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Imunidades de jurisdição dos Estados estrangeiros em matéria trabalhista no Brasil

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16/03/2006 às 00:00
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PARTE II – IMUNIDADES DE JURISDIÇÃO DOS ESTADOS ESTRANGEIROS EM MATÉRIA TRABALHISTA NO BRASIL

1.Jurisdição e competência brasileira em matéria trabalhista

Para o estudo e entendimento do processo de evolução da imunidade de jurisdição em conflitos oriundos de relações trabalhistas no Brasil, foi necessária a avaliação de diversos acórdãos do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior do Trabalho, desse mesmo país [55].

Antes da análise a ser enfocada, faz-se imperativo compreender à luz da legislação pátria, se o Poder Judiciário brasileiro tem jurisdição sobre questões afetas às relações laborais existentes em seu território, quais são os órgãos jurisdicionais competentes para apreciar as controvérsias originadas de tais relações, bem como qual é a nacionalidade da norma material a ser aplicada nesses casos.

As considerações acerca do exercício jurisdicional brasileiro em conflitos de relações laborais foram objeto de preocupação legislativa traduzida na regra de competência internacional do artigo 88, II do Código de Processo Civil [56]. Conforme o texto deste artigo, a autoridade brasileira será sempre competente para apreciar controvérsias quando no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação contratual. Logo, se o trabalhador executar parcialmente ou totalmente as suas atividades em território brasileiro, estará conseqüentemente sujeito à jurisdição brasileira. Por sua vez, o artigo 651 da Consolidação das Leis do Trabalho [57] vem reforçar este entendimento, ao determinar que a competência das Varas do Trabalho é definida pela localidade onde o empregado exerce suas funções laborais, mesmo que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro.

O artigo 114, I, da Constituição Federal de 1988 [58] fixou a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Os órgãos da Justiça do Trabalho são respectivamente, da primeira à terceira instância, as Varas do Trabalho, os Tribunais Regionais do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho.

Se o empregado trabalha no Brasil para um Estado estrangeiro, o direito material que regerá a relação jurídica não é o alienígena, mas o brasileiro, ou seja, as disposições contidas na Consolidação das Leis do Trabalho e legislação esparsa. Isto porque o Brasil adota o princípio denominado lex loci executiones ou lei do lugar da execução do ato [59], devidamente consubstanciado no artigo 9º, §1º da Lei de Introdução ao Código Civil [60] e no enunciado 207 do TST [61].

A confusão entre os conceitos de jurisdição e competência dificulta a compreensão do instituto da imunidade de jurisdição e o correto processamento da declinatória fori apresentada pelo Estado soberano. Incompetência internacional, incompetência interna e imunidade de jurisdição são três fenômenos que se assemelham na conseqüência de impedir que o órgão judiciário provocado julgue o mérito da pretensão do autor [62]. Entretanto, a confusão dessas semelhanças sem a clara percepção das diferenças entre os fenômenos pode levar à raciocínios equivocados.

Na decisão judicial mais importante do Brasil sobre o tema da imunidade de jurisdição, o acórdão do STF no caso Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã [63], vê-se o Ministro SIDNEY SANCHES se confundir entre os conceitos de jurisdição e competência, ao concluir que artigo 114 da Constituição inaugurava uma alteração substancial no regime jurídico das imunidades dos Estados soberanos. Sustenta que o referido dispositivo, ao tratar da competência da Justiça do Trabalho, acabou por eliminar as imunidades dos Estados estrangeiros, ao mencionar que "os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, podem abranger entre estes últimos, os entes de direito público externo" [64].

Ora, esse dispositivo constitucional dispõe sobre a competência interna dos órgãos do Poder Judiciário e não sobre a jurisdição do Poder Judiciário brasileiro. Com a promulgação da Constituição de 1988, houve somente uma transferência das matérias que competiam à Justiça Federal para a Justiça do Trabalho e não exclui a possibilidade de que essa competência seja inexercida nos casos em que forem reconhecidas imunidades de jurisdição. A imunidade diz respeito à jurisdição do Estado do foro, não a competência interna de algum dos seus órgãos. Coincidentemente, o Ministro SIDNEY SANCHES acertou no resultado da sua decisão, pois desde muito tempo as imunidades dos Estados estrangeiros em causas de natureza trabalhista já não mais existiam no direito internacional, mas equivocou-se no embasamento expendido, como alertou o voto seguinte do Ministro FRANCISCO REZEK.

Deve-se então ter em mente que competência é sempre uma delimitação da jurisdição. A competência internacional define o alcance da jurisdição estatal no âmbito externo, segundo critérios de conveniência do próprio Estado e com respeito à abrangência jurisdicional dos demais; a competência interna divide a jurisdição estatal entre os seus órgãos segundo critérios materiais e territoriais [65].

A jurisdição, como expressão do poder estatal é uma só, não comportando divisões ou fragmentações, estando cada juiz e cada tribunal plenamente investido dela. No entanto, o exercício da jurisdição é distribuído por regras de competência entre os muitos órgãos jurisdicionais e cada qual a exercerá entro de certos limites [66]. Chama-se então competência essa quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão ou grupo de órgãos [67].

2.O período da imunidade absoluta

A formação acadêmica e a experiência profissional do jurista brasileiro dificilmente o põem em contato com o direito internacional, muito menos com o tema específico das imunidades dos Estados estrangeiros à jurisdição dos tribunais pátrios. Segundo dados estatísticos do Ministério das Relações Exteriores, não chegam a seiscentas a quantidade de demandas judiciais envolvendo Estados estrangeiros [68]. A relativa pouca experiência do Poder Judiciário brasileiro e principalmente dos operadores do direito com o tópico da imunidade de jurisdição, é certamente uma das razões para a incompreensão desse fenômeno.

