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(Mais) um passo atrás no direito brasileiro .

Quem vai cuidar do guarda da esquina?

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Quem não se lembra da frase atribuída ao então vice-Presidente Pedro Aleixo, que, em face da edição do AI-5 (13 de dezembro de 1968) perguntou: "E quem vai controlar o guarda da esquina"? Pois bem. Em tempos de democracia, de Estado Democrático de Direito e de efervescência do constitucionalismo (para se ter uma idéia, somente nos últimos anos foram defendidas mais de 400 teses de doutorado e 2.000 dissertações de mestrado exaltando a força normativa da Constituição, a "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição", o devido processo legal, a principiologia constitucional, além de mais de 2.500 obras de direito processual-constitucional), somos surpreendidos com novas leis que apontam para um caminho inverso dessa efervescência cívico-republicana, que vem sendo construído passo a passo desde 1988.

Com efeito, no dia 7 de fevereiro último, entraram em vigor três leis extremamente nocivas às garantias processuais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, para não falar da inafastabilidade da apreciação jurisdicional sobre lesão ou ameaça a direito (reserva da jurisdição), assim como da presunção de inocência, da reserva da lei e da exclusão de provas ilícitas.

A primeira delas, a Lei n.º 11.276, que pretende alterar a redação dos artigos 165, 277 e 302, do Código de Trânsito Brasileiro (Lei n.º 9.503/97), dá a eles a seguinte redação:

"Artigo 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica".

Embora a redação do dispositivo, à vista desarmada, pareça atender as demandas por políticas de combate à violência no trânsito – que certamente alcançam forte apelo e apoio popular –, é preciso lançar-lhe um olhar constitucional, mormente a partir da leitura dos demais dispositivos, conforme veremos em seguida. Talvez o maior problema não seja a redação do dispositivo, e, sim, o modus operandi, conforme será demonstrado no seguimento. Com efeito, mais uma vez consagra-se, aqui, um sucedâneo administrativo de velho "crime de perigo abstrato", em que não se caracteriza lesão a nada nem a ninguém, ou até mesmo ameaça atual.

Tal dispositivo é próprio a uma política pública que pretende instrumentalizar simbolicamente a repressão (penal, administrativa, etc), ao arrepio das garantias individuais, as mais comezinhas, tal como a da liberdade individual. Afinal, "a liberdade consiste em fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem" (Stuart Mill). E mesmo que se concorde com Montesquieu, "a liberdade consiste em fazer tudo o que as leis não proíbam", lei, para o caro barão de la Brède, é uma relação (não apenas um limite!) que (se) estabelece reciprocamente (entre) cidadãos livres e iguais numa república...

Cabe notar a "abertura" do tipo administrativo com os dois "ous", ferindo a exigência de no mínimo, um "certo grau de taxatividade. Como se isso não bastasse, a fim de garantir "efetividade" a esse dispositivo, a suposta Lei atribui aos "fiscais de trânsito" (polícia?) poderes que nem mesmo teria um magistrado, ao visar instituir:

"Artigo 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo Contran, permitam certificar seu estado.

Parágrafo 1º. Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos".

Cabe perguntar: "sob suspeita"? E de quem? Dos fiscais de trânsito? "Será submetido" por quem? Pelos fiscais de trânsito? O que significa a expressão "submetido"? Submeter alguém não implica o uso da força? E a que outros "exames" a disposição se refere? De sangue, urina também? Há diferença entre "testes" e "exames", "perícia"? Mais uma vez, salta aos olhos a quantidade de "ou´s" a pretender atribuir competência discricionária a fiscais de trânsito (a Lei não diz polícia!) que nem mesmo a magistratura estaria constitucionalmente autorizada a exercer (lembremos aqui, em linha similar, a recente lei que alterou o artigo 112 da Lei de Execuções Penais, delegando ao diretor do presídio a tarefa de atestar a conduta do detento).

Uma pergunta relevante: o que ocorre se o condutor se recusar a fazer prova contra si mesmo, exercendo, aliás, direito constitucional seu, correlato da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa? Veja-se o que determina o parágrafo 2º do mesmo dispositivo:

"No caso de recusa do condutor à realização dos testes, exames, da perícia previstos no caput deste artigo, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor".

São tantas as violações à Constituição da República nesse parágrafo que daria para resgatar toda a história do constitucionalismo no mundo e no Brasil. Primeiro, o dispositivo não reconhece o direito constitucional de não se fazer prova contra si mesmo, já que atribui ônus à recusa de se submeter à realização de testes, exames, perícia, qual seja, a conseqüência de se ver sob o julgo de um "agente de trânsito"! Segundo, fala-se de "infração"... Infração? A julgamento de quem? Terceiro, "infração caracterizada mediante a obtenção de outras provas admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor" etc.

