Segundo Sócrates (470-399 a.C.), a base das virtudes está no domínio da racionalidade sobre a animalidade (no autodomínio; na liberdade frente aos instintos), que leva à verdadeira felicidade [01]. É verdadeiro o ditado: "quem não vive como pensa, acaba pensando como vive" [02]. Quer dizer: quem não vive segundo as exigências da razão, raciocina segundo as exigências (imediatistas) das paixões, da sensibilidade, dos apetites ou satisfações físicas.
Cumpre, pois, rejeitar, de plano, o relativismo que impera nas sociedades atuais, que pensam como vivem. É a verdade (racional, científica e moral) que deve conduzir o ser humano, não as opiniões, da maioria ou da minoria. Segundo penso (e aqui não colimo ofender ninguém; expresso uma idéia abstrata, geral), o relativismo é próprio dos espíritos medíocres (medíocres porque não compreendem as verdades ou porque, compreendendo-as, não se dispõem a submeter-se às suas exigências).
Muito bem. Escrevo contra a legalização da pesquisa com células-tronco embrionárias, contra a legalização do aborto, em qualquer hipótese, inclusive contra a autorização do aborto do anencéfalo. Estou convencido, pelo que demonstraram especialistas de renome, especialmente o Dr. Jérôme Lejeune, da Universidade René Descartes, em Paris, pai da genética moderna e descobridor da Síndrome de Down, de que a vida começa com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, como também de que o anencéfalo é um ser humano vivo, ainda que malformado, merecedor de toda a proteção legal.
Afirmou o Dr. Lejeune:
"O que define um ser humano é o fato de ser membro da nossa espécie. Assim, quer seja extremamente jovem (um embrião), quer seja mais idoso, ele não muda de uma espécie para outra. Ele é da nossa estirpe. Isto é uma definição. Diria, muito precisamente, que tenho o mesmo respeito à pessoa humana, qualquer que seja o número de quilos que pese, ou o grau de diferenciação das células." [03]
Ora, é óbvio que o ser humano no início da sua existência e do seu desenvolvimento não apresenta toda a complexa estrutura do homem maduro, plenamente desenvolvido. O começo de todas as coisas é mais simples do que o seu pleno desenvolvimento. Uma árvore frondosa é um ser mais complexo – pelo menos sob o aspecto externo, da forma – do que a semente germinada.
É frágil a tese dos abortistas; é relativista, cheia de eufemismos.
Apenas para argumentar, poder-se-ia admitir existir alguma controvérsia entre os especialistas sobre o começo da vida e sobre a situação do anencéfalo. Controvérsia estranha, porque nos meus tempos de escola parecia não haver qualquer dúvida.
Pois bem. O direito à vida é o primeiro de todos os direitos; é um direito humano. Se não há acordo entre todos os especialistas, mesmo que não houvesse certeza científica de que vida não há (o que, decididamente, não me parece ser o caso), impor-se-ia a proteção do embrião e do anencéfalo, desde a fecundação do óvulo. In dubio pro embrião. In dubio pro anencéfalo. Na dúvida, deve-se tomar a decisão mais protetiva da vida.
Não é legítimo matar o que pode ser – na verdade, é – um ser humano. Por quê? Porque os seres humanos (bem ou malformados, completamente desenvolvidos ou não) são iguais perante a lei, perante a Constituição e o Estado; não podemos submetê-los a discriminações arbitrárias e injustificadas.
Qualquer lei que pretenda legitimar o aborto, inclusive do anencéfalo – prática semelhante às dos nazistas, que vilipendiavam os deficientes físicos –, seria flagrantemente inconstitucional. Com efeito, dispõem os arts. 1.º, III, e 5.º, caput, da Constituição Federal de 1988:
"Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III – a dignidade da pessoa humana;".
"Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
(...)
XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;
(...)
XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação penal;
(...)
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
(...)
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura (...);
(...)
XLVII – não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
(...)
e) cruéis;
(...)
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
(...)
§ 1.º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2.º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3.º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais." (Parágrafo incluído pela Emenda Constitucional n.º 45, de 30 de dezembro de 2004) (grifos nossos)
Veremos que no aborto um homem – um ser humano – inocente é torturado e assassinado de forma cruenta. Sua pena (capital) é mais grave do que a dos verdadeiros criminosos, que possuem, ademais, direito de defesa. Seu delito é existir. Seu azar é ser fraco. O médico e sua mãe exercem verdadeiro juízo de exceção para decretar-lhe a morte.
Pelo art. 5.º, XLI, não restam dúvidas de que a descriminalização do aborto seria uma aberração inconstitucional. Toda discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais deve ser punida por lei. No aborto, um ser humano mais fraco é privado do seu direito à vida e, conseqüentemente, de todos os seus direitos.
O direito positivo brasileiro, frise-se, não desconhece a verdade científica. Tanto que o Código Civil Brasileiro, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, estabelece:
"Art. 2.º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro."
Demais disso, o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, que dispõe no art. 4.º:
"1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito está protegido pela lei e, em geral, a partir do momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente."
Tenha-se em mente o que acontece no abortamento. Ele é feito por um destes processos: 1.º) o bebê é arrancado aos pedaços pelo bisturi do médico, que o corta dentro do útero da mãe. Trata-se de verdadeiro esquartejamento; 2.º) é esmigalhado seu pequenino crânio para que morra; 3.º) o bebê é retirado vivo do ventre de sua mãe, para que morra, já que fora do útero não consegue sobreviver; 4.º) injeta-se uma solução salina na bolsa em que o embrião se aninha, e o bebê morre cauterizado; 5.º) no chamado aborto parcial, extrai-se do ventre materno, mesmo durante o parto inconcluso, o corpo da criança, com exceção da cabeça; "perfura-se, a seguir, o crânio da mesma com um instrumento afiado e faz-se a aspiração do cérebro". Segue-se a retirada do crânio [04].
