Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião.
Hans-Georg Gadamer
Introdução
O presente artigo pretende analisar o fenômeno da normatividade dos princípios em relação com a conjuntura histórica definida como pós-modernidade, alta modernidade ou modernidade tardia. Para tanto, apresentamos inicialmente o quadro epistemológico característico da pós-modernidade. Em seguida, apresentamos conceitualmente os princípios como espécie do gênero norma e concluímos expondo a razão pela qual entendemos ser o reconhecimento do caráter normativo dos princípios um evento característico da pós-modernidade. A presente discussão insere-se dentro de um quadro mais amplo da ciência jurídica, inaugurado na segunda metade do século XX e que se convencionou chamar pós-positivismo.
Modernidade e pós-modernidade
Ao longo dos séculos XIX e XX, os postulados lançados pelos movimentos emancipatórios da burguesia foram sofrendo sucessivos abalos. Desde o Renascimento, na passagem do mundo feudal para o capitalista, desenvolveu-se a crença na capacidade transformadora da razão humana. O Iluminismo francês do século XVIII reafirmou a centralidade do homem no processo de conhecimento e o positivismo do século XIX elevou à categoria de dogma os conhecimentos desenvolvidos pela ciência. O método das ciências naturais é transplantado para as ciências humanas, que passam a se orientar pelos critérios da neutralidade do sujeito conhecedor e da objetividade do conhecimento obtido.
A burguesia, realizando os caminhos que a levariam à direção política e cultural da sociedade, impôs a categoria do universal aos modelos de conhecimento desenvolvidos no ocidente. O sujeito masculino-cristão-ocidental assumia a forma do "homem universal", cuja racionalidade supostamente emanava da natureza dos seres e das coisas. A natureza atemporal, eterna e imutável, era a fonte dos valores "universais" que orientavam a ciência, a sociedade e o desenvolvimento humano.
No âmbito da ciência jurídica e a partir desse contexto específico, desenvolveu-se primeiramente o jusnaturalismo, no esteio das revoluções burguesas que sacudiram o mundo no século XVIII. Contra a ordem absolutista bradava-se a bandeira dos direitos naturais, limitadores do poder do príncipe e garante das liberdades individuais almejadas pela burguesia. A onda jusnaturalista teve seu apogeu com as codificações que se seguem à instalação da burguesia no poder, a começar pelo Código Civil Napoleônico de 1804. A técnica da codificação permitiu a institucionalização dos chamados direitos naturais, que desciam da esfera filosófico-axiológica para ganhar os trâmites concretos da normatividade jurídica.
Os devaneios cientificistas do século XIX conduziram ao nascimento do juspositivismo, quando o direito passa a ser concebido como um conjunto coerente e completo de leis positivadas, imunizado das ingerências de outros ramos do conhecimento. O direito ganhava o aspecto de ciência autônoma, dotada de método e princípios próprios, conforme preconizado por Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito.
As insuficiências da modernidade logo se revelaram. A emergência do proletariado e novos aportes teóricos tiveram um efeito intrusivo sobre o modelo de homem e de conhecimento concebidos na modernidade. O juspositivismo conhece sua derrocada definitiva com a derrubada nos regimes nazi-fascistas ao final da 2ª Guerra Mundial e o pós-positivismo desenvolve-se como concepção alternativa à ciência jurídica.
O pós-positivismo emerge, contudo, em meio a um quadro teórico adverso para o conjunto das ciências humanas. O advento da bomba atômica e a possibilidade concreta do holocausto nuclear destroem definitivamente as últimas pretensões da racionalidade cientificista iniciada com o Renascimento, nos séculos XIV, XV e XVI. O dilema ético assombra as ciências da natureza e uma nova onda de rebeliões pelo mundo aponta para a falência da tradicional sociedade ocidental, em meados dos anos 1960. No correr da Guerra Fria, vozes dissonantes aparecem no cenário dos discursos epistemológicos, completando o quadro da pós-modernidade, ou da chamada modernidade tardia.
Desde o século XIX, contudo, os paradigmas racionais desenvolvidos pelo Iluminismo vêm sendo vigorosamente contestados. A começar pelo marxismo, uma corrente de pensamento crítico vem derrubando um a um os postulados da ciência moderna.
O materialismo histórico marxista iniciou um caminho irreversível ao afirmar a historicidade radical das sociedades humanas. Longe de determinar as amplas estruturas da sociedade, a consciência humana é produto da ordenação das estruturas produtivas. A estrutura de classes da sociedade passa a ser o ponto de partida para a crítica do conhecimento humano e grande parte da produção científica dos séculos anteriores ganha o rótulo negativo de ideologia: "formas de conhecimento ilusório que levam ao mascaramento dos conflitos sociais" (Filosofando, p. 61). A crítica marxista faz com que se desnaturem, simultaneamente, dois dos atributos mais caros ao direito jusnaturalista e juspositivista: a universalidade e a perenidade.
