SUMÁRIO: 1. Apresentação; 2. A necessidade da crítica; 3. A relevância constitucional da OAB; 4. A questão do exame de ordem; 5. As anuidades da OAB; 6. OAB: corporação profissional ou sindicato?; 7. A aplicação das receitas da OAB; 8. O Clube dos Advogados; 9. As perguntas.
1.Apresentação
Em janeiro de 2005, a OAB/PA comunicou que o valor da anuidade de nossa Seccional seria aumentado para R$500,00, tendo em vista "a necessidade de suportar os inúmeros serviços que foram sendo conferidos aos advogados". É verdade que já existiam, na época, anuidades de maior valor, em outras Seccionais, mas não é esse o problema.
Em artigo publicado na época, "As Anuidades da OAB", afirmei que: 1) o valor que os advogados pagam, a título de anuidade, deveria servir, apenas, para fazer face às necessidades da OAB, no estrito desempenho de sua missão constitucional, de fiscalizar o exercício da profissão e defender a Constituição, a lei, o Estado democrático, etc.; 2) as anuidades da OAB, tendo natureza tributária, somente poderiam ser fixadas pelo Congresso Nacional, através de lei, sujeita ainda à sanção do Presidente da República; e 3) a OAB não poderia impedir o exercício profissional do advogado inadimplente, como forma de obrigá-lo a pagar o seu débito, cabendo à OAB, apenas, o recurso ao processo da execução fiscal.
Como costuma ocorrer, a OAB/PA não se manifestou, mas alguns meses depois foi anunciada a assinatura de um convênio, com o Tribunal de Justiça do Estado do Pará, destinado a impedir o exercício profissional dos advogados inadimplentes, o que ensejou a publicação, no mês de julho de 2005, de um novo artigo meu, "Os Inadimplentes da OAB", cuja cópia foi remetida à Seccional da Ordem e ao Gabinete da Presidência do TJE/PA. Novamente, o mais completo silêncio, embora tenham sido retiradas, das páginas da OAB/PA e do TJE/PA, na Internet, as notícias referentes a esse convênio.
Verifica-se, portanto, que a Ordem dos Advogados não aceita críticas e nem admite qualquer debate a respeito dos meus questionamentos jurídicos, quer sobre as anuidades, quer sobre o exame de ordem, quer a respeito da necessidade de seu controle pelo TCU ou sobre os seus servidores não concursados.
2. A necessidade da crítica
A Ordem dos Advogados do Brasil a todos fiscaliza, mas não admite qualquer controle de seus atos. Suas decisões são tomadas de forma soberana, no âmbito do Conselho Federal e do Conselho Seccional, sem qualquer possibilidade de questionamento, embora ela não tenha qualquer cerimônia para fiscalizar, criticar e cobrar, dos Poderes Constituídos, o respeito aos princípios constitucionais e republicanos, como na recente campanha, liderada pelo jurista Fábio Konder Comparato, que pretende fazer aprovar, pelo Congresso Nacional, e pelas Assembléias Legislativas, a regulamentação do plebiscito, como forma de ampliar a participação direta do povo nas decisões políticas do Estado brasileiro.
Para o jurista José Ernesto Manzi, construiu-se, em defesa da OAB,
"a figura jurídica inexistente de autarquia sui generis, única forma de excluí-la das restrições e controle exercido sobre os outros órgãos de fiscalização profissional. Entretanto, o fato da OAB possuir maiores responsabilidades democráticas, ao contrário de colocá-la à margem do controle da sociedade (e do TCU), lhe deve impor maior transparência, que só ocorre quando a instituição se democratiza pela submissão ao povo, origem de todo o poder, inclusive o de fiscalizar (a Advocacia). O que a torna autarquia é o exercício de função própria ao Estado (fiscalização, desdobramento do poder de polícia), mediante arrecadação de contribuição de nítida natureza fiscal, por compulsória a todos os que pretendam exercer a profissão. Não é objeto deste trabalho adentrar na discussão acerca da natureza jurídica da OAB, mas entende-se suficiente a afirmação de que, na democracia, só pode fiscalizar, quem se sujeita a ser fiscalizado." (MANZI, José Ernesto. Reflexões sobre a advocacia, em seu contexto de indispensabilidade à administração da Justiça. Texto inserido no Jus Navigandi nº 325 (28.5.2004). Disponível em: jus.com.br/artigos/5244
Nada mais natural, portanto, que a Ordem dos Advogados do Brasil, que tanto se esmera em defender os princípios democráticos e republicanos, e que não costuma perder a oportunidade para se gabar do que faz, nada mais natural que ela, dando o bom exemplo, adotasse esses mesmos princípios em sua própria casa, admitindo os questionamentos e ouvindo as críticas dos advogados, que não são poucas, em todo o Brasil, especialmente em relação às anuidades e ao exame de ordem. Apenas para dar mais um exemplo, cabe lembrar a questão, por mim denunciada, em artigo publicado em 2003, das taxas judiciárias e da sua indevida destinação, para a assistência e a aposentadoria dos advogados, apesar de já existir jurisprudência contrária do próprio Supremo Tribunal Federal. No entanto, tudo indica que, até hoje, a OAB/SP, uma das beneficiadas por essas verbas, não tomou qualquer providência a respeito.