Tudo o mais são distorções da verdade e eufemismos. Formas de amenizar a realidade. Substituir, por exemplo, a expressão aborto por interrupção da gravidez não condiz com a verdade. O parto prematuro também é interrupção da gravidez. O que define o aborto é a morte do embrião ou do feto, de um ser humano, pois.
Não tenho dúvidas acerca da existência do direito natural. A razão demonstra que o legislador e os juízes não detêm poder absoluto. Devem legislar e julgar atentos às leis que regem a natureza humana (sabedores de que o homem não é um animal qualquer; é dotado de racionalidade. Não está sujeito apenas aos instintos. Pode domá-los pela razão). O direito positivo é um instrumento da justiça e do bem comum; não é fim em si mesmo. A democracia, igualmente, não é fim em si mesma; deve servir ao bem comum.
Com efeito, o reconhecimento da existência dos direitos humanos – a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 –, do direito à vida, à integridade física, à igualdade, à liberdade nada mais são do que o reconhecimento da existência do direito natural.
Podem o legislador ou o Judiciário, legitimamente, autorizar o extermínio de judeus, ou de negros, ou de louros, ou de pessoas com deficiência mental? Negar o direito natural implica responder sim, porque tudo seria permitido à maioria ou aos mais influentes nos bastidores do poder (aos melhores lobistas, às organizações internacionais mais abastadas).
Sócrates, Platão e Aristóteles, filósofos pagãos, gigantes do pensamento universal, que precederam o cristianismo, já reconheciam a existência do direito natural [05].
Santo Agostinho advertia:
"Em conseqüência, onde não há verdadeira justiça não pode existir verdadeiro direito. Como o que se faz com direito se faz justamente, é impossível que se faça com direito o que se faz injustamente. Com efeito, não devem chamar-se direito as iníquas instituições dos homens, pois eles mesmos dizem que o direito mana da fonte da justiça e é falsa a opinião de quem quer que erradamente sustente ser direito o que é útil ao mais forte. Portanto, onde não existe verdadeira justiça não pode existir comunidade de homens fundada sobre direitos reconhecidos e, portanto, tampouco povo, segundo a definição de Cipião ou de Cícero." [06]
Vale advertir, contra certos preconceitos de que a Igreja Católica e alguns católicos apelidados radicais ou tradicionalistas têm sido vítimas: um cientista ou jurista não sofre diminuição em sua capacidade técnica por ser católico. Aliás, é preferível deixar-se influenciar por motivações religiosas e racionais do que, por exemplo, por objetivos estritamente individuais ou, quem sabe, econômicos. Observe-se que os não católicos também são influenciados pelas religiões ou correntes de pensamento que – consciente ou inconscientemente – abraçam.
As posições da Igreja Católica são – pasmem! – racionais e não meramente religiosas. Possuem base científica robusta. Sublinhe-se que foi a Igreja quem nos deu gigantes do pensamento universal como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. A Igreja de Roma tem tradição e competência intelectual. Aliás, o pensamento cristão não desconhece lições importantes dos filósofos pagãos.
Não sejamos, pois, preconceituosos. Julguemos os argumentos e não partamos do preconceito da falta de autoridade de quem argumenta. Discutamos os argumentos e não sobre quem argumenta. Do contrário, ficará evidente que os argumentos de quem contesta a posição dos católicos tradicionalistas são demasiadamente frágeis.
Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados, na Comissão de Seguridade Social e Família (CCSF), o Projeto de Lei (PL) 1.135, de 1991, de autoria do Dep. Eduardo Jorge, que descriminaliza o aborto no Brasil, ao qual foram apensados inúmeros projetos pró e contra o aborto, tendo sido, ainda, apresentado um substitutivo ao projeto original pela Relatora Dep. Jandira Feghali, do PCdoB, que opinou pela sua aprovação.
Solicito, pois, aos senhores deputados do Brasil, lembrando que o cânon 1398 do Código de Direito Canônico da Igreja Católica comina pena de excomunhão latae sententiae (automática, independente de proclamação formal) ao católico que provoca aborto, seguindo-se o efeito, que votem e se empenhem contra qualquer proposição legislativa que promova o aborto em nosso País. Aliás, a Santa Sé tem advertido que os políticos e legisladores católicos não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão se defendem projetos de lei nesse sentido. Creio, aliás, que os católicos, mesmo os não-políticos, que defendem projetos dessa natureza também não estão aptos a aproximarem-se da Sagrada Comunhão. Certamente, o sangue dos pequeninos inocentes recairá sobre a cabeça dos legisladores que defenderem semelhantes propostas.
Notas
01 MARTINS FILHO, Ives Gandra. Manual esquemático de história da filosofia. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2004. p. 31.
02. __________. Manual esquemático de filosofia. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2003. p. 12.
03 In: AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. O Bebê de proveta. Extraído do site: www.cleofas.com.br/virtual/texto.php?doc=moral&id=97. Acesso em: 8 nov. 2005.
04 BETTENCOURT, Estêvão. Católicas pelo Direito de Decidir (CDD). Pergunte e Responderemos, Rio de Janeiro: Lumen Christi. Ano XLVI. Setembro de 2005. n.º 519. p. 397-99.
05 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 20. ed., rev. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 306.
06A cidade de Deus: (contra os pagãos). Tradução de Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2003. v. 2. p. 412.