurídica pelo confisco dos direitos. Se fosse necessário escolher um objeto simbólico para caracterizar a colonização da América, antes do estandarte dos Reis Católicos, símbolo da soberania, ficando Colombo em 12 de outubro de 1492, não deveríamos nos lembrar do ferro que servia para marcar os índios, prisioneiros de guerra e reduzidos à escravidão, com as letras S. J. (sine jure), pois quase sempre o direito foi, na América, mais um instrumento de dominação que de libertação".

            Na atual conjuntura constitucional, não há espaço, ao menos teoricamente, para que prosperem violações contra indígenas, nos moldes acima relatados. A própria existência de um sistema especial voltado aos índios já denota a anormalidade da situação social que lhes fora imposta outrora.

            O índio deve ser tratado como homem índio, ressaltando-se-lhe, inicialmente, os direitos inerentes ao simples fato de ser pessoa, pertencente a uma comunidade, com cultura diversa da do restante da sociedade.

            Valendo-se da diferenciação explicitada por Sarlet [08], os direitos indígenas são considerados direitos fundamentais pelo fato de estarem presentes no corpo do texto constitucional: "(...) o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)".

            Antes da Constituição de 1988, os direitos indígenas restringiam-se basicamente ao direito de posse sobre a terra (já que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios pertencem não a eles, mas à União, nos termos do art. 20, XI da CF/88), ou seja, tinham natureza eminentemente civil. Entendemos que os constituintes da década de 80, divorciando-se da visão integracionista [09], estiveram atentos aos interesses dos índios, assegurando-lhes o direito à manutenção de sua organização social, costumes, crenças, línguas e tradições, bem como à permanência, participação e exploração dos recursos nas terras por eles tradicionalmente ocupadas. Ademais, reconheceu-se aos indígenas e a suas organizações legitimidade para agir em juízo na defesa de seus direitos e interesses, assegurada a intervenção do Ministério Público como fiscal da lei (arts 231 e 232) [10].

            Em princípio, compete à Justiça Federal dirimir as controvérsias referentes aos direitos dos indígenas ou de suas comunidades, conforme art. 109, XI, da Constituição Federal. No combate a interpretações restritivas a esse dispositivo, o ex Procurador Geral da República, Cláudio Lemos Fonteles, entende que: "(...) porque o art. 231, caput, da Constituição Federal ‘impõe à União o dever de preservar as populações indígenas, preservando, sem ordem de preferência, mas na realidade existencial do conjunto, sua cultura, sua terra, sua vida’, e porque o inc. XI, do art. 109, da mesma Carta, que o primeiro operacionaliza, marca na Justiça Federal de 1º Grau a competência jurisdicional para as contendas sobre direitos indígenas, a Justiça Estadual não mais está legitimada a conhecer das infrações penais cometidas por, ou contra, índios". [11]

            Com muita freqüência, confundem-se disputas territoriais com ilícitos penais e as questões de competência postergam indefinidamente as decisões. Quanto à tarefa legislativa sobre direitos indígenas, esta é da competência do Congresso Nacional, inclusive no tocante a decisões sensitivas, como a de autorizar a exploração de recursos naturais de áreas indígenas. Cumpre mencionar, ainda, que decisões de Assembléias Legislativas referentes, por exemplo, à criação de novos Municípios que se inserem em áreas indígenas, invadem a competência privativa federal estabelecida na Constituição Federal.

            Ressalte-se que os direitos dos povos indígenas também gozam de proteção internacional, estando o Brasil, como signatário de Tratados e Convenções já ratificados, obrigado a respeitá-los sob o risco de ser compelido internacionalmente para tal. Dada a sua importância, vejamos, textualmente, o que trazem esses instrumentos:

            Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) [12]

            Art.1º - Obrigação de respeitar os direitos.

            1.Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

            2.Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

            Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio [13]

            Art.II – Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como:

            a)assassinato de membros do grupo;

            b)dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

            c)submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial;

            d)medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

            e)transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.

            Art. III – São punidos os seguintes atos:

            a)o genocídio;

            b)o conluio para cometer o genocídio;

            c)a incitação direta e pública a cometer o genocídio;

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            d)a tentativa de genocídio;

            e)a cumplicidade no genocídio.

            Art.VI – As pessoas acusadas de genocídio ou de qualquer dos atos enumerados no art. III serão julgados pelos Tribunais competentes do Estado em cujo território foi o ato cometido ou pela Corte Penal Internacional competente com relação às Partes-Contratantes que lhe tiverem reconhecido a jurisdição.

            Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [14]

            Art.1º - Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.

            Art. 27 – Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.

            No âmbito internacional, não pode ser esquecida ainda a Declaração do Rio sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento (1992), proclamada pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio-Ambiente e Desenvolvimento, que em traz em seu Princípio nº 22:

            As populações indígenas e suas comunidades, bem como outras comunidades locais, têm papel fundamental na gestão do meio-ambiente e no desenvolvimento, em virtude de seus conhecimentos e práticas tradicionais. Os Estados devem reconhecer e apoiar de forma apropriada a identidade, cultura e interesses dessas populações e comunidades, bem como habilitá-las a participar efetivamente da promoção do desenvolvimento sustentável.

            Assim, não restam dúvidas que os direitos das comunidades indígenas, tomando de empréstimo a terminologia de Sarlet acima mencionada, nada mais são que direitos humanos. Ordinariamente, já deveriam ser respeitados independentemente da existência de legislação específica interna, o que já obrigaria o Estado a garanti-los.

            Não obstante todo o arcabouço jurídico presente nos níveis interno e internacional, a realidade é que diariamente os direitos dos índios são desrespeitados, principalmente no que diz respeito à proteção de suas terras, muitas vezes invadidas e tomadas por fazendeiros e garimpeiros ao arrepio da lei e sob o silêncio, e porque não afirmar sob a autorização velada das autoridades estatais competentes para salvaguardar os direitos humanos.

            A questão da terra é tão relevante, que "...se transforma no ponto central dos direitos constitucionais dos índios, pois, para eles, ela tem um valor de sobrevivência física e cultural" [15].

            Acerca dos direitos sócio-econômicos e culturais dos povos indígenas brasileiros, o Informe Brasil [16], da Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, atentou, já no ano de 1997, para algumas situações alarmantes. Diante da clareza e relevância das conclusões, que se coadunam exatamente com a crítica efetuada até o momento, passamos a reproduzi-las na íntegra, com alguns grifos que não constam dos originais:

            a) Os povos indígenas do Brasil na última década obtiveram avanços significativos em relação aos seus direitos, inclusive à demarcação e posse de suas terras; embora sua integridade cultural, física e referente a suas terras sejam continuamente ameaçadas e agredidas tanto por indivíduos, por grupos particulares que atrapalham suas vidas e usurpam suas possessões, bem como por algumas tentativas de autoridades de vários Estados para reduzir seus direitos políticos, civis e econômicos. Embora o Plano Nacional de Direitos Humanos inclua medidas positivas para combater esta situação, informações recebidas em princípios de 1997 mostram que suas medidas ainda não haviam sido significamente implementadas.

            b) A situação referente aos cidadãos indígenas do Brasil com relação à saúde, alimentação e acesso a serviços públicos é preocupante. Os índices denotam condições claramente discriminatórias em relação aos padrões e serviços da população em geral.

            c) As garantias de segurança que todo o estado deve prover a seus habitantes e que, no caso dos povos indígenas no Brasil requer medidas especiais de proteção, são insuficientes para prevenir e solucionar a permanente usurpação de seus bens e direitos.

            d) Foram realizados significativos avanços no reconhecimento, demarcação e outorgamento da posse territorial dos povos indígenas. Apesar disso, há alguns casos, especialmente no Estado de Roraima, onde a Comissão pôde com comprovar a ocorrência de ações estatais que tendem a deteriorar a segurança e vigência dos direitos humanos dos povos indígenas.

            e) A procrastinação e dificuldades no reconhecimento da integridade do povo Macuxi e da plena posse de suas terras, assim como a criação de municípios que se sobrepõem às mesmas e que debilitam suas autoridades e estruturas tradicionais, denotam a incapacidade do Estado brasileiro para defender estes povos das invasões, abusos de terceiros e de combater as pressões políticas e de policiais estaduais para reduzir sua plena segurança e gozo de direito.

            f) O povo Yanomami obteve o reconhecimento pleno de seu direito à posse de suas terras. sua integridade tanto como povo e como pessoa é continuamente agredida por garimpeiros invasores bem como pela poluição ambiental que estes geram. A proteção do estado contra estas contínuas pressões e invasões, é irregular e fraca, mantendo uma permanente situação de perigo assim como a contínua deterioração de seu habitat.

