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Direito pré-moderno:

um contributo histórico e uma crítica presente

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4. a dogmática da Escola de Bolonha (Glosadores)

            Num perturbado momento, ainda medieval, mas com lentas transformações na estrutura social, os germes das (futuras) teorias modernas de Direito começam a florescer, em locais específicos, face ao específico desenvolvimento cultural de determinadas regiões. Aliás, nesse sentido, defende o prof. Boaventura de Souza Santos o surgimento do "(...) paradigma cultural da modernidade (...) antes do modo de produção capitalista se ter tornado dominante (...)". [34] Assim, pois, em grande parte para suprir o modo de produção emergente surgem novas formas de pensar o Direito. A Escola de Bolonha mostrou-se como um exemplo desse movimento de reorganização cultural que duraria séculos. [35]

            Bolonha, porém, não foi por mero acaso o palco da redescoberta dos textos clássicos. [36] Diversos elementos postularam a seu favor: (a) Bolonha era uma cidade mercantil do centro-norte da Itália, sua realidade cultural era diversa da realidade da Europa continental; (b) o contato com culturas não romanizadas, sobretudo as orientais (árabes), e sua filosofia aristotélica; (c) a atividade comercial crescente exigia novas soluções jurídicas. Atente-se, entretanto, que apesar da influência decisiva do comércio, não é possível resumir a esse elemento a retomada do estudo dos textos romanos (Direito Justinianeu). [37] O desenvolvimento da Escola de Bolonha deve ser ponderado dentro de uma perspectiva cultural. Importa relembrar que em parte da Itália medieval há a manutenção do Império Bizantino, sem o qual não seria possível reconstruir o Código Justinianeu (Corpus Iuris Civile). [38] Por outro lado, nas cidades mercantis da Itália, além dos ideais universais do império romano, era possível se observar uma espécie de nacionalismo. A congruência desses dois aspectos, quais sejam, o universalismo do império e o nacionalismo das cidades, foi fundamental no surgimento da Escola de Bolonha [39].

            A Escola de Bolonha foi originariamente uma escola de Artes. Diferenciava-se das escolas medievais tradicionais porque estas permaneciam intimamente ligadas ao ensino teológico, o que caracteriza a Idade Média. A origem profana e citadina da Escola de Bolonha influenciou sobremaneira o estudo do Direito por um ângulo inovador. A libertação do primado da teologia a diferenciava das demais instituições da época [40]. Destaca-se, nesse sentido, a criação do studium civile de Bolonha, uma escola jurídica profana.

            A utilização dos textos clássicos remontou a proposta universalista do império romano. Alia-se a essa característica a utilização do trivium [41]escolástico das universidades medievais. A propedêutica foi o substrato dos estudos em Bolonha. A releitura dos textos jurídicos antigos a partir de tais disciplinas originou um ´´entusiasmo acadêmico´´ que, notoriamente, será estranho à atitude moderna, pois pautada na crença da autoridade e do formalismo intelectual. Nota-se que a Escola de Bolonha deteve acesso progressivo a textos anteriormente proibidos pela igreja, a qual monopolizava o saber durante a idade média, como os escritos de Aristóteles (Organon).

            Logo, o desenvolvimento de Bolonha está intimamente ligado ao movimento cultural (germes de modernidade) e ao desenvolvimento econômico (germes capitalismo) que desembocaram nas cidades mercantis italianas.

            Se de um lado a aplicação do Direito Justinianeu gerou diversos conflitos nesse período medievo, devido às diferenças históricas gritantes entre as realidades medieval e imperial romana. Por outro lado, a autoridade dos textos antigos os fazia intocáveis. "O Corpus Iuris gozava da mesma autoridade no pensamento jurídico – em virtude da crença na origem providencial do império –, constituindo mais do que um jogo de palavras o dizer-se que ele teve sobre o sentimento jurídico medieval a força de uma revelação no plano do direito". [42] Por isso, a solução para a superação de tal impasse era o constante esforço interpretativo e criativo. A principal herança histórica dessa Escola.