Ressalte-se que não devem entender os advogados, ou os dirigentes da OAB, que as minhas críticas tenham qualquer intenção de denegrir a imagem de nossa autarquia corporativa. Ao contrário, se as faço é porque acredito que elas são indispensáveis, e que deveriam ser democraticamente aceitas pela OAB, porque é preciso que, através do debate, sejam corrigidos os seus erros, que no meu entendimento não são poucos. Apenas para demonstrar que não estou sozinho, embora seja muito evidente a necessidade da crítica, no regime democrático, cito as palavras da Ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, em entrevista concedida a um jornal de Belém, em outubro de 2005, falando a respeito de suas freqüentes críticas ao Judiciário:
"a idéia geral é de que não se pode falar sobre os defeitos do Judiciário com o risco de expor as fraquezas, de diminuir esse poder. Penso ao contrário: as instituições passam a ser mais seguras quando os seus membros têm a consciência de que é preciso mudar e fazer as correções, e sempre defendi que essas correções devam ser feitas de dentro para fora, porque nós sabemos o que fazer. É muito melhor do que fazer de fora para dentro. Há muito tempo, meu posicionamento dentro do STJ é: vamos fazer a reforma do Judiciário. Se nós não a fizermos, ainda assim ela virá e será traumática, porque virá de fora para dentro e quem está fora não sabe efetivamente o que precisa ser mudado."
3. A relevância constitucional da OAB
Não resta dúvida de que à Ordem dos Advogados do Brasil foi constitucionalmente confiada uma enorme gama de atribuições e responsabilidades, essenciais, todas, ao aperfeiçoamento das instituições democráticas, e que, à semelhança do que ocorre com o Ministério Público, ela se tornou, virtualmente, um dos Poderes do Estado. Apesar disso e, aliás, especialmente por essa razão, a democracia não pode existir, em hipótese nenhuma, se estiver isenta de críticas a OAB, uma das principais instituições do Estado, que interfere decisivamente no funcionamento das instituições e é, indubitavelmente, essencial, à administração da justiça e à efetividade da prestação jurisdicional. Pelos enormes poderes que concentra, não poderia a OAB, em um regime verdadeiramente democrático, estar imune a qualquer controle. Seria uma democracia capenga, uma democracia de fachada, que jamais poderia corresponder ao interesse público, porque sucumbiria, fatalmente, aos interesses do corporativismo.
A Ordem dos Advogados do Brasil, como o Ministério Público, a Advocacia Pública e as Defensorias, é essencial à efetividade constitucional. Sem ela, de nada nos serviriam os direitos e garantias fundamentais, consagrados em nossa Constituição, porque é indispensável, para que eles se tornem realidade e para a própria sobrevivência de nosso regime democrático e republicano, a efetividade da prestação jurisdicional. E, aliás, afirmado agora pela Emenda Constitucional nº 45/2004 – como se isso fosse necessário -, que essa prestação deve ser célere, o que todos sabemos que não é, nem nunca foi. E, talvez, nem se pretenda que seja, na realidade.
A Ordem dos Advogados participa, no Judiciário, em paridade de condições com o Ministério Público, na indicação de advogados para o quinto constitucional. A Ordem fiscaliza todo e qualquer concurso, da área jurídica – mas o seu exame de ordem não é fiscalizado por quem quer que seja.
Fiscaliza, também, o próprio Poder Judiciário, bem como o Ministério Público, porque ela indica dois advogados, para cada um dos novos Conselhos, inconstitucionalmente criados pela Emenda Constitucional nº 45/2004 – embora sacramentados, já, pelo Supremo Tribunal Federal -, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público.