No Brasil não há quaisquer leis nacionais que disciplinem as imunidades dos Estados, ficando a matéria sujeita exclusivamente à interpretação das normas costumeiras internacionais pelos seus tribunais. O direito internacional de origem consuetudinária, ao contrário do convencional, não reclama qualquer procedimento formal de incorporação para ser válido e eficaz no Brasil, sendo a regra da imunidade de jurisdição uma comprovação dessa afirmação. No caso Estados Unidos da América v. Christine Mafalda Rodrigues Nogueira [69], o STF aplicando ainda a doutrina da imunidade absoluta, reconheceu a existência de preceito constitucional para a aplicação direta do direito consuetudinário internacional, consubstanciado no artigo 150, §35 da Carta de 1967 [70].

A jurisprudência mais antiga sobre imunidades dos Estados estrangeiros, versando a respeito de dissídio trabalhista e encontrada no arquivo jurisprudencial digitalizado dos três mais importantes tribunais brasileiros, foi o caso Emília Mercedes de Carvalho v. Consulado Geral da Argentina, julgado pelo STF no ano de 1970 [71]. Trata-se de recurso interposto pela reclamante para ver reformada a decisão da 20a Junta de Conciliação e Julgamento de Guanabara, que se declarou incompetente para julgar a questão, com fundamento na idéia de que a representação consular tem as mesmas garantias e imunidades da representação diplomática. O STF confirmou por maioria a decisão primária, mas com diferente embasamento jurídico, pois no decorrer da discussão plenária entendeu que o Estado argentino é que figurava no pólo passivo da ação, fazendo este jus à imunidade de jurisdição.

Na mesma época em que diversos países já adotavam restrições à norma consuetudinária da imunidade de jurisdição, solidificava-se no Brasil o entendimento de que as imunidades dos Estados estrangeiros deviriam ser consideradas em termos absolutos, inclusive em detrimento do trabalhador nacional hipossuficiente, que depende da prestação jurisdicional brasileira para conseguir obter os seus créditos salariais, garantidores do seu próprio sustento e da sua família.

Durante dezenove anos, até 1989 quando o STF julgou o caso Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã [72], a jurisprudência nacional se manteve fiel à teoria da imunidade absoluta. A única maneira de um Estado estrangeiro se submeter à jurisdição brasileira, era através da renúncia expressa ou tácita da sua própria imunidade [73].

A fundamentação jurídica que o Poder Judiciário brasileiro empregou durante tantos anos para manter vigente a doutrina da imunidade absoluta consistia nos argumentos de que as imunidades do Estado soberano resultavam de uma das mais sólidas regras costumeiras do direito das gentes, na qual nenhum Estado poderia submeter a sua própria jurisdição outra nação estrangeira, contra a vontade soberana desta, a menos que estivesse disposto e apto a garantir pela força bélica a execução de eventual e esdrúxula sentença condenatória, o que repugnava substancialmente o moderno direito internacional. Outras razões expendidas eram as que se os próprios agentes diplomáticos dispunham pela Convenção de Viena, de imunidades em nosso país, os Estados estrangeiros desfrutavam das mesmas prerrogativas, salvo nas hipóteses previstas no artigo 31, item 1, alíneas "a", "b" e "c" da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas [74]. Outrossim, de acordo com o entendimento jurisprudencial da época, a soberania, considerada atributo essencial do Estado, era incompatível com idéia de submissão de um Estado à jurisdição de outro [75].

Pode-se observar diversos equívocos nos inúmeros acórdãos proferidos sobre o tema da imunidade de jurisdição, resultantes da falta de conhecimento dos ínclitos julgadores acerca deste fenômeno. Dentre as principais falhas técnicas posso sucintamente relacionar: a confusão entre as imunidades dos Estados e às imunidades dos agentes diplomáticos e consulares, onde por muitas vezes, os Estados tiveram as suas imunidades reconhecidas com arrimo nas Convenções de Viena [76], como ocorreu no caso Lizarda dos Santos v. Embaixada da República do Iraque [77]; a dificuldade de identificar o Estado estrangeiro como o verdadeiro sujeito passivo da ação, ao invés do seu consulado ou embaixada, a exemplo do caso Consulado-Geral do Líbano v. Elias Farah [78]; a extinção do processo por impossibilidade jurídica do pedido, conforme procedeu no caso Luiz Gonçalves de Souza v. Embaixada da França [79]; a assemelhação entre incompetência internacional e imunidade de jurisdição, constatável no caso Oswaldo Irurzun v. Empresa Líneas Marítimas Argentinas S/A [80].

A noção de que a regra da imunidade de jurisdição originava-se do direito consuetudinário internacional não foi facilmente compreendida pelos juízes brasileiros. O primeiro passo para se entender bem o regime jurídico das imunidades dos Estados é distingui-lo dos regimes aplicáveis às imunidades consulares e diplomáticas [81]. No direito internacional presente há regras próprias para cada um desses três tipos jurídicos. As duas Convenções de Viena, de 1961 e de 1963, conferem em certos casos, imunidades pessoais de jurisdição e de execução aos diplomatas e aos cônsules, mas nenhuma dessas convenções cogita da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, que deriva essencialmente de regra de direito costumeiro internacional [82].

O outro problema posto em tablado é o fato das embaixadas e consulados figurarem no pólo passivo das demandas. No âmbito judicial verificam-se ações trabalhistas onde a parte reclamada é designada erroneamente, na maioria das vezes, como "representação diplomática" ou "consulado-geral". Ocorre que estes órgãos representativos não são sujeitos de direito internacional [83], não detêm personalidade jurídica própria [84] e conseqüentemente, capacidade processual. Estas condições são conferidas somente ao próprio Estado. Logo, uma vez constatada a irregularidade, deve o juízo proceder de ofício a retificação quanto à designação da parte reclamada.