Não bastasse, na virada do século XIX para o século XX os estudos da psicanálise, desenvolvida por Freud, levam à ruptura do próprio "eu", sujeito do conhecimento. O indivíduo perde sua unidade orgânica em face do descobrimento de um "inconsciente" inerente à subjetividade humana. "A teoria freudiana [...] do inconsciente, que funciona de acordo com uma ‘lógica’ bastante diferente daquela da razão, causou estragos ao conceito do sujeito conhecedor e racional, com uma identidade unificada e fixa – o sujeito do ‘penso, logo existo’ cartesiano" (Hall, 1997, p. 38).
No correr dos anos 60, uma nova vaga revolucionária ganha o mundo, apresentando a falência definitiva da sociedade branca, masculina, cristã e ocidental. A emergência da política das minorias traz a fragmentação dos discursos e impõe o reconhecimento de múltiplos pontos de vista e múltiplos sistemas epistemológicos. O movimento feminista, as revoluções estudantis, a contracultura, a luta pelos direitos civis e os movimentos revolucionários no terceiro mundo apresentam novos sujeitos sociais, que fazem do estigma da exclusão o emblema para sua afirmação identitária.
O feminismo destacou-se como movimento social e como crítica teórica (Hall, 1997, p. 47), ao politizar temas até então confinados à esfera privada. As feministas apresentaram como slogan o lema "o pessoal é político" e desafiaram a noção de que "homens e mulheres eram parte da mesma identidade – Humanidade – substituindo-a pela questão da diferença sexual" (Hall, p. 50).
O feminismo e a introdução das minorias como agentes políticos e construtores de uma epistemologia própria complexificou o fluxo dos discursos, a multiplicidade de referenciais agravando o quadro de fragmentação definidor da pós-modernidade. Dessa forma, ao reconhecer valor e validade a discursos epistemológicos alternativos, o feminismo reforçou as teorias críticas do direito, que se referem ao direito como mera instância de poder, desqualificando a suposta validade universal e a abrangência de interesses contidos no pacto jurídico-social.
A pluralidade de vozes que emerge do contexto pós-moderno fez surgir uma nova corrente epistemológica, que desloca a análise dos fundamentos de validade de um enunciado para a análise da linguagem. Sujeito e objeto perdem momentaneamente as luzes do palco, que se concentram, agora, sobre a relação dialógica sobre a qual se processa a produção do saber.
A normatização da vida social impõe-se como uma tarefa interssubjetiva de diálogo e construção comunicativa. A democracia nunca foi tão necessária à legitimição do direito, em razão da ausência de essências transcendentes capazes de legitimar o exercício do poder e da jurisdição.
Cuidou Habermas, entre outros teóricos, de introduzir o direito nessa nova fase das ciências humanas. Afirma ele em sua obra Direito e Democracia (1997) que "qualquer pretensão de verdade leva falantes e ouvintes a transcenderem os padrões provincianos de qualquer coletividade, de qualquer prática de entendimento localizada aqui e agora".
A normatividade dos princípios em face do pós-moderno
A doutrina já acentou o entendimento segundo o qual sobre o gênero norma abrigam-se as espécies regra e princípio. Assim se manifesta Ruy Samuel Espíndola (2002, p. 66), trazendo um interessante resumo do tema:
A concepção de que um princípio jurídico é norma de Direito talhou-se através de evolução analítica interessante. Primeiro, a metodologia jurídica tradicional distinguia os princípios das normas, tratando-as como categorias pertencentes a tipos conceituais distintos. Mas, mesmo assim, a idéia de norma era sobreposta, dogmática e normativamente, à idéia de princípio. [...]
Depois, devido aos acréscimos teórico-analíticos de Dworkin e Alexy, pacificou-se a dintinção entre regras e princípios como espécies do gênero norma de direito.
Sobre o mesmo tema, Luís Roberto Barroso (2004, p. 327) ensina que "na trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram que conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata".
Posta em seus devidos termos, a vinculatividade dos princípios manifesta-se em sua "eficácia positiva e negativa sobre comportamentos públicos e privados bem como sobre a interpretação e a aplicação de outras normas, como as regras e outros princípios derivados de princípios de generalizações mais abstratas" (Espíndola, 2004, p. 60).
Posto esse entendimento, importa-nos distinguir princípio e regra, de modo a esclarecer o conceito de princípio e explicar de que modo a aceitação do princípio como categoria dotada de normatividade e imperatividade relaciona-se ao quadro histórico descrito acima como pós-modernidade.
Canotilho (1993, p. 166-167) aborda a distinção entre regra e princípio, apontando cinco critérios diferenciadores, quais sejam:
a)grau de abstração: mais acentuado nos princípios que nas regras, que possuem grau reduzido de abstração;
b)grau de determinabilidade: a indeterminação dos princípios faz com que careçam da mediação concretizadora do juiz, enquanto as regras possuem aplicabilidade mais imediata;
c)caráter de fundamentalidade no sistema: os princípios possuem função estruturante dentro do sistema jurídico;
d)proximidade da idéia de direito: os princípios vinculam-se mais direitamente a um ideal de justiça, enquanto as regras podem ter conteúdo meramente funcional;
e)natureza normogenética: os princípios são fundamentos das regras.
