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O fenômeno da globalização e seus reflexos no campo jurídico

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Este trabalho é um pequeno ensaio sobre as transformações da sociedade industrial, os reflexos da globalização no campo jurídico, com especial referência às relações entre Direito, Estado, cidadania e democracia.

RESUMO

            O presente artigo tem por objetivo o estudo do fenômeno da globalização, concebida aqui como parte do processo de integração da sociedade capitalista industrial, e seus efeitos no mundo jurídico.

            Este trabalho está dividido em três partes. Analisa-se, na primeira, as transformações sofridas pela sociedade capitalista industrial em direção à emergência da sociedade global do conhecimento; na segunda, as dimensões da globalização, destacadamente seus aspectos econômico, financeiro, tecnológico, político, social e cultural; e na terceira, o aspecto jurídico da globalização, essencialmente no que diz respeito às alterações do modo tradicional de produção do direito no Ocidente.


1.INTRODUÇÃO

            Asseverou Lavosier: no Universo nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Com estas palavras, esse célebre cientista e pensador francês do século XVIII tornou conhecido o princípio da conservação da matéria e, mais do que isso, evidenciou que o movimento de transformação é o agente responsável por esse milagre evolutivo.

            Às portas do século XXI, pode-se constatar que o signo da transformação extrapolou as fronteiras da química, ampliou-se e envolveu todos os aspectos da vida moderna: do individual ao coletivo, do social ao político, do nacional ao supranacional. Os paradigmas sobre os quais se estruturou a sociedade industrial são insuficientes e inadequados para que a nova sociedade global floresça.

            É preciso um novo conjunto de metas e valores para que os padrões sociais sejam recriados, na verdade, são necessários novos padrões sociais e jurídicos que restabeleçam uma correta relação entre os indivíduos, as instituições e as realidades política, econômica, social, cultural e tecnológica das sociedades modernas.

            A globalização da economia funcionou como vetor das principais transformações do século XX. As avançadíssimas tecnologias propiciaram a criação de um mercado mundial desterritorializado, cujas partes são interdependentes e hegemônicas; a emergência de uma cultura global, com base em idéias comuns compartilhadas por pessoas de todas as nacionalidades em todo o planeta, e o deslocamento do poder da esfera política para a esfera econômica, com o conseqüente enfraquecimento do Estado-nação como ator internacional. Essas são algumas das mudanças positivas mais perceptíveis, permeadas, entretanto, pelo crescimento da miséria, exploração, opressão, desagregação, desvalorização e degradação da condição humana e do meio ambiente.

            A realidade do mercado, e dos valores que lhe são inerentes, estão gradativamente substituindo os valores culturais tradicionais, criando uma nova forma de ser e pensar baseada no consumo indiscriminado de objetos, coisas e modos comerciais de sentir e sentir-se enquanto ser humano, alterando a própria realidade psicológica das pessoas e sua apreensão do mundo sensível, descortinando-se também, nesse contexto, uma nova realidade jurídica.

            O direito, nos seus mais variados campos, modificou-se muito com a globalização da economia. Isso pode ser facilmente percebido com o surgimento de uma prática legal baseada no modelo jurídico norte-americano, totalmente voltado para a internacionalização dos mercados, a organização dos serviços legais em função das atividades comerciais e o predomínio dos métodos legais anglo-saxões nos acordos internacionais e nos processos de arbitramento. Por outro lado, existem também inúmeros esforços internacionais no sentido de promover a proteção dos direitos humanos, especialmente no que se refere aos direitos sociais e ambientais, da democracia, cidadania e justiça social; o controle da arbitrariedade dos governos nacionais e o fortalecimento do Poder Judiciário.

            A importância deste assunto cada vez mais relevante. Este trabalho é um pequeno ensaio sobre as transformações da sociedade industrial, o papel da globalização como vetor destas mesmas transformações e seus reflexos no campo jurídico, com especial referência as relações entre o direito e o Estado, e entre o direito, a cidadania e a democracia, destacando, por último, as alterações provocadas na prática legal, no modo de produção do direito europeu e, em caráter geral, do próprio direito.