Em uma democracia, agente de trânsito determina produção de prova? E produção de prova sem contraditório, ampla defesa, devido processo? O agente de trânsito, ele mesmo, determina a "produção de prova" (sic) e a realiza? Ele é, ao mesmo tempo, fiscal, investigador, acusador e juiz dos "notórios sinais de embriaguez"? E não se diga que, por se tratar de "infração administrativa", o devido processo legal é inaplicável. Ora, a Constituição determina o devido processo legal tanto para crimes como para "infrações administrativas" (veja-se a garantia do cidadão quando processado administrativamente).

E onde está aquele que supostamente teria sofrido lesão ou ameaça pelo condutor? E a vítima? Ainda que se possa considerar a existência de infração a um dever não correlato a direito algum, não se pode atribuir a quem investiga poderes que nem mesmo o Ministério Público ou a magistratura teriam para acusar ou julgar alguém de ter cometido tal infração.

Isso é ferir o princípio constitucional do devido processo legal! Afinal, qual juiz responsável, neste país, simplesmente acataria "provas" (sic) produzidas nesse "foro policial-administrativo, deixando-a a cargo de "agentes de trânsito"? Por isso, perguntamos novamente, invocando Pedro Aleixo: e quem vai controlar o agente de trânsito? Insista-se: não é porque o Código está a tratar de infração administrativa que o cidadão perde o direito à ampla defesa, mormente em se tratando de disposição draconiana como a que se está a examinar, em que o agente de trãnsito tem poder maior que o Ministério Público ou o juiz. O Estado não está proibido de proibir condutas; deve, entretanto, evitar punições ao arrepio das garantias constitucionais.

Com isso, ninguém está a fazer a apologia da irresponsabilidade no trânsito. Muito antes pelo contrário! O que se exige é a devida responsabilização jurídica! O Direito não pode ser usado para fazer as pessoas "melhores". Ninguém desconhece as questões morais aqui envolvidas. Todavia, a questão é que, sob a desculpa de se tomar "medidas eficazes de combate à violência" (lato sensu), não se pode violar direitos fundamentais, inclusive daqueles que se consideraram lesados ou ameaçados por alguém que teria conduzido "embriagado". Tal política (proto)criminal, no mínimo, seria absurda, autocontraditória, principalmente se quisesse supostamente garantir o direito de quem quer que fosse, inclusive o direito das vítimas.

Veja-se, assim, o grande número de inconstitucionalidades presentes em tão pequena lei. Para se ter uma idéia acerca da violação do devido processo legal e da presunção da inocência, o Tribunal Constitucional da Espanha, no longínquo ano de 1988, quando nascia nossa Constituição, declarou inconstitucional dispositivo do Código Penal que punia todo aquele que "tuviera en su poder ganzúas y otros instrumentos destinados especialmente para ejecutar el delito de robo y no diere descargo suficiente sobre sua adquisición o conservación". Ainda que se tratasse de exame da constitucuionalidade de um tipo penal, o exemplo vale para o acso em pauta, porque se trata da defesa do princípio da presunção da inocência.

Com efeito, naquele caso, o tribunal considerou violado o princípio da presunção da inocência, aplicando a técnica da "Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung", embora a ela não tivesse feito diretamente menção. Ou seja, seria inconstitucional qualquer interpretação do referido tipo penal que viesse a castigar tão-somente a posse de instrumentos idôneos: "en cuanto se interprete que la posesión de instrumentos idôneos para ejecutar el delito de robo presume que la finalidad y el destino que les da su poseedor es la ejecución de tal delito". Compare-se essa decisão com o que estamos a discutir.

De forma mais simples: a nova lei é falgrantemente inconstitucional, devendo ser corrigida em sede de jurisdição constitucional. De qualquer sorte, há que se tirar lições do episódio. Certamente a lei, embora vigente, será declarada inválida. Entretanto, o que impressiona é o terreno fértil que o direito brasileiro representa para leis desse jaez. Por isso, a nossa insistência em chamar a atenção para a crise paradigmática que atravessa o direito brasileiro.

Se no Brasil adulterar chassi de automóvel – por lobby das seguradoras de automóvel – tem apenamento maior que o homicídio cometido com o automóvel – e isto não causa estranheza na comunidade jurídica –, é porque alguma coisa não vai bem; um país em que furto qualificado de um botijão de gás dá pena maior do que sonegar tributos ou lavar dinheiro – e isto não proporciona a angústia do estranhamento no interior do imaginário dos juristas – é porque necessitamos urgentemente rever o nosso modus interpretativo sobre o papel do Direito.

Isto para dizer o menos, sem considerar a visão de mundo dos operadores de direito: quando não nos impressionamos com cotidianas condenações de pessoas pobres por furtos de bagatela e prisões preventivas mal fundamentadas, é porque a luz amarela dos direitos fundamentais está acendendo, de há muito, só que não a estamos enxergando. Isto nos faz lembrar de um poema de Eraclio Zepeda, poeta mexicano: quando as águas da enchente cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito começou a chover na serra, ainda que não nos déssemos conta!