            A ideologia que permeia a igreja romana medieval é a de que o Direito romano refletia o Direito da Humanidade, do gênero humano. Tal fato reflete a crença na sua pretensa dignidade histórica e autoridade metafísica (ligada ao surgimento do Cristianismo). O Corpus Iuris Civile não era utilizado apenas por juristas, mas também por teólogos em escritos sobre a moral. Percebe-se que a adoção do Direito Justinianeu não era apenas uma questão técnica-formal, mas também uma necessidade daquela sociedade em resgatar um fundamento seguro para uma ética político-social. O Direito Justinianeu chegou a ser considerado a ratio scripta.

            Em relação às técnicas de estudo, a expositiva é trazida do trivium escolástico para o estudo do Direito, absorvendo-se muitas de suas características. São comuns o uso da glosa gramatical ou semântica, a interpretação dos textos, a concordância e a distinção. A interpretação dos glosadores, entretanto, difere das exegeses modernas. Sua técnica de interpretação está calcada na harmonização-estruturação de idéias pautadas em princípios predeterminados pelo fundamento da autoridade. Em sua interpretação, os glosadores, não precisavam (e nem pretendiam) por a prova a justiça do texto clássico (afinal o texto era sacro e, portanto, intocável); também não pretendiam compreendê-lo ou fundamentá-lo historicamente; nem tampouco buscavam conciliá-lo com a necessidade prática. "O que eles queriam era antes comprovar com o instrumento da razão – que, para eles, era constituído pela lógica escolástica – a verdade irrefutável da autoridade". [43]

            Por ser parte de uma verdade absoluta, cada parte do texto constitui, em si mesma, uma verdade absoluta. A glosa (comentário escrito nas margens do texto) é, portanto, a forma básica utilizada. Destacam-se os estudos de figuras de dedução lógica aristotélica, aliás, a utilização da filosofia aristotélica em contraposição a perspectiva da filosofia platônica irá ser uma das influências na formação da racionalidade moderna. Perceba-se que apenas parte da filosofia aristotélica é absorvida (analítica), olvidando-se da dialética. Os glosadores também realizavam atividades que pretendiam a compatibilização de textos contraditórios – através de operações de divisões/subdivisões e sínteses – a fim de comprovar o caráter absoluto e total contido nas verdades dos textos.

            Foi a partir da referida técnica de compatibilização de regras que se forma a primeira dogmática autônoma da História européia (Summa ordinaria). Este conjunto de interpretações formou o antepassado da dogmática jurídica. A dogmática, portanto, surgiu a partir de uma proposta permeada em verdades absolutas. "Na verdade, a jurisprudência manteve-se até à atualidade (como para além dela, apenas a teologia) como uma dogmática – que pressupõe uma autoridade pré-estabelecida e absoluta de certos dogmas acerca da verdade (...)". [44] A dogmática medieval, portanto, era permeada pela idéia da autoridade do texto do Corpus Iuris Civile, sendo sua atividade uma constante busca pela ratio legis (razão da lei). O que diferencia a Escola de Bolonha da racionalidade jurídica moderna (em especial a jusnaturalista) será que a primeira observou sempre a dogmática como um substrato necessário para o processo de interpretação criativa enquanto que a segunda criou o mito do dogma para impor de forma acrítica o Direito Romano como ratio scripta. O ardil da racionalidade jurídica moderna está na impossibilidade de interpretação do dogma, algo que sequer a Escola de Bolonha cogitava.

            Os principais glosadores foram objeto de muitos textos biográficos. Entretanto, os seus predecessores ainda permanecem em certa obscuridade pela falta de informações históricas. Nesse sentido, nota-se a importância da Escola de Bolonha no cenário político medieval, sendo reconhecida tanto pela Igreja quanto pelos reis da Lombardia.

            Destaque-se ainda que, apesar de ser Bolonha o centro de referência no estudo do Direito Romano, seu estudo não ficou restrito a escola de Bolonha, existindo notícias sobre seu estudo em regiões do sul da França, da Catalunha e Grã-Bretanha. A partir do método escolástico, os textos produzidos nessas regiões posteriormente seriam utilizados pelos glosadores. Importante notar, que em Bolonha os estudos sobre o Direito Romano ganham relativo avanço e suporte graças à sistematização do conjunto da obra.

            Outra questão de destaque é a formação em massa dos juristas, formando assim uma categoria social, responsável pela administração pública, pelo manuseio do Direito. Portanto, provenientes da elite, surgem, ao lado dos clérigos, os juristas ou legalistas responsáveis pela racionalização da justiça.