            Finalmente, é necessário ressaltar que o corte epistemológico feito em relação ao modo de produção do direito na Europa foi centrado em duas direções. A primeira, referindo-se ao intuito de se apresentar o processo de transformação de um espaço jurídico em função da globalização econômica e das necessidades do mercado mundial. A segunda, voltando-se à objetividade e ao caráter sintético do presente estudo, a partir da qual se tornou mais adequado trabalhar com um único espaço geográfico, excluindo a América Latina, a África e a Ásia, não desconsiderando, em hipótese nenhuma a importância das transformações do direito e da prática jurídica nessas regiões.


2. A ERA DAS TRANSFORMAÇÕES

            A globalização apresenta-se como um fenômeno de porte único, que há muito tempo transcendeu os limites da economia mundial, marco de sua gênese, tornando-se presente e determinante em todas as áreas em que o conhecimento e o desenvolvimento humano se processam.

            No final do século XX, o mundo, compreendido em sua totalidade, atravessa uma fase crítica que, por sua vez, decorre de uma transformação nuclear de todos os valores que se argimentaram na base da sociedade. Os reflexos desse processo alcançam tanto o microcosmo individual como o macrocosmo social, alterando intimamente o homem em si mesmo e a sua organização em sociedade, o que pode ser observado quer seja em nível político, financeiro, econômico, quer seja em nível cultural, ideológico ou espiritual, levando, em cada um deles, ao rompimento dos paradigmas com os quais eram identificados.

            O autor austríaco Fritjof Capra leva-nos a pensar sobre a importância e a magnitude desta situação ao refletir sobre a extensão e a profundidade que esta alcança; em suas próprias palavras:

            "A transformação que estamos vivenciando agora poderá muito bem ser mais dramática do que qualquer das precedentes, porque o ritmo de mudança de nosso tempo é mais célere do que no passado, porque as mudanças são mais amplas, envolvendo o globo inteiro, e porque várias transições importantes estão coincidindo. As recorrências rítmicas e os padrões de ascensão que parecem dominar a evolução cultural humana conspiram, de algum modo, para atingir ao mesmo tempo seus respectivos pontos de inversão. O declínio do patriarcado, o final do combustível fóssil e a mudança de paradigma que ocorre na cultura sensualista, tudo está contribuindo para o mesmo processo global. A crise atual, portanto, não é apenas uma crise de indivíduos, governos ou instituições sociais; é uma transição de dimensões planetárias" [01].

            De acordo com Lewis Munford [02], as profundas transformações que os indivíduos e as sociedades estão sofrendo em escala mundial só podem ser comparadas com as causadas na sociedade ocidental pelo advento da agricultura no período neolítico, a difusão do cristianismo durante a queda do império romano e a mudança da perspectiva medieval nos séculos XVI, XVII e XVIII.

            As descobertas científicas que surgiram no final da Idade Média e no Renascimento, baseadas nos trabalhos de Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, Johan Kepler, Blaise Pascal, Isac Newton, Francis Bacon e Renés Descartes foram de extrema importância para concretizar transformações que propiciaram a criação da sociedade capitalista industrial. Do mesmo modo, os grandes progressos tecnológicos do século XX que, particularmente, se tornaram possíveis devido às realizações de Albert Einstein, John von Newmann, James Watson e Francis Crick, estão fomentando o surgimento também da sociedade globalizada do conhecimento, onde emerge um novo sistema de padrões mundiais, com a formação de uma comunidade global, designada metaforicamente de "aldeia global" por Marshall Mcluhan e Bruce Powers [03].

            No início de um novo milênio, ainda nos encontramos entre a sociedade industrial e a sociedade do conhecimento, entre o velho e o novo, o passado conhecido e o futuro perceptível, cujos contornos se tornam mais precisos a cada dia. Os signos, símbolos e estruturas da sociedade industrial desintegram-se paulatinamente no planeta globalizado. Os novos desafios mundiais funcionam como catalisadores de novos valores a partir dos quais se constrói uma nova realidade.

