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A Lei nº 11.232/05 e os novos rumos do processo civil brasileiro.

A caminho da fase utilitarista do processo

10/01/2006 às 00:00
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A palavra de ordem nas VI Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil, realizadas entre 10 e 14 de outubro de 2005, em Brasília, foi que o processo civil brasileiro se encaminha para uma nova fase. As reformas já feitas e as projetadas para o plano infraconstitucional demonstram a tendência de uma clara opção pela simplificação das regras sistemáticas do direito processual civil. Em breve, nem mesmo se falará mais em estrutura tripartida do processo (de conhecimento, de execução e cautelar). O resultado final das reformas que estão sendo implementadas fará com que o processo civil brasileiro seja o palco para a obtenção de tutelas jurisdicionais satisfativas (cognitivas ou executivas) e de urgência (de natureza antecipatória ou cautelar), e tudo sem a já ultrapassada e ociosa necessidade de instauração de um processo autônomo para cada uma das respectivas tutelas desejadas. O que todos queremos é um processo civil útil e racional, de fácil compreensão e manejo pelos atores da cena processual, seja sob a ótica do individuo, seja sob a ótica da sociedade. Isso será a concretização da terceira onda renovatória do direito processual, que é o enfoque de acesso à justiça, a qual, desde a década de setenta do século passado, já tinha sido percebida por Mauro Cappelletti e diagnosticada no Projeto Florença.

A estrutura tripartida do processo civil brasileiro (conhecimento, execução e cautelar) é herança direta da fase autonomista do processo, inaugurada com a obra de Bülow, a partir da qual foram sistematizados os principais institutos processuais e que fez com que o direito processual recebesse roupagem científica. A importância histórica e o avanço das especulações em torno do processo foram marcantes para que chegássemos onde hoje estamos, vale dizer, num nível muito evoluído da nossa ciência. Depois da fase autonomista, os olhos dos processualistas foram voltados à fase instrumentalista ou da instrumentalidade, cuja representação máxima no Brasil se deu pela obra de Cândido Rangel Dinamarco, com a qual foi guindado ao posto de professor titular de direito processual civil na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em meados da década de oitenta (A instrumentalidade do processo. São Paulo : Malheiros Editores). Em suas linhas gerais, a fase instrumentalista é a difusão da consciência dentre os que manejam o processo, sejam os estudiosos, sejam os operadores do foro, de que o processo é mero instrumento do direito material, sendo também instrumento para que a jurisdição alcance seus escopos sociais, jurídicos, políticos, econômicos. Vale dizer, a instrumentalidade do processo pretende que o instrumento da jurisdição seja efetivo, que cumpra, realmente, sua missão constitucional de pacificação (CR, art. 5º, XXXXV).

Porém – e aqui eu falo por conta própria –, parece que estamos vivendo no Brasil o início de uma nova fase dentro das chamadas linhas evolutivas do direito processual. Todos sabemos que as leis surgidas após o início do movimento da chamada Reforma do CPC, iniciado na metade da década de noventa e ainda em pleno curso com os inúmeros projetos de lei que atualmente tramitam no Congresso Nacional, são voltadas à preocupação de racionalizar e até de simplificar o sistema processual como um todo. Seria o "enfoque de acesso à justiça" – a terceira das ondas renovatórias do direito processual – de que falou Mauro Cappelletti em seu clássico Acesso à Justiça, escrito em colaboração com Bryant Garth.

A mim, parece que em breve a tendência do direito processual civil brasileiro será caminhar ao encontro de uma descomplicação de seu sistema, para viabilizar que o processo através do qual se exerce a jurisdição civil seja cada vez mais útil. Vale dizer: simples no seu manejo e útil em seus resultados. Após toda a consciência difundida e absorvida pela fase instrumentalista, quero crer que agora partiremos para uma fase utilitarista (ou de utilidade) do processo civil. Esse sentido utilitarista a que me refiro vem ao encontro das aspirações da sociedade. O processo civil deve ser útil em seus resultados sob a ótica do jurisdicionado! Já se sabe que o processo é o poderoso instrumento para que a jurisdição atinja seus fins sociais, jurídicos, políticos e econômicos. Mas tudo isso só tem sentido se o processo for útil a quem dele necessita, ou seja, o jurisdicionado.