A segunda Lei promulgada pelo presidente da República, em 7 de fevereiro, de nº 11.277, visa inserir, ao final da seção 1 (Dos requisitos da petição inicial), do capítulo 1 (Da petição inicial), do Título III (Do Procedimento ordinário), do Livro I, "Processo de Conhecimento", do Código de Processo Civil, a seguinte alteração:

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"Artigo 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada".

De pronto, cabe indagar: como falar em "matéria controvertida" se não há controvérsia antes da citação do réu? O que é matéria unicamente de direito, que dispensa levar a sério o caso concreto? O que são hermeneuticamente "casos idênticos"? Pois, do ponto de vista jurídico-processual, caso idêntico só ocorreria se as partes fossem as mesmas, o pedido e a causa de pedir fossem os mesmos. Ou seja, se estivéssemos diante do mesmo caso já submetido à apreciação do Judiciário e não somente daquele juízo. Então, estaríamos diante de litispendência ou de coisa julgada! Santo Ivo protetor dos advogados! Pois em outra hipótese não há caso idêntico!! Pois um caso só é idêntico a si mesmo!! Não há como sustentar aqui nem sequer uma suposta introdução da exigência de o juiz seguir os seus próprios precedentes, pois o dispositivo diz "poderá", e não "deverá"!!!

Mesmo que o juiz fosse, e juridicamente é, obrigado a ser coerente ao julgar, no sentido do que Dworkin chamaria de integridade, ele, juiz, não pode passar por cima do contraditório e da ampla defesa, não pode se substituir ao réu, dispensando citação, decidindo sem ouvir sequer o suposto beneficiário da sua decisão! Juiz não é parte! Isso é antidemocrático, ilegítimo e arbitrário.
Mais do que isso, é reforçar o positivismo jurídico em tempos de neoconstitucionalismo, na medida em que desindexa da apreciação judicial o mundo prático, a faticidade. Ainda que se abra a possibilidade de apelação da sentença, não se justifica um "contraditório posterior", um "contraditório postergado"! Afinal, como apelar de algo do qual não se participou a não ser pedindo pela nulidade do processo?

Contudo, há mais, uma vez que a "resposta" a essas perplexidades reside e decorre do conteúdo da terceira Lei promulgada no dia 7 de fevereiro, a de nº 11.276, na nova redação que pretende dar ao artigo 518, parágrafo 1º, do CPC, outra pérola advinda de uma suposta tentativa de garantia de efetividade (celeridade) processual:

"Parágrafo 1º O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal".

Mais uma vez, viola-se o devido processo legal, de uma forma ingênua, em razão, inclusive, da cadeia de recursos que se abririam às partes, enfim, por maiores que pretendam ser as limitações à interposição, por exemplo, de agravos. Ao final, para lembrar o título da memorável comédia de Sheakespeare, estamos diante de "Muito barulho por nada". O que causa indignação é tanto desrespeito à Constituição em nome de algo verdadeiramente inócuo. Pois a única coisa que ganhamos com tudo isso é a corrosão da constitucionalidade, é a suspeita com o Direito, é a desilusão e a perda de sentimento constitucional, frustração e mais frustração com o uso vergonhosamente mesquinho do direito processual e da lei.

Sabemos que a aplicação de súmulas também se dá por um processo interpretativo. Textos não amarram a vida se não forem vividos. Sabemos que, por maiores que sejam as restrições à interposição de recursos, paradoxalmente, sempre haverá um juízo de retratação, inserido estrategicamente aqui e ali como desculpa pela irresponsabilidade no exercício de uma das funções mais importantes para a consolidação da democracia, a jurisdição. Sempre haverá um agravo, ainda que regimental, no Tribunal, deixado na penumbra para ser usado, inclusive por aqueles que "inspiram" reformas processuais tão relevantes (sic) em nosso país.

Sabemos também que se nada disso bastar, ainda cabe o bom e velho mandado de segurança. E, por fim, a desobediência civil, que exige, desde agora, desde já, estocar comida para que se possa resistir ao arbítrio que se insinua candidamente revestido de "preocupação social" e com "a efetividade da prestação jurisdicional". Ou mesmo, quem cabe, restará o implacável julgamento final, não do STF, mas do tribunal da história.

De fato, parece não haver dúvidas de que há muito tempo chove na serra...!

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Sobre os autores
Lenio Luiz Streck

Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Doutor em Direito. Doutor em Direito pela UFSC. Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa. Professor da Unisinos. Professor da Universidade de Coimbra (Portugal). Autor de 20 livros e de 85 artigos. Conferencista nacional e internacional.

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Professor Associado III de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG (Graduação e Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado). Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Pós-Doutorado em Teoria do Direito pela Università degli studi di Roma TRE. Bolsista em Produtividade pelo CNPq. Membro Diretor do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STRECK, Lenio Luiz ; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. (Mais) um passo atrás no direito brasileiro .: Quem vai cuidar do guarda da esquina?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 959, 17 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7987. Acesso em: 5 nov. 2024.

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