            Na sociedade global, enfatiza-se um indivíduo autônomo, com uma capacidade constante de se renovar e se aperfeiçoar em uma organização social descentralizada, diversificada, com valores femininos predominantes e com base na fusão de papéis sexuais, em instituições moldadas na propriedade, no controle do conhecimento, em organizações supranacionais e governos locais. Todavia, prevalecem valores sociais baseados na competitividade, no elitismo e na divisão de classes sociais; na maior parte dos países do mundo as mulheres continuam ganhando menos do que os homens [04].

            As transformações das sociedades industrializadas em sociedades globalizadas estão sendo modeladas a partir da desigualdade e da combinação dos movimentos de mundialização societária, globalização tecnológica e econômica e planetarização gestionária e regulamentadora, fomentando a reorganização produtiva, político-institucional e cultural do mundo global.

            A dinâmica destas transformações é a dinâmica do paradoxal, do simultâneo e do metafórico-não-conceitual, refletindo a coexistência de situações antagônicas e equacionalmente inversas. Sob o prisma do processo da globalização econômica, política, cultural, social e tecnológica, a aldeia global constitui-se em um excelente exemplo desta situação.

            O sociólogo Otávio Ianni, acompanhando esta linha de raciocínio, observa que:

            "os processos de globalização e modernização desenvolvam-se simultânea e reciprocamente pelo mundo afora, também produzem desenvolvimentos desiguais, desencontrados e contraditórios. No mesmo curso da integração e da homogeneização, desenvolve-se a fragmentação e a contradição. Ao encontrar outras formas sociais de vida e trabalho, compreendendo culturas e civilizações, logo se constituem as mais surpreendentes diversidade. Tanto podem reavivar-se as formas locais, tribais, nacionais ou regionais como podem ocorrer desenvolvimentos inesperados de ocidentalidade, capitalismo e racionalidade. O mesmo vasto processo de globalização do mundo é sempre um vasto processo de pluralização dos mundos" [05].

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            No seio da comunidade mundial, que está se formando a partir de uma harmonização e de uma homogenização "aparente" das sociedades nacionais, culturas e civilizações, possibilitadas pelo grande avanço tecnológico que alcançou os sistemas de informação e comunicação. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, ressurge o tribalismo, entendido este como uma referência aos movimentos étnicos, expressados pela crença na fidelidade aos valores comuns de um grupo, como a língua, a religião, a cultura e até mesmo a profissão. Aquele floresce na mesma medida em que o Estado se debilita, uma vez que a pressão dos limites nacionais-territoriais se dilui.

            Os movimentos de grupos étnicos que haviam submergido dentro dos contornos do próprio Estado ganham força novamente, levando aos localismos, aos regionalismos e a fragmentação que alimentam generosamente em várias partes do mundo conflitos políticos, econômicos, sociais, culturais e religiosos, como aqueles que ocorreram nos últimos anos em países como a Iugoslávia, Sudão, Irã, Índia e África do Sul.

            Na opinião de René Dreifuss, a

            "transformação das nações "desenvolvidas" em um complexo sistema de "economias geradoras de conhecimento avançado", "sociedades de comunicação eletrônica" (ricas em informação e razoavelmente satisfeitas, embora – persistindo as atuais formas e sentido de produção, apropriação e distribuição – alguns países estejam ameaçados pelo desemprego estrutural e pela geração de amplos agrupamentos sociais desajustados) se contrapõe à acentuação de vulnerabilidades estratégicas ( amargas carências sociais e desinformação) nas sociedades e nações desinformatizadas do "eixo Sul-Sul".Implode antigas hierarquizações ( Primeiro, Segundo, Terceiro, Quarto Mundos), assim como explodem as dicotomias "centro-periferia", desenvolvimento-subdesenvolvimento", "progressista-conservador" através do desenho de um único mundo, no interior do qual se desdobram variações e diferenciações que retraçam regionalizações e regionalismos, localismos e particularismos, continentalizações e macromercados" [06].

