O benefício assistencial de prestação continuada e a dignidade da pessoa humana.

Os limites presentes na Lei de Responsabilidade Fiscal

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04/04/2020 às 17:44
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IV – A POSIÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL

Daí a necessidade de aumentar esse parâmetro.

O Congresso Nacional julgou necessário aumenta-lo para ½ do salário-mínimo.

No dia 11 de março do corrente ano, o Congresso derrubou o veto do presidente Jair Bolsonaro a um projeto de lei do Senado que dobra a renda per capita familiar para ter acesso ao BPC. O valor máximo passou de um quarto de salário mínimo (R$ 261,25 em valores atuais) por membro da família para meio salário (R$ 522,50). A medida teria impacto de R$ 20 bilhões no Orçamento da União deste ano. Em dez anos, a despesa extra chegaria R$ 217 bilhões, o que equivaleria a mais de um quarto da economia de R$ 800,3 bilhões com a reforma da Previdência no mesmo período.


V – A REAÇÃO DO GOVERNO

O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas acatou no dia 13 de março do corrente ano, à noite, um pedido de medida cautelar do Ministério da Economia e suspendeu a ampliação do Benefício de Prestação Continuada (BPC), aprovado pelo Congresso nesta semana. O plenário do órgão deverá ratificar a decisão nas próximas sessões.

No despacho, o ministro Dantas reiterou que um acórdão do TCU de agosto do ano passado veda a execução de qualquer gasto extra sem que se aponte uma fonte alternativa de recursos, como aumento de tributos ou remanejamento de despesas. A Lei de Responsabilidade Fiscal aponta que todo gasto deve ter uma fonte específica de recursos.

Com a decisão do TCU, a ampliação do BPC fica na prática suspensa até que haja fonte de recursos. “O aumento dos gastos decorrentes da lei em questão fica condicionado à implementação das medidas exigidas pela legislação. Na prática, caberá ao Poder Executivo adotar as providências a seu cargo, como as medidas de compensação previstas na legislação, o que pode se dar ao longo do ano, de forma paulatina”, escreveu o ministro no despacho.

Segundo o ministro Dantas, não cabe ao TCU manifestar-se sobre a constitucionalidade do projeto de lei aprovado pelo Congresso. Ele argumentou que a função do tribunal consiste em controlar a regularidade da execução da despesa e assegurar que o gestor público aja conforme as normas.

Ora, com todo respeito, parece que o TCU, em um país onde não há Justiça Administrativa, parece ser um controlador da aplicação de regras de economia neoliberal. Assim o que prejudica o mercado é prejudicial ao país.

A decisão adentra em limites jurídicos próprios aos tribunais a quem cabem reconhecer ou não a constitucionalidade das leis. O controle das contas subordina-se a esse controle prévio dos tribunais da estrutura do Poder Judiciário.


VI – ATENDIMENTO À POPULAÇÃO POBRE E ÀS ÁREAS: UMA OPÇÃO DE CONVENIÊNCIA ADMINISTRATIVA?

Dir-se-á que a questão envolve a discricionariedade de gastos como medida do mérito da Administração.

Assim seria crível o governo federal estudar editar uma MP (Medida Provisória) para socorrer as companhias do setor, fortemente afetado pela pandemia de coronavírus. Uma fonte do governo confirmou ao UOL que há estudos sobre o tema em andamento. Apenas nesta semana, as ações da Gol caíram 47%, e as da Azul, 36%, o que deixa as empresas entre as de maior perda na Bolsa. Segundo a Abear, "é grave a crise econômica que afeta a aviação comercial brasileira neste cenário de pandemia do coronavírus”.

Ao Estado neoliberal interessa salvar as suas companhias. No passado, em 2008, bancos foram salvos de crise financeiro que as assolou. No Brasil, usou-se o PROER. Vinte anos depois do lançamento do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro (Proer), dois dos sete bancos privados que receberam uma forte injeção de recursos públicos para não falirem e sofreram intervenção do Banco Central ainda tinham uma dívida de R$ 24,1 bilhões com o governo federal.