Por conseguinte, sabemos que o processo contra o Estado estrangeiro tem a peculiaridade de ser extinto sem o julgamento do mérito quando se verificar a ocorrência da imunidade de jurisdição. Em grande parte dos casos, a extinção tem ocorrido com fundamento no artigo 267, VI do Código de Processo Civil [85], precisamente sob a alegação de que o pedido é juridicamente impossível na jurisdição brasileira. No entanto, tal fundamento é flagrantemente inadequado. O fato de o réu ser imune à jurisdição não significa que o pedido seja juridicamente impossível. Um pedido é juridicamente impossível quando não tem a menor condição de ser apreciado pelo Poder Judiciário, porque já está excluído a priori pelo ordenamento jurídico, sem qualquer consideração das peculiaridades do caso concreto [86]. Assim, a impossibilidade jurídica do pedido não permite o prosseguimento da ação ainda que o réu consinta no exercício da jurisdição [87], pois não há direito a ser tutelado pelo Estado. Além de incorreta, essa distorção é desnecessária, pois não há quaisquer óbices legais à extinção do processo pelo reconhecimento da imunidade do Estado estrangeiro. Conforme esse entendimento procedeu o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, ao extinguir o processo por decisão monocrática no caso União Federal v. República da Coréia [88].

Finalmente, em referência a imprópria assemelhação entre incompetência internacional e imunidade de jurisdição, o que tem ocorrido freqüentemente entre os tribunais brasileiros é a declaração de incompetência absoluta para o conhecimento da ação, diante do reconhecimento do fenômeno da imunidade. Ora, tal procedimento é muito mais que incorreto, mas, sobretudo ilógico. A imunidade de jurisdição opera somente se o tribunal invocado tiver jurisdição e competência sobre a causa, porquanto a imunidade constitui uma restrição ao regular exercício jurisdicional do Estado do foro. Assim, não há que se falar em imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro, se o tribunal nacional não for sequer competente para apreciar a lide. Como regra geral, a jurisdição do Estado sobre o seu próprio território é completa e absoluta. O Estado exerce soberania sobre o seu território, e todos os indivíduos nele presentes estão sujeitos à jurisdição das cortes locais. Todavia, existe também uma norma internacional que determina que um Estado estrangeiro é titular da prerrogativa de ser imune ao exercício dessa jurisdição [89].

3.O reconhecimento da imunidade relativa

Conforme havia explanado anteriormente, a jurisprudência brasileira vinha se mantendo fiel à doutrina da imunidade absoluta até o final da década de oitenta. O marco da alteração desse quadro foi o julgamento do caso Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã [90]. A partir daí, a mais alta corte brasileira consolidava um novo entendimento que reorientou toda a jurisprudência nacional, no sentido de que as imunidades dos Estados estrangeiros não mais deveriam ser consideradas em termos absolutos. Excepcionavam-se agora da abrangência das imunidades dos Estados, as controvérsias relacionadas com a prática de atos de gestão ou jure gestionis.

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Nesse famoso julgamento, a apelante Genny de Oliveira pleiteia receber da República Democrática Alemã os créditos trabalhistas de seu falecido marido. O Ministro SIDNEY SANCHES entendeu que o artigo 114 da nova Constituição Federal de 1988, ao tratar da competência da Justiça do Trabalho, eliminou as imunidades dos Estados estrangeiros. Após a sustentação do digno relator, o Ministro FRANCISCO REZEK pediu vista dos autos, elaborando um voto interessante a respeito do tema, no qual acompanhou o relator quanto ao provimento da apelação, mas divergiu quanto à sua fundamentação. No seu voto, distinguiu as imunidades diplomáticas das imunidades dos Estados [91], esclareceu que o artigo 114 da Carta Magna era apenas uma norma de competência interna [92] e fez um histórico acerca da evolução da norma consuetudinária da imunidade, expondo que em face das mudanças ocorridas desde a década de setenta no âmbito do direito internacional, a imunidade absoluta não mais subsistia em demandas trabalhistas [93]. Os demais ministros do STF adotaram a posição de FRANCISCO REZEK, determinando o retorno dos autos à 8a Vara da Justiça Federal de São Paulo [94] para que, afastada a tese da imunidade absoluta, o magistrado prosseguisse com a apreciação da causa, como de direito.

Acredito que as razões que levaram o Poder Judiciário brasileiro a mudar a sua orientação jurisprudencial, adotando uma noção mais restrita das imunidades dos Estados, não foram as mesmas que motivaram outros países, tais como os Estados Unidos, o Reino Unido ou a Austrália [95]. Ao passo que nessas nações as razões estavam estreitamente ligadas com o freqüente engajamento dos Estados estrangeiros em transações comerciais e financeiras, conforme já demonstrado na parte anterior da pesquisa, no Brasil os motivos partiram da necessidade de assegurar a devida proteção jurisdicional ao empregado, tendo em vista os aspectos sócio-econômicos deste.

Os Estados estrangeiros passaram a recrutar empregados no território brasileiro com maior freqüência, geralmente para exercerem funções subalternas [96] em suas representações diplomáticas e consulares. Esses empregados que exercem as funções mais simples, manuais e mecânicas, são os trabalhadores mais economicamente desfavorecidos, que estão na base da pirâmide social brasileira, integrantes da classe dos proletariados.