            A transformação da sociedade capitalista industrial para a sociedade global do conhecimento é mais do que um processo ligado ao fenômeno da globalização e ao progresso tecnológico. É o próprio movimento da desintegração de toda a civilização moderna, tanto no Ocidente como no Oriente, com todos os problemas, dificuldades e oportunidades que apenas uma situação dessa magnitude pode oferecer.


3.DIMENSÕES DA GLOBALIZAÇÃO

            Na aurora do século XXI, o fenômeno da globalização permeia todas as dimensões da atividade humana e das sociedades. Em função desta amplitude, neste item procurar-se fornecer um panorama geral da globalização, e, por isso, em seus aspectos econômico, financeiro e tecnológico; político, sociológico e cultura; em dois cortes principais, para então, na última parte deste estudo, apresentar as mudanças que tal fenômeno provoca no campo jurídico, naturalmente, sem a pretensão de esgotar aqui a dimensão de tal temática.

            3.1. GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E TECNOLÓGICA

            A globalização está generalizada nas sociedades capitalistas industrializadas e que criam produtos globais e um comércio global, não existindo nenhum lugar específico para a produção de um determinado produto. Milton Friedman sintetizou muito bem esta realidade ao observar que hoje "é possível produzir um produto em qualquer lugar, usando recursos de qualquer lugar, para ser vendido em qualquer lugar" [07]. Os países socialistas iniciaram sua integração nesse processo a partir da queda do muro de Berlim, e a África e a América Latina a partir da recente liberalização do comércio e a privatização das instituições [08].

            Com o fim do socialismo e com o conflito do Golfo surgiu uma nova ordem internacional marcada por uma acentuada divisão territorial formalizada com base em uma equação de mercados. Os Estados Unidos tomaram conta da América Latina, a Alemanha dominou a Europa Ocidental e parte da Europa Oriental enquanto o Japão ficou com os países asiáticos.

            Para Luis Miotti e Carlos Quenan [09] a globalização é um processo de transformação da economia mundial, iniciado a partir da década de 70 [10] e que abalou o sistema de acumulação econômica que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial, com o sistema Bretoon Woods. Essa crise caracterizou-se inicialmente pela aceleração de crescimento da produtividade do trabalho em países desenvolvidos em circunstâncias que levaram a intensificação capitalista dos processos de produção. Para Charles Omam [11], a referida intensificação deve-se ao modo de produção pós-fordista, ou seja, taylorista, baseada na engenharia simultânea, na inovação contínua e paulatina dos produtos e serviços e tecnologia, trabalho em equipe, controle de qualidade total e integração da cadeia de produtos e matéria-prima, de acordo com os princípios do "just in time".

            A globalização estabelece uma redução marcante das economias nacionais frente à liberalização comercial e os processos de integração regional, possibilitando o surgimento de uma esfera financeira globalizada.

            Em outras palavras: a globalização pode ser entendida sob o ângulo da organização de um sistema financeiro internacional em compasso com as necessidades e determinações da economia capitalista, do G7, FMI, BIRD, OMC e ONU, que atualmente formam um governo mundial de fato, pela crescente influência das transnacionais nas relações econômicas e pela modificação das relações políticas e econômicas em todo o planeta devido à reprodução ampliada do capital em escala mundial, em todo o lugar, com diretrizes determinadas a partir de políticas neoliberais.

            A globalização econômica é diferente da internacionalização tradicional do capital. Fundamenta-se no crescimento muito rápido da inversão internacional, no predomínio do comércio de serviços, no aumento da importância das empresas transnacionais e no volume alcançado pelo comércio inter-firma - onde torna-se presente a ação administrativa e a formação de redes de empreendedores- na aparição de estruturas de oferta internacional sumamente concentradas que se cristalizam em oligopólios globais e na instabilidade oriunda de uma série de fatores de ordem econômica política e social.