            No mesmo relatório, a CIDH recomendou ao Estado brasileiro, ente outras medidas, estabelecer procedimentos para promover, com plena participação e controle dos povos indígenas interessados, e de acordo com suas tradições e autoridades próprias, medidas compensatórias nas áreas de educação e saúde; completar a demarcação de terras, bem como a prestação de assessoria e defesa legal dos povos indígenas; paralisar toda decisão de municipalização que atinja terras indígenas, inclusive daquelas em processo de demarcação e homologação; estabelecer procedimentos que mantenham sua integridade e autonomia, de acordo com os preceitos constitucionais vigentes; além de adotar medidas de proteção federal sobre as terras indígenas ameaçadas por invasores, com particular atenção às dos Yanomami e na Amazônia em geral, aumentando-se a vigilância, o julgamento e punição severa dos autores materiais e intelectuais de tais delitos.

            No entanto, as constatações e recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos concretamente parecem não surtir efeito no Brasil, de forma a levar a uma redução na incidência de casos emblemáticos. Próximo à nossa realidade e, talvez por isso, choque e ainda desperte tanta revolta, podemos tomar como triste exemplo o assassinato do Cacique Francisco de Assis Araújo, o Xicão Xucuru [17],ocorrido no dia 20 de maio de 1998, covardemente executado a tiros em frente à casa de sua irmã, no município de Pesqueira (PE). De igual modo, acrescentando-se mais nomes à enorme lista de crimes premeditados no campo, destaca-se o atentado, por pistoleiros ligados a fazendeiros da região, que vitimou, em 07/02/03, dois índios xucurus e causou ferimentos graves no Cacique Marcos.

            Dos fatos, depreende-se que não basta os direitos indígenas estarem positivados no plano interno dos Estados e até mesmo garantidos internacionalmente, pois o que interessa é a prática, a realidade, ou em outros termos, a sua concretização.

            Essa problemática foi enfrentada por Bobbio desde a década de 60, quando já destacava a dinâmica dos direitos do homem e se mostrava preocupado com o presente e futuro desses direitos: "O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas etc.(...) O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los" [18]. Nessa linha de raciocínio, afirmava que "... o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados". [19]

            Um outro ponto que merece ser abordado nesta análise refere-se à capacidade processual do índio, haja vista a necessidade de se assegurar a concreção de seus direitos em juízo. O art. 4º, parágrafo único, do CCB dispõe que a capacidade dos índios será regulada por legislação especial. Esta disciplina, no direito brasileiro atual, compete ao Estatuto do Índio, que em seu art. 7º traz: "os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta Lei".A contrario sensu, conclui-se que o regime tutelar dos índios cessaria a partir do momento em que os mesmos passassem a integrar a sociedade.

            Nesse contexto, a previsão legal acima colacionada apenas confirmaria a violação aos direitos humanos dos índios, "que deixarão de ser considerados como tais enquanto não for ‘integrado’; depois de ‘integrado’ perderá sua própria identidade e a proteção da qual é merecedor" [20]. A verdade é que há uma confusão entre tutela enquanto "incapacidade" e tutela enquanto "proteção". Em virtude de tal incongruência, pode-se afirmar que a denominada "tutela-incapacidade" não foi recepcionada pela carta magna, porquanto a Constituição Federal abandonou o paradigma da integração (cujo pressuposto era exatamente a incapacidade), substituindo-o pelo paradigma da "interação" (cujo fundamento é precisamente a diferença).

            O que restaria incólume seria a "tutela-proteção", reconhecendo-se a diferença inerente à condição de índios. A CF/88 – que reconhece o índio como "diferente", sem que essa "diferença" possa ser confundida com incapacidade, e que reconhece a "capacidade" do índio para ingressar em juízo na defesa de seus direitos, sem depender de intermediação – alterou-se substancialmente a natureza do regime tutelar indígena: primeiro, esse regime passou a ter natureza exclusivamente "protetiva"; segundo passou ter estatura "constitucional". Portanto, esta "proteção constitucional" está protegida de ataques pela via do processo legislativo ordinário. [21]

            O cerne da questão é deixar assente que a tutela indígena é primordialmente um instrumento de proteção do povo indígena e de sua cultura, não de restrição a seus direitos de homem indígena.

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Sobre o autor
Eduardo Martins Neiva Monteiro

bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, Eduardo Martins Neiva. Direitos indígenas:: proteção necessária à luz dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 907, 27 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7760. Acesso em: 16 nov. 2024.

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