Esses pobres trabalhadores dependem do seu salário e demais direitos trabalhistas para prover o seu próprio sustento e de sua família. Não é por outra razão que a Constituição Federal brasileira concede especial proteção ao salário, considerando-o crédito de natureza alimentícia em favor do empregado [97]- [98].

No caso Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã, o Ministro FRANCISCO REZEK deixa transparecer que a adaptação jurisprudencial do STF à nova realidade da norma consuetudinária internacional da imunidade, ocorreu com o desígnio de conceder a prestação jurisdicional aos interessados ou postulantes, nas causas relacionadas com o direito do trabalho ou afetas ao domínio da responsabilidade civil [99].

O Ministro CELSO DE MELLO foi enfático ao admitir a relevância do aspecto sócio-econômico do trabalhador residente no Brasil, na limitação da aplicação do preceito da imunidade de jurisdição no caso Consulado-Geral do Japão v. Espólio de Iracy Ribeiro de Lima [100]. Entende o sublime ministro que o reconhecimento da imunidade em litígios trabalhistas legitimaria o enriquecimento ilícito dos Estados estrangeiros em injusto detrimento do trabalhador, o que consagraria "inaceitável desvio ético-jurídico incompatível com o princípio da boa fé e com os grandes postulados do direito internacional" [101].

É consabido, que os empregados que tenham os seus direitos lesados em território brasileiro por Estado estrangeiro, podem em tese, interpor a devida ação nos tribunais deste. No entanto, parece uma solução que permanece meramente no plano teórico, uma vez que na prática, os empregados mais humildes não sabem como proceder para fazer valer os seus direitos no exterior e tão pouco dispõem de recursos financeiros para isto. Outrossim, não há certeza de que estarão isentos das custas processuais, nos mesmos moldes que estão no Brasil.

Ainda no caso Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã, o Ministro FRANCISCO REZEK afirmou em seu voto, sobre a doutrina da imunidade absoluta, que "aquela antiga e sólida regra costumeira de direito internacional público, a que repetidamente este plenário se referiu, deixou de existir na década de setenta". Curioso nessa proposição é que, se o regime da imunidade absoluta deixou de existir na década de setenta, por que o STF continuou a aplicá-lo reiteradamente até o ano de 1989? Parece-me correto sugerir que o STF estava simplesmente desatualizado ou atrasado quanto à evolução desse aspecto particular do direito internacional, fato que, inevitavelmente acarretou prejuízos e promoveu injustiças a muitos trabalhadores domiciliados no Brasil, que tiveram o acesso à justiça recusado pelo Estado brasileiro.

Vejamos que a priori, o Estado tem a obrigação e o dever de conferir proteção jurisdicional aos seus jurisdicionados, estando este direito fundamental consubstanciado no ordenamento brasileiro, no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal [102]. Os direitos fundamentais expressos no texto constitucional estão no ápice do direito interno brasileiro e somente uma norma consuetudinária de direito internacional, combinada com o entendimento extraído do artigo 5º, §2º e artigo 4º, V e IX da mesma Carta [103]- [104], poderia restringir a aplicação do primeiro preceito constitucional. A partir do momento que tal norma consuetudinária deixasse de vigorar no âmbito do direito internacional, poder-se-ia aplicar com toda eficácia a regra contida no artigo 5º, XXXV da Constituição.

É incontroverso que, da perspectiva internacional, o direito internacional público prevalece sobre o direito interno dos Estados. É pacífico o entendimento de que um Estado não pode invocar um dispositivo de sua legislação interna, inclusive constitucional, com o objetivo de se desvincular unilateralmente do cumprimento de uma obrigação internacional [105].

Ressalte-se que, como já afirmado, os costumes internacionais ao contrário dos tratados não reclamam qualquer procedimento formal de incorporação ao direito interno para ter validade e eficácia no Brasil, sendo a norma consuetudinária da imunidade de jurisdição uma constatação dessa asserção. Esse entendimento foi devidamente reconhecido pelo STF no caso Estados Unidos da América v. Christine Mafalda Rodrigues Nogueira [106].

Dessa forma, enquanto a regra costumeira internacional da imunidade de jurisdição permaneceu vigente em termos absolutos, isto é, abrangendo todos os atos dos Estados estrangeiros, o Poder Judiciário brasileiro tinha o dever de reconhecer as imunidades dos Estados estrangeiros em demandas trabalhistas, sob pena de responsabilizar internacionalmente a nação brasileira. Quando a referida regra costumeira sofreu o processo de mutação (conforme já foi amplamente exposto), passando a vigorar em termos relativos, ou seja, abarcando apenas atos de império, ruiu aí o único fundamento legal que dispunha o Poder Judiciário brasileiro para reconhecer as imunidades dos entes de direito público externo em demandas trabalhistas. Outrossim, não só ruiu o único suporte legal, como também a partir deste instante, o preceito constitucional do artigo 5º, XXXV, deveria ter sido considerado pelo STF nas causas trabalhistas contra Estados alienígenas, fato que como demonstramos, lamentavelmente só veio a ocorrer no final da década de oitenta, depois de muitos anos de prejuízos e injustiças ocasionados aos trabalhadores residentes no Brasil.

Consoante esse raciocínio se manifestou o Ministro VANTUIL ABDAL no julgamento do caso Consulado Geral da República Federal da Alemanha v. Carlos Alberto do Nascimento [107]. Sustentou em seu voto que, em face da insubsistência do regime da imunidade absoluta e do preceito legal contido no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, não deve o Poder Judiciário negar a prestação jurisdicional quando cidadãos nacionais se digam lesados em seus direitos trabalhistas pela atuação dos Estados estrangeiros, dentro do território brasileiro [108].