Penso até – e confesso: sem nenhum pudor – que logo não mais se justificará falar em processo de conhecimento, ou processo de execução, ou mesmo – e este de fato está com os dias contados – processo cautelar. Cada uma destas hipóteses traz consigo, venia concessa, a inútil complicação do aparato processual, já que para cada uma dessas respectivas atividades (conhecimento, execução e cautelar) torna-se necessário a instauração de uma nova relação processual. Acredito que, num futuro não tão distante e a partir do comprometimento utilitarista do processo em prol do jurisdicionado, a doutrina não mais falará em processo (relação processual autônoma, portanto) de conhecimento, de execução ou cautelar. Acredito que se falará e se estudará o processo jurisdicional como um todo, e que a partir de uma única relação processual seja possível ora o desenvolvimento de atividade satisfativa (o que hoje chamamos de cognição e execução), ora o desenvolvimento de atividade de urgência (o que hoje chamamos de tutela antecipada ou tutela cautelar). Ou seja, será possível a obtenção da tutela jurisdicional necessária e útil, de caráter satisfativo ou de urgência, através, meramente, da "atividade processual", sem as adjetivações de hoje referentes ao "processo" cognitivo, ou executivo ou cautelar.

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Note-se que obtenção da tutela antecipada, atualmente generalizada pelos art. 273, 461 e 461-A, onde até mesmo é possível a antecipação de "quaisquer" efeitos do pedido formulado, sejam eles efeitos satisfativos ou acautelatórios, põe em xeque a existência autônoma de toda estrutura do Livro III do CPC que trata do processo cautelar.

Mas não é só.

O próprio processo de execução autônomo de título judicial (Livro II do CPC) foi abolido pela Lei 11.232, de 22 de dezembro de 2005, que dentre outras significativas modificações prevê o "cumprimento da sentença" como uma fase procedimental posterior ao trânsito em julgado, sem a necessidade de instauração de um novo processo, o de execução. Essa lei foi publicada no DOU em 23/dez/2005 e, conforme seu artigo 8º, terá vacatio legis de seis meses contados de sua publicação.

São fraturas que estão sendo impostas ao atual sistema do CPC e que demandarão a reconstrução de passadas teorias em nome da utilidade que a sociedade espera tenha o processo civil. Aliás, não é outra a promessa que decorre do art. 5º, XXXV, da Constituição da República.

Ora, o processo jurisdicional é uma atividade estatal típica do Judiciário, e nada impede que seja pensado e tratado a partir de uma única relação processual, com atividade satisfativa ou de urgência a ser realizada num só "processo", sem que se tenha que instaurar uma nova relação processual autônoma identificada com certa atividade desenvolvida no processo (mais uma vez, conhecimento, execução e cautelar).

Reitero, por fim, que não só a recém publicada lei 11.232/05, mas todas as iminentes alterações que o Congresso Nacional promoverá no sistema do CPC são voltadas à simplificação da estrutura do processo jurisdicional, o que parece estar encaminhado o processo civil a um novo momento de sua história. Por que não no sentido de uma fase utilitarista, com resultados úteis? A complexidade que nos foi legada pela fase autonomista já cumpriu o seu papel, devendo o processo civil ser reestruturado para que seu manejo seja absolutamente mais simples e o seu resultado seja verdadeiramente mais útil ao jurisdicionado.

O direito processual não pertence exclusivamente às complexas especulações do processualista. É antes de tudo um instrumento democrático que precisa ser útil à sociedade em geral e ao jurisdicionado que dele se utiliza para resolver determinado caso concreto.

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Sobre o autor
Glauco Gumerato Ramos

Mestrando em direito processual na Universidad Nacional de Rosario (UNR - Argentina). Mestrando em direito processual civil na PUC/SP Membro dos Institutos Brasileiro (IBDP), Iberoamericano (IIDP) e Panamericano (IPDP) de Direito Processual. Professor da Faculdade de Direito da Anhanguera Jundiaí (FAJ). Advogado em Jundiaí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Glauco Gumerato. A Lei nº 11.232/05 e os novos rumos do processo civil brasileiro.: A caminho da fase utilitarista do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 921, 10 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7825. Acesso em: 23 dez. 2024.

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