Ainda segundo lição de Canotilho (p. 167-168), vale ressaltar que:
"Os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização [...]; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência que é ou não cumprida [...]; a convivéncia dos princípios é conflitual [...]; a a convivéncia das regras é antinómica. Os princípios coexistem; as regras antinómicas excluem-se."
Concluindo, Canotilho afirma que "os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são corretas devem ser alteradas)". Dessa forma, princípios e regras coexistem no ordenamento com a mesma força normativa, ressalvadas as diferenças tópicas acima enumeradas.
Partindo desses ensinamentos, podemos afirmar que as regras constituem um mandamento fechado e excludente. A hipótese de aplicação de uma regra exclui necessariamente a validade de outras regras em face daquele caso concreto. Habermas (1997, p.259), com base em Dworkin, afirma que "só se pode solucionar um conflito entre regras, introduzindo uma cláusula de exclusão ou declarando uma das regras conflitantes como inválida". Não é possível o estabelecimento de um campo dialogal entre normas antinômicas, cuja coexistência contraria os princípios da identidade e não-contradição decorrentes da lógica aristotélica.
Portanto, a solução de um conflito de regras resolve-se pela exclusão. Em razão de sua estrutura rígida, a regra não admite juízos de ponderação, de modo que a subsunção de uma regra ao caso apreciado define-se pela simples verificação das condições taxativas nas quais a regra deve ser aplicada.
Na complexidade da pós-modernidade, as regras, cujo fundamento decorre da observância da legalidade do procedimento que levou à sua formação, carecem profundamente de legitimidade. A validade procedimental, formal de uma regra não resiste à crítica incessante que, na pós-modernidade, atinge todos os ramos da ação e do saber humano.
A legitimidade no pós-moderno demanda uma reflexão deontológica, ou seja, uma explicitação fundamentada das razões do dever-ser proposto pela norma. A pluralidade de vozes e a aceitação recíproca de suas validades configuram uma situação na qual a mera exclusão de um dos enunciados deslegitima a atuação do intérprete.
Os princípios, enquanto normas positivadoras de valores percebidos como fundamentais, emergem como enunciados imperativos, em face da carência de legitimidade verificada nas regras. A normatividade dos princípios aparece em várias circunstâncias, reorientando a racionalidade do intérprete, que se desloca dos critérios formais de validade de uma norma, para o seu substrato axiológico.
Em suma, no direito pós-moderno só é possível jurisdição através do recurso aos princípios, única modalidade de norma capaz de, simultaneamente, normatizar a conduta humana e estabelecer uma situação de diálogo com o sujeito cujo comportamento se pretende validar.
Conclusões possíveis
A normatividade dos princípios guarda uma relação dúplice com a pós-modernidade. Ao mesmo tempo em que propõe uma normatividade mais aberta, mais adequada, portanto, ao contexto de fragmentação característico da pós-modernidade, a atribuição de imperatividade aos princípios permite a integração entre um contexto social fragmentado e disperso por uma infinidade de interlocutores legitimados a proferir atos de fala e a necessidade de atribuir sentido e norma à atuação social dos indivíduos.
A normatividade dos princípios adequa-se à pós-modernidade ao compor um conjunto normativo mais flexível, mais aberto à subjetividade do julgador e à multiplicidade de perspectivas da presente quadra da história. Todavia, de forma dialética, o reconhecimento de carga normativa aos princípios rompe com a fragmentação e com as incertezas características da alta modernidade, recompondo, ainda que de forma precária e incompleta, a possibilidade de ordenação social e a legitimidade das instituições sociais.
O princípio possui maior densidade valorativa e, portanto, é mais adequado para o suprimento do déficit de sentido típico da pós-modernidade. A pós-modernidade, ao romper com as ordens tradicionais, internalizou a crítica como um atributo próprio de sua essência. A dúvida e a relatividade possuem um efeito erosivo sobre o ordenamento jurídico e sobre o princípio da segurança jurídica. O direito, como guardião da ordem tradicional, contraria a relatividade que permeia o conjunto da vida na pós-modernidade.
As regras, em face de sua reduzida carga valorativa, não realizam os anseios de justiça e legitimidade de uma sociedade em cuja estrutura social vacilam as certezas existenciais e multiplicam-se as incertezas ético-filosóficas. Nesse contexto, os princípios realizam simultaneamente a reflexão deontológica, acerca dos deveres de cada indivíduo, e a normatização da vida social, exigindo do intérprete do direito o percurso de um caminho mais longo entre a abstração principiológica e a realização da justiça no caso concreto, através da argumentação e da motivação mais elaborada de seus atos.
Por todo o exposto, conclui-se que a normatividade dos princípios realiza de forma mais plena os imperativos da segurança jurídica e da pretensão de legitimidade que decorre do exercício do direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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