O novo entendimento consolidado pela mais alta corte brasileira no julgamento do caso Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã reorientou toda a jurisprudência nacional, no que concerne a aplicação da norma da imunidade de jurisdição. A partir daí, salvo uma única exceção que será posteriormente considerada na presente investigação, inexistem quaisquer decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal Superior do Trabalho, que tenham reconhecido imunidades aos Estados estrangeiros, em litígios trabalhistas.

Desse modo, alguns exemplos dentre diversos casos que seguiram a nova orientação jurisprudencial do STF, todos pelo não acolhimento da argüição de imunidade do Estado estrangeiro, são: República do Equador v. Maria do Socorro Soares da Costa [109]; Consulado Geral do Japão v. Iracy Ribeiro de Lima [110]; Timoteo José Urcino v. Estado da República Socialista da Iugoslávia [111]; Estados Unidos da América v. Paulo da Silva Valente e outro [112]; Manoel Alves de Souza v. Consulado de Portugal [113]; Ralf Goering e outro v. Embaixada da Costa do Marfim [114].

Reafirmando a adoção da doutrina da imunidade relativa pelo Poder Judiciário brasileiro, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em comunicado dirigido às Missões Diplomáticas acreditadas em Brasília – DF através da nota circular n.º 560/DJ/DPI/CJ em 14 de fevereiro de 1991 [115], enfatizou que, em sintonia com o atual pensamento jurídico de direito internacional, os tribunais brasileiros firmaram jurisprudência no sentido de que os Estados estrangeiros não gozam de imunidades, quando estiverem em causa atos de gestão, tais como aqueles derivados de contratos laborais ajustados em território brasileiro.

Com todo o exposto, fica finalmente demonstrado e corroborado que, em regra, no Brasil as imunidades dos Estados estrangeiros não mais subsistem em questões de natureza laboral. Resta, contudo, verificar se não existem exceções a tal regra, ou seja, se não haverá situações específicas onde a imunidade de jurisdição ainda poderá ser admitida em demandas trabalhistas.

4.Critérios atualmente utilizados para a excetuar a denegação da imunidade de jurisdição em causas de natureza trabalhista

Partindo do juízo de que, como regra geral, no Brasil os Estados estrangeiros não gozam mais de imunidades em litígios trabalhistas (já que as relações laborais decorrem da estrita atuação estatal more privatorum e são estranhas ao específico domínio dos atos jure imperii), faz-se imprescindível investigar se essa regra geral não admite reservas, em face de alguns aspectos peculiares a cada caso concreto.

Alguns critérios adotados por muitos países para reconhecer hodiernamente, em caráter excepcional, imunidades de jurisdição aos Estados Estrangeiros em relações trabalhistas, estão relacionados com o objeto da ação judicial, a natureza das funções laborais, a nacionalidade e o domicílio do empregado, o local do recrutamento e o afastamento consensual da jurisdição local pelas partes. Essas circunstâncias operam como exceções à regra de que os Estados estrangeiros não são imunes à jurisdição local, em demandas judiciais de natureza trabalhista.

Os costumes internacionais, com respeito ao princípio da soberania estatal, conferem proteção legal à administração interna dos Estados, dispondo que estes têm direito exclusivo de designar quais os indivíduos que atuarão em benefício dos seus interesses. Essa regra costumeira foi reafirmada no Projeto de Convenção Internacional sobre Responsabilidade dos Estados (Comissão de Direito Internacional da ONU) que determina que um órgão abrange qualquer pessoa ou entidade que tem essa posição de acordo com a legislação nacional do Estado [116]. Em consonância com este preceito, o Tribunal Internacional Penal para a ex-Iugoslávia confirmou que o direito internacional costumeiro protege a organização interna de cada Estado e permite que cada soberano determine a sua própria estrutura interior e designe conforme a sua conveniência, os indivíduos que atuarão oficialmente como seus órgãos ou agentes públicos [117].

Destarte, a administração interna do Estado é uma matéria que compete à sua jurisdição nacional. Um aspecto dessa exclusividade tem sido o assentimento pelos Estados de que o serviço público é restrito aos nacionais do Estado empregador e é isento das obrigações contratuais inerentes às relações de trabalho. Os tratados que instituíram a Corte de Justiça das Comunidades Européias e a Corte Européia de Direitos Humanos contêm tal isenção. O primeiro exclui aquelas pessoas que desempenham os seus ofícios no exercício da autoridade governamental [118] e a Corte de Justiça das Comunidades Européias ao definir tais ofícios, consolidou o entendimento de que o serviço público envolve participação direta ou indireta no exercício dos poderes conferidos pelo direito público estatal e nos ofícios designados para resguardar os interesses gerais do Estado ou outra autoridade governamental [119].

Com base nessas razões, muitos Estados têm reconhecido imunidades aos seus pares em dissídios trabalhistas, quando o objeto do pleito judicial for o recrutamento de pessoal, renovação do contrato de trabalho ou reintegração do empregado, bem quando as funções desempenhadas pelo empregado tiverem estreita conexão com o exercício da autoridade soberana estatal. O Projeto de Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens prevê expressamente essas duas situações em seu artigo 11º "a" e "b".

A Corte Européia dos Direitos Humanos, no julgamento do caso Fogarty v. United Kingdom [120] afirmou desconhecer qualquer tendência dentro do direito internacional, no sentido de haver um abrandamento da norma da imunidade do Estado, com relação à questões laborais que envolvam o recrutamento de pessoal para as missões diplomáticas e consulares estrangeiras.