            Devido à existência dos mencionados fatores, os pólos dominantes da economia mundial tendem a se organizar em zonas econômicas de estabilidade relativa para enfrentar em melhores condições a concorrência global, quer seja entre as industrias, quer seja entre os países, nos quais o crescimento global é sustentado pelos intercâmbios de dentro do sistema global e impulsionado pelas conquistas tecnológicas.

            A desregulamentação financeira e a globalização de instituições bancárias têm favorecido a inversão internacional facilitando principalmente as fusões e as aquisições entre empresas, transformando-se aquela no principal vetor da globalização da economia mundial [12].

            O desenvolvimento de novas tecnologias tem funcionado como condição permissiva e como fator de intensificação da globalização econômica, a partir do momento que leva desde desenvolvimento do comércio de produtos de alta tecnologia ao estabelecimento de alianças e projetos de cooperação entre empresas.

            Este aspecto da globalização é conhecido como "tecnoglobalismo", referindo-se este termo, especificamente, a crescente tendência da internacionalização da tecnologia resultante das atividades de inovação das empresas, das políticas estatais, da organização global, da economia e da sociedade, constituindo os sistemas nacionais de inovação, sem anular a importância dos espaços nacionais; na definição de Luis Miotti e Carlos Quenan:

            "Sin embargo, esta tendencia a internacionalização de la tecnologia se despliega de modo desigual segun los setores y, lo que es más importante, no anula la importancia de los espacios nacionales o regionales. En efecto, la dinâmica tecnológica resulta no sólo de la atividad de innovación de las empresas o de las políticas estatales sino también de la organização global de la economia e de la sociedad" [13].

            A mesma velocidade que impulsiona os progressos tecnológicos, que por sua vez alimenta a sociedade global e o comércio mundial, em contrapartida, causa uma tremenda turbulência nos mercados. Em razão das rápidas mudanças no campo tecnológico e de seu efetivo emprego, o mercado é abalado a partir do momento em que as novas tecnologias são reabsorvidas e os mercados antigos são destruídos.

            3.2. GLOBALIZAÇÃO POLÍTICA, SOCIAL E CULTURAL

            O processo da globalização não é apenas econômico, financeiro e tecnológico, embora tais aspectos sejam determinantes no seu curso, suas conseqüências se estendem também aos campos político-estatal, social e cultural.

            O Estado passou de simples provedor de serviços básicos no século XIX, a atuar como produtor direto de bens e serviços, transformando-se no que ficou conhecido como Estado Providência ou "Welfare State", cuja função básica era promover o crescimento econômico e político, ao mesmo tempo em que assegurava a proteção dos cidadãos e dos direitos sociais, tendo seu apogeu entre 1950 e 1960 [14].

            O modelo social democrata baseado no sistema Bretton Woods ficou desestruturado com a crise do petróleo, que provocou uma enorme recessão econômica entre 1973 e 1979, abrindo caminho para uma revolução tecnológica que tinha por objetivo reduzir o impacto do custo da energia e do trabalho no preço final dos bens e serviços, acentuando o processo de transferência dos centros de decisão do âmbito jurídico-político do Estado para a esfera privada, notadamente, às multinacionais.

            A instalação do Consenso de Washington, que estabeleceu a criação de políticas neoliberais através da desregulamentação da economia, a flexibilização do trabalho e a privatização de empresas estatais, reflete apenas um estágio mais abrangente deste processo, ressalvado que o neoliberalismo só foi homogêneo e bem sucedido enquanto paradigma teórico, pois sua efetividade torna-se duvidosa, quando, por exemplo, se põe em pauta sua aplicabilidade na Alemanha no que tange à supressão dos direitos trabalhistas.

            Na sociedade global do conhecimento está sendo criado fora, do sistema estatal internacional, um espaço público transnacional com base na defesa nacional como questão planetária. Em outras palavras, os governos nacionais não têm condições para enfrentar sozinhos os problemas globais referentes à biosfera, à demografia e ao esgotamento dos recursos energéticos não renováveis, à saúde, entre outros. Sendo necessário para tanto, uma ação conjunta de todos nesse sentido.