            O Direito Romano passou a ser um fundamento para a justificação de força sócio-política em relação aos direitos locais, as palavras sacras do dogma romano constituíam autoridade acima das partes num litígio. A necessidade do uso de um Direito geral influenciou sua recepção nos moldes da Escola de Bolonha. São estas características que mantiveram o Direito Romano como base do Direito privado alemão e, enfim, europeus modernos.


5. Embate ao Dogma, ao Dogmatismo e à Dogmática

            O dogma, na aurora da modernidade, constitui a argamassa da construção das teorias versando sobre o Direito. O dogma fundamentou (e fundamentará?) as concepções modernas de Direito, polarizadas na dicotomia entre Direito Positivo e Direito Natural, impregnaram de forma direta ou velada o pensar jurídico Ocidental.

            A doutrina distingue da seguinte maneira as duas concepções de Direito modernas: "(...) o direito natural é aquele de que obtemos conhecimento através da razão, de vez que esta deriva da natureza das coisas; o direito positivo é aquele que vimos a conhecer através de uma declaração de vontade do legislador (...) o direito natural estabelece aquilo que é bom, o direito positivo estabelece que é útil". [45] Ambas, portanto, apóiam-se em proposições metafísicas. O Direito Natural na idéia de justo. O Direito Positivo na absolutização da virtude significativa do texto legal.

            O problema que se enfrenta, num relampejar fugaz, figura-se na proposição doutrinária de distinção entre dogma e dogmática. [46] Em Lyra Filho, é possível observar-se o combate à expressão ‘dogmática’ em igual proporção de combate a expressão ‘dogmatismo’. Quando esse critica a distinção entre ‘dogmática’ e ‘dogmatismo’ alude ao fundamento de absoluto presente nas duas expressões, ou seja, critica a absolutização da doutrina. "Por outras palavras, o dogma é a petrificação da doutrina". [47]

            Lyra Filho combate tanto à dogmática dita ‘reacionária’ quanto à dogmática dita ‘progressista’. "O dogma, apega-se, antes, à letra da teoria: ele não admite o desenvolvimento e as revisões doutrinárias. Em conseqüência, e sobretudo no emprego do adjetivo-dogmático – e do substantivo-dogmatismo –, evoca a rigidez, mais próxima da opinião imutável". [48] Por isso, a utilização do ordenamento jurídico em prol das classes oprimidas não significa defender uma nova dogmática, mas superar as ‘verdades absolutas’ cristalizadas em ‘dogmáticaS’.(!) Verdades absolutas não se prestam na construção de uma nova teoria do Direito. Isso não contraria, entretanto, a idéia de base de fundamentação para argumentação jurídica, mas elucida uma base em constante transformação.

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            Em suma, "Dogma e dogmatismo, portanto, revelam a tendência a enuclear-se em torno das idéias de teoria assente ou práxis obrigatória, amparadas no argumento da autoridade [e agora já é possível repensar historicamente o argumento de autoridade a partir do fundamento teológico medieval e a crença na ratio scripta] ou na determinação do poder, sem qualquer apoio em experimento ou demonstração". [49] Todavia, não há uma continuidade histórica, pois o argumento de autoridade não permaneceu imutável. Há uma realocação do absoluto, do dogma. O que antes se prendia a argumentos teológicos hoje se prende a idéia de discurso competente da ‘dogmática’.

            O problema em questão, entretanto, não é apenas teórico. Sob a benção da dogmática tradicional, ligada aos interesses dos donos do poder, se atua com o argumento da verdade. "O paradigma da moderna dogmática jurídica forja-se sobre proposições legais abstratas, impessoais e coercitivas, formuladas pelo monopólio de um poder público centralizado (o Estado), interpretadas e aplicadas por órgãos (Judiciário) e por funcionários estatais (os juízes)". [50]

            A História perpassa veloz nos momentos de perigo. O que observamos na atualidade é a cristalização da dogmática jurídica, inclusive a partir de sua utilização nas teorias ‘críticas’ do Direito. O apelo, em certo ponto ingênuo (ou não?), a mera concretização do ordenamento posto não se coaduna com a luta dos oprimidos pelo sistema social. É preciso mais, além de implementar o ordenamento, quando coerente com a realidade, é preciso resgatar a dialética do Direito. Afinal, ater-se ao Direito posto é ater-se a História dos vencedores e sua dominação. Por isso, o dogma não se presta a transformação social. Enquanto jusnaturalismo, órfão de mãe (História); enquanto positivismo, pai adotivo de Brutus (lei positiva).