Em face desses fundamentos, parece-me correto que um Estado não deva ser obrigado por determinação judicial de outro soberano, a recrutar ou manter quaisquer empregados em seus quadros funcionais. Um Estado pode e deve escolher aqueles que atuarão na representação de seus interesses, pois se trata de um assunto que envolve a sua discricionariedade. Parece-me igualmente correto que um Estado não sofra intervenções de quaisquer outros nas relações que mantém com seus órgãos e agentes públicos, já que estes estão inseridos na estrutura público-administrativa estatal e receberam por delegação, determinadas parcelas do poder soberano [121].

O Projeto de Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens e a Convenção Européia Sobre Imunidade do Estado enumeram os demais critérios que são aceitos por um considerável número de Estados, para conferir imunidades de jurisdição aos Estados Estrangeiros, em questões laborais: quando o empregado não for um cidadão nacional nem um residente habitual do Estado do foro no momento da conclusão do contrato [122]; se o empregado for um cidadão nacional do Estado empregador no momento em que a ação judicial é proposta [123]; se o Estado empregador e o empregado acordaram em não se submeter à jurisdição local para resolver as controvérsias oriundas da relação contratual, portanto que isto não viole as normas de ordem pública do Estado do foro [124].

Cumpre salientar, todavia, que os diplomas legais referidos não foram aceitos como expressão total do direito consuetudinário internacional. Na Bélgica, a Corte Trabalhista de Bruxelas declarou que um Estado estrangeiro ao concluir e subseqüentemente romper um contrato de trabalho, não exerce poder público, mas desempenha um ato comercial ordinário, da mesma maneira que um ente privado e deste modo, compreendeu que tinha jurisdição num pleito de indenização por dispensa imotivada de um nacional português empregado como motorista pela embaixada marroquina [125] e de outro cidadão português empregado como professor de línguas pela embaixada portuguesa [126]. Tanto na Bélgica como na Suíça os tribunais têm questionado a inclusão da nacionalidade ou do domicílio como condições de exceção, bem como a manutenção da imunidade para nacionais dos Estados empregadores abrangendo todos os tipos de trabalho, contudo sem conexão com as funções soberanas do Estado. A Corte Trabalhista de Bruxelas concluiu que tal elemento de conexão, fundamentada na nacionalidade do empregado nega a teoria da imunidade relativa, baseada na distinção entre atos de soberania (jure imperii) e atos de gestão (jure gestionis) [127].

Como podemos observar, o tratamento das exceções em questões laborais, sob a doutrina da imunidade relativa, evidencia uma inexistência de uniformidade entre os Estados. Aliás, já demonstrei inclusive, que não há consenso entre os países sequer quanto à interpretação da norma da imunidade de jurisdição, como um todo, nem quanto à abrangência dos atos de império e atos de gestão. HAZEL FOX defende existirem três padrões de tratamento dessas exceções. Conforme o primeiro padrão, as relações trabalhistas seriam tratadas como uma transação comercial ou de índole privada, dentro da exceção geral para tais transações. Esse é o padrão previsto na lei norte-americana. O segundo identificaria categorias especiais de empregados, projetaria regimes especiais de jurisdição para tais empregados e os excluiria da lei geral de imunidade (estes regimes especiais existem para membros das missões diplomáticas e das forças armadas). O terceiro fornece exceções específicas para relações laborais adicionais à exceção geral de transações comerciais ou de direito privado [128], o que corresponde ao padrão adotado pela Convenção Européia de 1972 e me parece ser o atualmente mais aceito no direito internacional.

Cumpre então descobrir, por meio de uma análise jurisprudencial, quais são os critérios, dentre aqueles que foram aqui relacionados, que o Poder Judiciário brasileiro parece utilizar para excetuar a denegação de imunidades aos Estados estrangeiros, em questões de natureza trabalhista, e qual dos modelos arrolados por HAZEL FOX, o Brasil mais se aproxima.

Confesso, que não é uma conclusão fácil de se chegar, em conseqüência da ausência de situações diversificadas, submetidas aos tribunais brasileiros. Em praticamente quase todos os casos, se verifica que os autores da ação são nacionais brasileiros, domiciliados e residentes no Brasil, contratados no território brasileiro, para realizarem no Brasil, funções subalternas privadas de qualquer manifestação da autoridade pública do Estado acreditante.

Após o julgamento do caso Genny de Oliveira v. Embaixada da República Democrática Alemã, a única decisão com expressão nacional [129] que reconheceu imunidade de jurisdição a um Estado estrangeiro, em ação judicial envolvendo relação empregatícia, foi prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no caso Oswaldo Irurzun v. Empresa Líneas Marítimas Argentinas S/A [130]. Neste caso ocorre uma situação bem diferente das demais: trata-se de uma reclamação trabalhista proposta por um nacional argentino, domiciliado na Argentina e residente no Brasil, contratado em território argentino, para realizar no Brasil, funções conexas com o exercício da autoridade soberana daquele país.

Nesse caso, o autor da ação, Oswaldo Irurzun, era funcionário da empresa estatal argentina Líneas Marítimas Argentinas S/A e foi designado para desempenhar no Brasil, mais precisamente no Porto de Santos, a função de Inspetor Administrativo-Comercial. Submetida a empresa ré, a uma intervenção do governo argentino, o Presidente da República Argentina acolheu a proposta do interventor designado, suspendendo a comissão extraterritorial de inspetoria na qual trabalhava o autor e expedindo o respectivo decreto de desconstituição da aludida comissão. O autor, inconformado com a destituição do cargo de inspetor, ajuizou uma reclamação trabalhista no foro especializado da cidade de Santos, pleiteando receber os créditos trabalhistas que teria direito nos termos do direito brasileiro.

Em sede de terceira instância judicial, o caso foi apreciado pelo STJ, que decidiu por unanimidade reconhecer a imunidade de jurisdição do Estado argentino e conseqüentemente, determinar a extinção da ação sem a apreciação do mérito [131]. Posso afirmar, após minucioso estudo do acórdão em epígrafe, que o fundamento jurídico que levou a esta conclusão está relacionado com a consideração do critério da natureza das funções exercidas pelo empregado.

