O dever do impeachment

19/05/2020 às 16:25
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Não sei se um impeachment contra Jair Bolsonaro tem condições de prosperar. Numa avaliação política, eu diria que, hoje, não. 


Mas, acredito que temos a obrigação moral de deflagrar o processo, mesmo que não tenha êxito. Os crimes de responsabilidade cometidos pelo atual mandatário são tantos, tão ostensivos e tão graves que deixar de acusá-lo equivaleria a coonestar suas atitudes[todos os grifos em vermelho são meus – CL]

O impeachment tem dupla natureza. Ele é ao mesmo tempo um instituto político e judicial. Se o bom articulador só deve levar sua proposta a votação quando sabe que vai ganhar, o policial é em tese obrigado a entrar em ação sempre que flagra uma ilegalidade.

No mundo real, sabemos que o guarda muitas vezes precisa fechar os olhos para violações menores, ou as delegacias ficariam atulhadas em picuinhas, mas, quando o meliante passa a agir em plena luz do dia, cometendo delitos cada vez mais graves e de forma cada vez mais conspícua, a opção de virar a cara para o outro lado já não se coloca


A maior flexibilidade proporcionada pela faceta política do impeachment não muda isso. Os desatinos de Bolsonaro atingiram um grau tal que ignorá-los seria compactuar com o perpetrante.


Estamos aqui numa situação análoga à do Partido Democrata diante das transgressões de Donald Trump. Mesmo sabendo que não havia a menor chance de o presidente ser afastado —os republicanos têm folgada maioria no Senado— e que havia o risco de a absolvição fortalecê-lo eleitoralmente, a liderança democrata entendeu que tinha a obrigação moral de tentar o impeachment. 

Julgou que as violações eram de tal monta que fingir que elas não ocorreram significaria faltar com o compromisso do partido com a democracia.

Em termos práticos, a diferença relevante é que Trump podia contar com a fidelidade dos senadores de um Partido Republicano cada vez mais coeso por causa da polarização; já Bolsonaro está na mão do centrão(por Hélio Schwartsman)

Uma palavra mais — O posicionamento do Schwartsman é o único aceitável para os melhores seres humanos, aqueles que vivem de acordo com seus princípios e não segundo a famigerada lei de Gérson, querendo apenas levar vantagem pessoal em tudo, pouco importando as consequências de suas escolhas para a coletividade.


Só não concordo com que o início já e agora do processo do impeachment esteja fadado ao fracasso. Pelo contrário, como a cada momento sai mais um esqueleto do armário da Família Miliciana e o Bozo, o Horroroso, além de estuprador serial da Constituição agora subiu de patamar e se tornou genocida, a deflagração do processo terá grande importância para a acumulação de forças, como elemento aglutinador.

O momento brasileiro é tão dramático que não demorará a cair a ficha para os poderosos de que, sem uma rápida remoção do exterminador do presente, o Brasil explodirá. Quanto mais depressa o bode for retirado da sala, mais brasileiros serão salvos das mortes evitáveis que a sabotagem do combate à crise sanitária está causando. É simples assim. 

Sobre o autor
Celso Lungaretti

Jornalista, blogueiro, escritor e veterano da resistência à ditadura militar. Ingressei na luta contra a ditadura militar ainda secundarista, aos 17 anos. Passei um ano na clandestinidade, como dirigente estadual da VPR e VAR-Palmares. Preso, sofri uma lesão permanente que me prejudicaria tanto no convívio social quanto nos desempenhos profissionais. Mesmo assim, fiz longa carreira jornalística. Hoje sou escritor, articulista e blogueiro, atuando frequentemente na defesa dos direitos humanos. Observador atento da cena política brasileira há mais de meio século, além de haver sido, aos 18 anos, o primeiro e único comandante de Inteligência de uma organização que travava a luta armada, tento dar aos leigos no assunto um quadro realista das perspectivas atuais, para dissipar um pouco das paranoias e alarmismos que tantos pesadelos lhes causam .

Informações sobre o texto

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