A respeito da participação dos advogados no Conselho Nacional de Justiça, afirmava José Ernesto Manzi que:
"a Magistratura deve ser considerada, na lógica da proposta do Conselho, como a mais perigosa das instituições. O Conselho da Justiça terá participação de membros do Ministério Público e da Magistratura, não sendo a inversa verdadeira, ou seja, a Magistratura não integra os Conselhos de Ética da OAB, nem integrará os órgãos disciplinares do Ministério Público. Não há como se preservar a independência de um poder, colocando-o em situação subalterna. Se a impermeabilidade deve ser rompida, como se prega, deve constituir uma via de mão-dupla. Esta a posição de Miguel Reale Júnior, que foi Ministro da Justiça e Conselheiro Federal da OAB, em entrevista à Revista Época (Editora Globo) de 02.02.04." MANZI, José Ernesto, op. cit.
A OAB fiscaliza, ainda, a atuação legiferante do Estado brasileiro, em seus três níveis, através das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, que podem invalidar todo e qualquer ato normativo, aprovado por qualquer dos Poderes Constituídos. A OAB critica o Legislativo, o Judiciário e o Executivo. Criticou, recentemente, aliás com muita propriedade, através de seu Presidente nacional, em plena sessão solene do Supremo Tribunal Federal, e na presença do próprio Presidente da República, os abusos do Executivo, na edição de medidas provisórias. Criticou, há alguns anos, também através de seu Presidente nacional, uma decisão que concedeu a liberdade ao então senador Jader Barbalho, insinuando, de certa forma, a prática de crime pelo magistrado, que o processou, mas a Justiça absolveu o Presidente da OAB. Critica, freqüentemente, o Legislativo, acusando os seus integrantes de serem despreparados ou corruptos.
Mas não é só. A Ordem dos Advogados do Brasil avalia os cursos jurídicos e divulga um "ranking" desses cursos. Divulga, freqüentemente, através da mídia, uma imagem extremamente negativa, a respeito dos cursos jurídicos e dos professores universitários. Emite um parecer prévio - que até o presente momento ainda não conseguiu tornar vinculativo -, a respeito da autorização para a abertura de novos cursos. Além disso, a Ordem impede o exercício profissional dos bacharéis que não obtiverem aprovação em seu exame de ordem, que atenta contra diversos princípios constitucionais, entre outros o da autonomia universitária, o da liberdade de exercício profissional e o da legalidade – porque o exame de ordem é disciplinado pela própria OAB, através de um simples "Provimento" de seu Conselho Federal (Provimento nº 81/1996, agora substituído pelo de nº 109/2005).
Conseqüentemente, como exigência inelutável de qualquer regime democrático que não constitua, apenas, uma dissimulação hipócrita da prevalência dos interesses corporativos e elitistas, a Ordem dos Advogados, que a todos critica e controla, não poderia estar isenta às críticas e aos controles, sob pena de não poderem ser evitados os abusos, que naturalmente decorrem, sempre, da atribuição de poderes ilimitados, a uma só pessoa ou a um só órgão. A própria definição da tirania, no expressão de Montesquieu. Exatamente por essa razão, foi criada, com a contribuição de diversos pensadores – e definitivamente sistematizada, há mais de duzentos anos, pelo autor do "Espírito das Leis" -, a teoria da separação dos poderes, em reação aos abusos e à tirania, depois adotada, a separação dos poderes – ou das funções do Estado -, como um dos principais fundamentos dos modernos ordenamentos constitucionais.
Assim, é claro que, em um verdadeiro regime democrático – e republicano -, ninguém pode ser irresponsável. Ninguém pode estar acima de qualquer suspeita, nem isento da obrigação de responder a qualquer questionamento, referente aos seus atos. Todos, governantes e governados, são obrigados a respeitar a Constituição e as leis. Todos, até mesmo o Presidente da República, os Ministros do Supremo Tribunal Federal ou os membros do Congresso Nacional. Todos, até mesmo os juízes e tribunais, cujas decisões devem ser, sempre, fundamentadas. Todos, até mesmo a OAB. Em especial, a OAB, que tem a enorme responsabilidade, prevista no art. 44, I, de seu Estatuto, de "defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, etc." Sem falar, é claro, a respeito da corregedoria da profissão jurídica e do poder de vida ou morte sobre os profissionais, exercido pelos seus tribunais de ética e disciplina.