O Ministro CLÁUDIO SANTOS, considerou no seu voto, como razões para o reconhecimento da imunidade de jurisdição, que o reclamante: veio representar a estatal argentina no Brasil, para fiscalizar negócios de interesse desta, por força de ato administrativo da Frota Argentina de Navegação Ultramar, do Ministério dos Transportes [132]; não era um simples empregado da estatal argentina em território nacional, capaz de ter suas atividades subordinadas às leis trabalhistas brasileiras, porquanto era na verdade, um agente público do governo argentino, ainda que irregularmente designado e sem o devido credenciamento através das vias diplomáticas [133]; que nunca pagou imposto de renda no Brasil, pois gozava da isenção concedida aos agentes de repartições oficiais de outros países [134]- [135].

Observemos que o autor da ação foi investido no cargo por meio de ato administrativo, onde lhe foram delegadas parcelas do poder soberano argentino, para que exercesse no Brasil atividade de interesse público, especificamente a de fiscalização das embarcações da empresa ré que, por sua vez, integravam o patrimônio da República Argentina. Por ser um agente público argentino e parte integrante da estrutura orgânica governamental deste país, visto que desempenhava funções que expressavam o exercício da soberania argentina, os chamados atos jure imperii, ao reclamante era requerido que fizesse o seu credenciamento no Brasil perante o Ministério das Relações Exteriores, pois a sua condição lhe assegurava certos privilégios, tais como o da isenção de imposto de renda, também concedido aos embaixadores e cônsules de países estrangeiros.

Em dois outros acórdãos, o primeiro da lavra do STF e o segundo do TST, mais outro critério parece apresentar inegável importância no tratamento da norma da imunidade de jurisdição pelo Poder Judiciário brasileiro, em causas trabalhistas, o qual são a nacionalidade e o domicílio do empregado.

No caso Estados Unidos da América v. Paulo da Silva Valente e outro [136], o Ministro CELSO DE MELLO, asseverou explicitamente em seu voto que, em questões laborais, não se revela viável impor a empregados domiciliados no Brasil ou de nacionalidade brasileira, o ônus de litigarem perante a tribunais estrangeiros [137]. De forma muito semelhante, o Ministro ALMIR PAZZIANOTTO PINTO sustentou em seu voto, no caso Maria do Socorro Soares da Costa v. República do Equador [138]- [139].

Creio que se pode extrair desse entendimento, que a imunidade de jurisdição é inoperável apenas e somente quando desfavorece empregados brasileiros ou domiciliados no Brasil. Logo, empregados que não tiverem domicílio no Brasil e não forem nacionais brasileiros poderão ter o acesso à jurisdição brasileira recusado, por conseqüência do reconhecimento das imunidades dos Estados estrangeiros.

Quanto ao critério do objeto da ação judicial, já manifestei a minha opinião no sentido de que me parece correto que um Estado não deva ser compelido, por decisão judicial de outro dos seus pares, a admitir, readmitir ou reintegrar quaisquer empregados nos seus quadros funcionais. Um Estado pode e deve selecionar aqueles que atuarão na representação dos seus interesses, uma vez que, trata-se de assunto que abrange a discricionariedade do Estado soberano. O Poder Judiciário brasileiro já demonstrou no caso Oswaldo Irurzun v. Empresa Líneas Marítimas Argentinas S/A, não ter interesse em interferir na administração interna de outros Estados. Ressalte-se, no entanto, que o fato de um Estado estar desobrigado a readmitir ou reintegrar um empregado nos seus quadros funcionais, não significa que estará liberado do pagamento das suas verbas rescisórias trabalhistas.

Um outro aspecto de grande relevância é o da impossibilidade dos Estados estrangeiros acordarem com os empregados, nos contratos de trabalho ou qualquer outro documento apartado, o afastamento ou a inaplicação da jurisdição estatal brasileira às controvérsias oriundas dessas relações laborais. Tal fato ocorre porque a legislação trabalhista brasileira faz parte das chamadas "normas imperativas" ou ainda "regras de ordem pública" do Estado [140], que não podem ser alteradas por determinação das partes, porque funcionam como limites à vontade negocial dos contratantes. A liberdade contratual dos negociadores tem, como principal limite, a proibição de violar regras de ordem pública do sistema jurídico com o qual o contrato pode interagir para produzir os seus efeitos [141]. A noção de ordem pública expressa o esquema de valores, cuja tutela atende, com caráter essencial um determinado ordenamento jurídico. Assim, são de ordem pública aqueles preceitos que definem de uma maneira específica e concreta alguns destes valores, preceitos estes que não podem sofrer nenhuma diminuição no processo de aplicação de todo o conjunto normativo, sob pena de desvirtuar o autêntico caráter ordenador da instituição [142].

Diante de todo o exposto, elaborei um projeto normativo que se adequaria à atual realidade brasileira, no tocante ao tratamento da imunidade de jurisdição em questões trabalhistas. Destarte, se o Brasil vier a promulgar uma lei ordinária sobre o assunto posto em tablado, sugiro que tenha um dispositivo com a seguinte redação:

Nos dissídios trabalhistas em que forem partes, empregado domiciliado no Brasil ou de nacionalidade brasileira, de um lado, e do outro, Estado estrangeiro, este não gozará de imunidade de jurisdição perante o órgão jurisdicional nacional competente para conhecer a ação, exceto se o empregado desempenhar funções estreitamente conexas com o exercício do poder público-administrativo do Estado estrangeiro, ou ainda, se o pedido da ação for a reintegração ou a readmissão do empregado no seu local de trabalho.