Seria uma questão de discricionariedade técnica e pura.

Criação doutrinária e jurisprudencial de alguns países, tendo seu principal defensor o Estado Italiano, mas vale consignar os Estados da Espanha e de Portugal como integrantes dessa construção. Trata-se não de outra forma ou classificação dentro dos poderes da Administração, mas da utilização de critérios técnicos decorrentes na maior parte dos casos de pessoas ou entidades especializadas, para preenchimento de normas muito genéricas que ensejam o exercício de discricionariedade pelo Poder Público.

Os ditos critérios técnicos de um modo geral são decorrentes da ciência e das técnicas-profissionais amplamente aceitas pela sociedade, contudo essas não implicam em uma aceitação irrestrita, pois como em qualquer área do conhecimento existem divergências. Não se pode angelicamente pensar que quando a Administração utiliza o parecer X favorável ao caso hipotético, não rejeitou o Y por ser contrário.

Justamente neste ponto que permanece a margem discricionária dentro dos limites técnico-científicos. Todavia não ocorrendo situações divergentes ou mesmo díspares em grau inferior, a atividade administrativa permanecerá vinculada, não à lei, mas aos critérios técnicos os quais estabeleceram ditames claros e de aceitação unânime pela comunidade científica.

Na doutrina italiana, Massimo S. Giannini entende que a discricionariedade técnica é um caso especial da teoria dos conceitos indeterminados, que requerem a aplicação de critérios técnicos para a sua execução. No entanto, entende que discricionariedade pura e discricionariedade técnica são termos nitidamente diferenciados, consistindo a primeira numa ponderação de interesses e numa eleição entre alternativas com a finalidade de satisfazer o interesse público. Já a segunda é mera atribuição da Administração para apreciar uma hipótese de fato delimitada por um conceito jurídico indeterminado mediante critérios técnicos

A posição aproxima-se da inicialmente defendida por Frederico Cammeo. Contudo, em seu Corso di Diritto Amministrativo reconhecerá que a discricionariedade técnica se afirmará não apenas pelo recurso à técnica para a compreensão de conceitos imprecisos contidos nas normas, mas evidenciará a necessidade de recurso também a critérios de oportunidade para uma decisão conforme o interesse público. Logo, a discricionariedade técnica não seria substancialmente diferente da discricionariedade “pura”, seria apenas mais limitada.

Considera-se que o ordenamento jurídico em determinadas hipóteses concede de maneira reservada à Administração poderes de valoração técnica. Embora o autor italiano assegure que não se trata de discricionariedade, essas hipóteses escapariam ao controle jurisdicional. No entanto, não basta o caráter opinativo da técnica para excluir na hipótese o controle judicial; cumpre averiguar se a lei não pretendeu atribuir ao Judiciário a opinião final. A reserva de Administração, por sua vez, pode se revelar pela especialização da Administração sobre a matéria, pela participação popular na definição do conteúdo do ato administrativo ou ainda pelo maior número de opiniões colhidas no seio da Administração. Em cada caso é preciso avaliar qual é a intenção da lei, para apurar se ela deseja realmente que a decisão final fique a cargo da Administração. É preciso, enfim, captar qual é o sentido mais conforme à democracia e ao pluralismo. Esses seriam cuidados a serem observados para que a chamada discricionariedade técnica não se transforme em imposição.

A discricionariedade pura ocorre quando a lei usa conceitos que dependem da manifestação dos órgãos técnicos, não cabendo ao administrador senão uma única solução juridicamente válida.

A discricionariedade técnica própria ocorre quando o administrador se louva em critérios técnicos, mas não se obriga por eles, podendo exercer seu juízo conforme critérios de conveniência e oportunidade. É o caso da atuação das chamadas Agências Reguladoras.

A discricionariedade técnica comporta opções mais restritas.

Lembro a posição Antônio Francisco de Souza (A discricionariedade administrativa, Lisboa, Danúbio, 1987, pág. 307) para determinar qual o mais eficaz e conveniente.