4. A questão do exame de ordem
Somente deve poder controlar quem se sujeita, também, aos controles, e somente deve poder criticar quem aceita, democraticamente, as críticas. Não é, infelizmente, o que acontece, hoje, com a OAB. O seu exame de ordem não é fiscalizado por quem quer que seja; nem pelo Judiciário, nem pelo Ministério Público, nem pelas Universidades. A OAB nunca responde às críticas, nem comparece aos debates agendados pelos diretórios acadêmicos. Limita-se a dizer que os cursos jurídicos formam bacharéis despreparados – o que pode ser verdade, em muitos casos -, e que a ela cabe impedir que esses bacharéis possam exercer a advocacia, o que não é verdade, absolutamente, porque cabe apenas ao Estado brasileiro, de acordo com a Constituição Federal, fiscalizar e avaliar o ensino. O bacharel em direito, tendo recebido um diploma, fornecido por uma instituição fiscalizada pelo Estado, tem o direito público subjetivo de exercer a sua profissão, para a qual obteve a necessária qualificação, de acordo com o ordenamento jurídico vigente. É um rematado absurdo que a OAB pretenda defender, intransigentemente, esse sistema, de controle "a posteriori", pelo qual se permite o funcionamento dos cursos jurídicos que não reúnem os necessários requisitos, para a formação de bons profissionais, para depois patrocinar a reprovação em massa desses bacharéis, que ficam impedidos de trabalhar, em decorrência da reprovação no exame de ordem.
Mas, apesar de todas essas evidências, decorrentes do exame jurídico e fático da questão, a Ordem dos Advogados do Brasil se limita a repetir mil vezes, por alguns de seus dirigentes – no palanque privilegiado de que sempre dispõe, na mídia -, os seus pobres argumentos, e continua a ignorar as críticas, para as quais tudo indica que não existe qualquer possibilidade de contestação plausível. Enquanto isso, cresce o exército de bacharéis desempregados – talvez sejam mais de cem mil, hoje, em todo o Brasil -, que não podem obter a carteira da Ordem, e muitos deles passam a trabalhar, para sobreviver, em escritórios de advocacia, como advogados de segunda categoria, porque não podem assinar como advogados, embora possam ter, talvez, toda a qualificação necessária para o exercício da advocacia. Assim, embora plenamente capacitados, porque o exame de ordem não é capaz de aferir, por um passe de mágica, as reais condições do bacharel em direito para o exercício da advocacia, esses advogados-bacharéis, graças à autoritária imposição da OAB, se sujeitam a trabalhar como advogados e a receber remuneração de estagiários.
Por outro lado, é um enorme absurdo, tantas vezes repetido, que a OAB pretenda que o simples fato de que os cursos jurídicos formem bacharéis despreparados para o exercício da advocacia tenha o condão de lhe transferir a competência para a avaliação desses bacharéis, que já foram exaustivamente avaliados pelas Universidades, que deveriam ter sido corretamente fiscalizadas pelo MEC. E, se isso não ocorreu, não terá sido, certamente, por culpa dos bacharéis, que já receberam os seus diplomas, autorizando-os a exercerem a advocacia.
Se esse raciocínio fosse procedente, ou apenas razoável, de que cabe à Ordem reprovar os bacharéis em direito, porque os cursos jurídicos são deficientes, ela poderia, também – e deveria, aliás -, intervir no próprio Judiciário, que todos sabemos, há décadas, que é ineficiente e moroso, para dizer o mínimo. Assim, caberia à Ordem dos Advogados do Brasil indicar advogados, para o lugar dos juízes, para que tivéssemos, finalmente, a tão sonhada celeridade da prestação jurisdicional.
Se esse raciocínio estivesse correto, de que cabe à Ordem intervir nas Universidades e no MEC, a ela caberia intervir, também, nas questões referentes à segurança pública, por exemplo, porque se o Estado não é capaz de cumprir as suas atribuições constitucionais, referentes à segurança do povo, que para isso paga os seus impostos, caberia à Ordem substituir, também, as autoridades responsáveis pelo combate à criminalidade.
Talvez fosse o caso, também, de que a OAB pudesse, ou devesse, indicar advogados para o lugar dos parlamentares – federais, estaduais ou municipais -, que, embora eleitos pelo povo, não estejam desempenhando corretamente as suas funções.
É evidente, portanto, que as eventuais falhas do MEC, do Judiciário, do Legislativo, do Executivo, ou de quem quer que seja, no desempenho de suas atribuições, não têm o condão de transferir à Ordem dos Advogados a sua competência, mas talvez todos esses exemplos, de argumentação absurda, possam servir para despertar as inúmeras mentalidades acomodadas, que costumam aceitar, sem qualquer questionamento, os fatos consumados – o exame de ordem já vem sendo realizado, pela OAB, há quase uma década -, e não se acanham em dizer que, embora sendo inconstitucional, ele é necessário, devido às deficiências do ensino jurídico.