            A crise da política no mundo globalizado pode ser reconhecida desde a crise da dívida externa, da desestabilização das moedas nacionais e do empobrecimento das economias nacionais dos países do Terceiro Mundo até os problemas relativos ao enfraquecimento do Estado decorrente dos programas de ajuste estrutural do FMI e do Banco Mundial e, mais recentemente, pela adoção de políticas neoliberais, frente à crise econômica mundial.

            O processo de reestruturação econômica, tecnológica e política levou a um intenso processo de exclusão e degradação social, situação que é encarada como passageira e auto-solucionável. O autor Liszt Vieira ressalta que:

            "A visão dominante entre os neoliberalistas é de que a recessão representa uma curva cíclica e temporária, e que o mecanismo de livre mercado assegurará a recuperação econômica. A pobreza, a fome, as guerras civis são negligenciadas como algo próprio dessas sociedades em transição, um estágio evolutivo doloroso rumo a democracia e ao livre mercado" [15].

            O atual padrão mundial de acumulação do capital e desenvolvimento social, com base nas novas tecnologias, no domínio das informações e no saber, reforça a exclusão social e reduz a oferta de empregos produtivos, desvalorizando o trabalhado e o trabalhador, embora aumente a oferta de serviços, que supervaloriza a competitividade em prejuízo da solidariedade, da justiça e da equidade, estimulando os conflitos sociais, étnicos, nacionais e religiosos.

            Os governos, ao fomentar a modernização de suas economias para adaptá-las a competitividade internacional acabam agravando a crise social e, conseqüentemente, a marginalização de pessoas que, apartadas da sociedade, constituirão uma classe de miseráveis.

            Em termos culturais, a globalização do mundo pode ser vista como a ocidentalização do mundo [16].

            Esta tese refere-se à exportação dos padrões socio-culturais europeus e norte-americanos para todo o planeta, recriando hábitos, costumes, necessidades, novas formas de ser pensar, agir e trabalhar. A universalização da língua inglesa após a Segunda Guerra Mundial devido ao imperialismo norte-americano, desenvolvimento da tecnologia e das finanças anglo-saxônicas e, também as suas próprias características, constitui-se em um excelente exemplo deste fato. Simultaneamente, ressurgem religiões, línguas, nacionalidades, o que abre espaço para os particularismos, regionalismos e singularidades.

            A sedimentação cultural das novas estruturas mundiais está incompleta e os conceitos tradicionais são insuficientes para traduzir a realidade atual.

            A globalização desenraíza as pessoas, as idéias e as coisas. Ao mesmo tempo são nacionais e são também globais. Nesse sentido, se desenvolve a desterritorialização, que se refere à descentralização das estruturas de poder político, econômico, social, cultural, étnico e ideológico, sem qualquer localização em uma região específica, a um modo de ser isento de tempo e espaço, favorecendo a universalização de valores e a mudança de tudo o que permanece territorializado.

            A sociedade global emerge em meio às contradições e os paradoxos fomentados pelo processo da globalização econômica, financeira e tecnológica que ocasionaram a desterritorialização do processo produtivo, dos indivíduos e das próprias culturas nacionais, e a criação de uma nova realidade mundial que pressiona as estruturas políticas e jurídicas para se materializarem de forma globalizante.

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Sobre a autora
Marianna Izabel Medeiros Klaes

professora da Universidade do Sul de Santa Catarina (graduação em Direito e graduação em Relações Internacionais), advogada e consultora em Direito e Relações Internacionais, MBA em Administração Global pela ESAG/Uni, especialista em Direito Tributário pela UFSC, mestre em Direito e Relações Internacionais pela UFSC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KLAES, Marianna Izabel Medeiros. O fenômeno da globalização e seus reflexos no campo jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 968, 25 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8005. Acesso em: 20 abr. 2024.

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