            Em Gramsci já era possível encontrar o caminho para a construção de um Direito crítico, para o mestre italiano: "A concepção do direito deverá ser libertada de todo resíduo de transcedência e de absoluto (...)". [51]

            De igual sorte, Lyra Filho não fica apenas na contestação ao controle do Direito pela classe dominante, ele adentra as estruturas de dominação a fim de entender a ideologia utilizada pela classe dominante. A libertação dos resquícios de transcendência e de absoluto começa em Lyra Filho com a superação do dogma: "O poder burguês, em nosso tempo, se resguarda pelos dogmas, que, mesmo quando as contradições da superestrutura levam a doutrina, a jurisprudência ou até a lei a dar certa flexibilidade ao esquema jurídico-positivo, de toda sorte permanece dentro do marco infra- estrutural do modo de produção capitalista". [52] Identifica na ciência jurídica tradicional enormes distorções. "Esta não é ciência (porque ciência não tem dogmas e, mesmo quando versa sobre ‘dogmas’, não pode recusar-se a problematizá-los); não é, tampouco, do Direito (porque nos apresenta um Direito capado); nem é sequer uma dogmática moderna (porque até os que lidam com dogmas religiosos estão tratando de interpretá-los evolutivamente (...))". [53] Enfim, Lyra Filho contesta a ciência jurídica que sustenta atrocidades em nome do Direito. [54]

            Diríamos até que, se o Direito é reduzido à pura legalidade, já representa a dominação ilegítima, por força desta mesma suposta identidade; e este ‘Direito’ passa, então, das normas estatais, castrado, morto e embalsamado, para o necrotério duma pseudociência, que os juristas conservadores, não à toa, chamam de ‘dogmática’. Uma ciência verdadeira, entretanto, não pode fundar-se em ‘dogmas’, que divinizam as normas de Estado, transformam essas práticas pseudocientíficas em tarefa de boys do imperialismo e da dominação e degradam a procura do saber numa ladainha de capangas inconscientes ou espertos. [55]

            Superar o dogmatismo enquanto método (pseudo) científico [56] é tarefa da teoria crítica do Direito. "O dogmatismo é a esclerose teórica; seu equivalente prático é a inquisição, sempre disposta a culminar em violência, que vão do temor infundido à força, erguida pelos ‘justiceiros’. Esta, a suprema irrisão da espada maniquéia, levantada para um simulacro de Justiça". [57] "(...) Um dogmatismo é uma tese aceita às cegas, sem crítica, sem levar em conta as condições de sua aplicação. O dogmatismo é característico de todos os sistemas que defendem o caduco, o velho, o reacionário e combatem o novo, o progressista". [58]

            Se o momento de perigo, consubstanciado nesse apego ao dogmatismo, fez necessária a interpelação do passado histórico, foi para dizer o seguinte: o dogma jurídico, e a noção de autoridade nele contido, nasce aliado ao momento histórico pré-moderno; porém, a modernidade – anacronicamente – não o elimina, ao contrário, mitifica-o, "acumula ruína sobre ruína". O Direito é reduzido à abstrações, desapegadas da realidade concreta – um perigo cuja crítica (histórica) não está disposta a perpetuar.

            Por isso, a defesa acritica (e incondicionalmente) do ordenamento jurídico posto (defendendo uma democracia de papel) e dos conseqüentes comentários da dogmática mostra-se tarefa alheia ao passado oprimido. A autoridade do discurso competente da dogmática serve apenas como engodo para que se beatifique a opressão – na prece dos donos do poder. A teoria crítica começa na desabsolutização da dogmática e, principalmente, dos dogmáticos, os quais ainda acreditam ser a rainha de copas do mundo de Alice no país das maravilhas.

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Sobre os autores
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Thais Sampaio da Silva

bacharel em Direito pela UFPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan ; SILVA, Thais Sampaio. Direito pré-moderno:: um contributo histórico e uma crítica presente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 939, 28 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7902. Acesso em: 7 mai. 2024.

Mais informações

Trabalho realizado no Programa de Monitoria Didática da disciplina História do Direito da UFPR, sob a coordenação do professor Dr. Ricardo Marcelo Fonseca.

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