A avaliação de Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara, por sua vez, aponta em outro sentido. Afirmam o seguinte: em respeito à presunção de legitimidade dos atos administrativos, não se mostra possível que o juiz (ou outro órgão de controle), no exame fático, desconsidere fundamentos técnicos apresentados pela Administração em favor de argumentos contrários, também de índole técnica, levantados por particulares ou por auxiliares, como os peritos. Os autores consideram que se o juiz pode, sim, avaliar questões técnicas, não pode, contudo, tomar a si opções técnico-políticas. Assim, se há mais de uma técnica possível a seguir, a escolha entre elas cabe à discricionariedade da Administração. Essa é uma questão de mérito administrativo, acerca da decisão mais conveniente e adequada. O que não autoriza falar em ausência de controle, mas de limites ao controle. É uma tentativa de assegurar que o interesse público não sucumba diante da mera desconfiança a respeito da procedência do ato administrativo que o alberga. Perante o impasse, a única solução juridicamente plausível, por respeitar o sistema de aplicação e de controle dos atos administrativos, é manter a eficácia do ato impugnado perante o órgão de controle.

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Seja como for a discricionariedade técnica tem limites: a imposição constitucional voltada a princípios soberanos que lastreiam a Constituição. Máxime em se tratando da dignidade da pessoa humana.


VII – O PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA

Para o caso aplica-se entre a divergência entre um Estado voltado para o bem-esta social na Constituição e um rígido regime fiscal voltado para a plenitude do mercado.

É o caso de trazer à tona o princípio da concordância prática.

Os bens constitucionalmente protegidos devem ser tratados de forma que um não anule a validade de outro. Ao ocorrer algum conflito, a ponderação de valores desses bens não pode sacrificar a validade de um em detrimento do outro. É preciso, nesses casos, elaborar um exercício de optimização, de harmonização prática, e estabelecer limites aos bens conflitantes, de modo que ambos consigam alcançar a melhor efetividade possível. Essa ponderação deve ser feita no caso concreto e com base no princípio da proporcionalidade. (HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: C. F. Müller, 1999, p.28).

Estando o intérprete perante dois direitos fundamentais, não restringíveis constitucionalmente por lei, em conflito, deve-se utilizar do método da concordância prática. Tal princípio da concordância prática, divulgado por Hesse(Escritos de derecho constitucional, 1983, pág. 49e ainda Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha, tradução da 20ª edição, alemã, de Luís Afonso Heck, Porto Alegre, S.A. Fabris, 1998, pag. 66). na visão da harmonização, determina que na colisão entre bens, que deve ser solucionado diante de caso concreto, torna-se imprescindível, dentro da unidade da Constituição, dentro de ótica da otimização, a aplicação do critério de proporcionalidade, de balanceamento.

A decisão administrativa, com o devido respeito, dilacera um princípio constitucional superior. Os recursos públicos devem ser voltados a ele e não o princípio a essa limitação.

O Estado Democrático de Direito tem o dever de proteger e garantir que seja respeitada e efetivada a proteção do ser humano contra as diversas formas de aviltamento deste. Tem a obrigação de proteger contra as ações inescrupulosas que usam de métodos ilegais e manifestamente desumanos, a fim de reduzir a pessoa a um objeto, sem valor algum, sem dignidade. Para tanto todos os órgãos da República são devedores de sua plenitude, inclusive aqueles que têm, como órgãos do controle externo do Congresso Nacional, a responsabilidade sobre as contas públicas.

Essa decisão posterga direitos cuja eficácia e efetividade é imediata. Tem ela um lastro neoliberal, cujas luzes são voltadas para o capital financeiro, principalmente, o externo.

Fere-se a soberania do Estado ao impedi-lo de dotar a sociedade de direitos impositivos que lhe são inerentes, a partir de sua dignidade.

O Estado brasileiro, por sua vez, é ferido em sua soberania a partir do momento que não consegue proteger o cidadão. Se a dignidade de uma pessoa é atingida, equivale a atacar toda a sociedade.

Dir-se-á que a questão envolve a discricionariedade de gastos como medida do mérito da Administração.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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