Em síntese, extrai-se deste preceito três requisitos independentes e não-cumulativos, para a admissibilidade excepcional da imunidade de jurisdição em matéria trabalhista: que o empregado seja domiciliado no exterior e tenha nacionalidade estrangeira; que o empregado exerça funções estreitamente conexas com o exercício do poder público-administrativo do Estado estrangeiro; e que o pleito judicial seja a reintegração ou a readmissão do empregado no seu local de trabalho.

A interpretação e a aplicação prática do primeiro requisito, parece não suscitar muitas dificuldades. A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, em princípio, será denegada se o domicílio do empregado for no Brasil ou se sua nacionalidade for brasileira, ao passo que a contrario sensu, será admitida se o domicílio do empregado for no exterior e se sua nacionalidade for estrangeira [143]. O domicílio é o lugar onde a pessoa tem a sede jurídica dos seus negócios e interesses ou a sua morada fixa, com a intenção manifesta de aí permanecer como sujeito ativo e passivo de direito; é também o local onde a pessoa contrai as suas obrigações tributárias [144]. Uma pessoa pode ter somente um domicílio, ao passo que pode ter várias residências, sendo estas quaisquer locais onde uma pessoa fique durante um determinado período sem o animus de aí permanecer definitivamente. A nacionalidade, por sua vez, representa o vínculo jurídico-político que relaciona o indivíduo ao Estado, ou ainda, constitui o traço de ligação entre a pessoa natural e um determinado país [145]- [146].

É no segundo requisito, que entendo poderem residir alguns questionamentos, especificamente quanto à exata compreensão do que consistiriam "funções estreitamente conexas como exercício do poder público-administrativo".

Afigura-se correto dizer, que os empregados que preencham essa condição são na verdade, ao abrigo do direito brasileiro, denominados de agentes públicos. A doutrina que se ocupa do direito administrativo conceitua agente público como toda pessoa que, sendo titular de um cargo público, exerce determinadas funções estatais. O cargo consiste numa posição existente dentro da estrutura da administração pública do Estado e é dotado de certas atribuições funcionais fixadas por lei, que serão desempenhadas pelo agente que assumi-lo. De acordo com a posição hierárquica que ocupam e as funções que lhes são cometidas, os agentes recebem a correspondente parcela de poder público para o desempenho das suas atribuições no plano administrativo. É esse poder, que empresta autoridade ao agente, quando ele recebe da lei, competência decisória e força para impor suas decisões aos administrados [147].

Desse modo, as funções estreitamente conexas com o exercício do poder público-administrativo são àquelas que se manifestam na prática através dos já conhecidos, atos de império. Incluem-se nessa categoria as atividades que são exclusivamente estatais e têm como finalidade, dentre outras coisas: a aquisição, transferência, modificação, extinção e declaração de direitos e a imposição de obrigações aos administrados ou a própria administração pública; a defesa nacional; a segurança pública; a representação da nação perante a comunidade internacional; a fiscalização do cumprimento dos seus atos e a punição pelas suas respectivas violações.

Cumpre então verificar em cada caso concreto submetido aos órgãos jurisdicionais brasileiros, se dentre as funções que eram habitualmente desempenhadas pelo empregado reclamante, alguma podia ser equiparada às hipóteses que foram acima enumeradas. Para melhor esclarecimento, vejamos algumas situações que não exprimem o exercício do poder público administrativo: uma secretária que foi admitida numa embaixada para a digitação de documentos e atendimento de ligações telefônicas; um segurança que foi contratado para vigiar os automóveis de um consulado; e um motorista que é responsável pelo transporte autoridades políticas de um país estrangeiro. Confrontemos agora essas hipóteses com outras, que inversamente, exprimem o exercício do referido poder: um plenipotenciário de um Estado estrangeiro que veio negociar as condições de um tratado; uma psicóloga que gerencia os recursos humanos de uma missão diplomática, podendo para isso, contratar e exonerar funcionários; um inspetor que fiscaliza o patrimônio público de um país estrangeiro e lhe envia periodicamente relatórios munidos de fé-pública; e um soldado estrangeiro enviado para realizar uma missão de paz.

Finalmente, o último dos requisitos extraídos do projeto normativo em análise, não apresenta quaisquer problemas. Quando o pedido da ação tiver como objeto a reintegração ou a readmissão do empregado no seu local de trabalho, a imunidade de jurisdição deve operar com todos os seus efeitos jurídicos, impedindo o prosseguimento da lide. Assim sendo, julgo ser desnecessário dispensá-lhe mais comentários.

Diante de todo o exposto posso concluir que, dentre aqueles padrões propostos HAZEL FOX, o que mais se aproxima do Brasil é o terceiro, que fornece exceções específicas para relações laborais adicionais à exceção geral de transações comerciais ou de direito privado. O Poder Judiciário brasileiro parte da regra geral de que os Estados estrangeiros não gozam de imunidades em conflitos de natureza trabalhista. Em seguida adota apenas quatro critérios que funcionam como exceções a esta regra: o objeto da ação judicial, a natureza das funções laborais, a nacionalidade e o domicílio do empregado.

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Sobre o autor
Laerte Meyer de Castro Alves

Coordenador da Área Empresarial Internacional de R. Amaral Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza, Mestre em Ciências Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Vice-Presidente da Associação dos Jovens Advogados do Estado do Ceará, Diretor Executivo do Instituto de Direito Internacional do Estado do Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Laerte Meyer Castro. Imunidades de jurisdição dos Estados estrangeiros em matéria trabalhista no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 988, 16 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8115. Acesso em: 13 mai. 2024.

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