Artigo Destaque dos editores

Comentários à ADI nº 3684:

em defesa da competência criminal da Justiça do Trabalho

Exibindo página 3 de 4
Leia nesta página:

5. VIABILIDADE DO FUNCIONAMENTO DA JUSTIÇA DO TRABALHO PELO ACRÉSCIMO DE SUA COMPETÊNCIA: RAZÕES QUE ESCLARECEM PORQUE A JUSTIÇA DO TRABALHO NÃO SE CONGESTIONARIA A PARTIR DO EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CRIMINAL

            A preocupação atinente à possibilidade de congestionamento da Justiça do Trabalho quanto à competência criminal, embora pertinente, quando estudada mais acuradamente revela exatamente o efeito contrário: a jurisdição penal trabalhista tem o condão de diminuir a litigiosidade nas relações capital x trabalho.

            Com efeito, atualmente, embora existente um Título do Código Penal dedicado aos crimes contra a organização do trabalho, a prática revela a inexistência de um efetivo Direito Penal do Trabalho.

            Na verdade, a falta de jurisdição especializada para o trato da matéria levou, ao longo do tempo, quase que ao desuso dos tipos penais contidos nos arts. 197/207 e, também, com relação aos demais identicamente aplicáveis às relações de trabalho (art. 132 do CP – periclitação da vida ou saúde do trabalhador; 121, §3º - homicídio culposo em acidente do trabalho; 129, §6º - lesão corporal culposa em acidente do trabalho; art. 297, §§3º e 4º - omissão de anotação em CTPS; art. 299, caput – falsidade ideológica, especialmente por documentos em branco ou nos falsos "cooperativismos"; art. 19, §2º, da Lei 8213/91 – descumprimento de normas de higiene, saúde e medicina do trabalho; art. 3º, da Lei 5553/68 – retenção de CTPS, etc.).

            Importante destacar que, em matéria de acidentes do trabalho, os inquéritos policiais, em todo o território nacional, são arquivados sistematicamente, em sua grande maioria, em face de conclusão por "culpa exclusiva da vítima", e.g.: "levou choque porque não viu o fio desencapado"; "foi vitimado porque não colocou o cinto"; etc. Logo, muito embora o volume de ações trabalhistas acidentárias, as correspondentes ações penais acidentárias são ínfimas, justamente porque a falta de conhecimento especializado do ramo comum do Judiciário a que afeta a competência anterior à EC 45/04 não permitia a correta visualização dos ilícitos dos empregadores em condutas tais como: falta de fornecimento de EPI’s, não adoção de EPC’s, entrega de EPI’s inadequados; falta de fiscalização do uso de EPI’s, não implemento ou descumprimento do PPRA e PCMSO, etc.

            Tocante aos demais ilícitos, tão comuns nas relações de trabalho, como coleta de assinatura em branco em TRCT’s, folhas de pagamento, recibos de entrega de EPI’s, contratos de trabalho, etc., controles paralelos de jornada, anotações falsas no cartão-ponto, salário extra-folha, trabalho sem registro, saque fraudulento do FGTS, percepção fraudulenta do seguro-desemprego, etc., etc., ficam sempre relegados a segundo plano nos demais ramos do Judiciário, cujo enfoque de atuação é completamente distinto da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho.

            Mutatis mutandi, para se traduzir o que isso representava antes da EC 45/04, seria o mesmo que colocar na jurisdição trabalhista a apreciação de questões atinentes à evasão de divisas, sonegação fiscal, v.g., que certamente ficariam preteridas em meio às costumeiras lides laborais. Ou, por outra forma, levar os delitos militares ao trato pela Justiça Eleitoral, numa incongruência sem par.

            Daí se vê a absoluta incoerência do sistema judiciário brasileiro anterior à EC 45/04 em manter ações penais oriundas da relação de trabalho com processo e julgamento perante órgãos estranhos à matéria.

            Sustenta-se, pois, a necessidade de conhecimento especializado para o trato dos delitos cometidos nas relações de trabalho, sem o qual as normas penais trabalhistas não tem eficácia prática e, per viam consequentiae, persistem as violações criminosas à legislação social, multiplicando as ações trabalhistas que sobrecarregam a Justiça do Trabalho hodiernamente.

            E não se trata de trazer para a jurisdição trabalhista um sem número de delitos que pudesse comprometer a eficiência no processamento e resolução dos litígios afetos à sua normal competência, mas de delitos específicos, como por exemplo:

            - Código Penal: art. 132, caput; art. 171, caput; arts. 197 a 297 (na forma da Súmula 115 do TFR); art. 288, caput (quando relacionado ao cometimento de crimes trabalhistas); art. 297, §§3º e 4º; art. 299, caput; art. 355 (tergiversação e patrocínio infiel nas lides trabalhistas) e outros crimes relativos à administração da Justiça do Trabalho;

            - Legislação Penal esparsa: art. 19, §º2, da Lei 8213/91; art. 3º da Lei 5553/68; art. 1º, XIII, do Dec. Lei 201/67 (burla ao concurso público); art. 20 da Lei 7716/89 (discriminações nas relações de trabalho).

            Veja-se, i.e., que a prática processual trabalhista no Estado de Santa Catarina, iniciada em meados de 2005, embora nos seus primórdios, traz uma realidade em números, e, invariavelmente, comprovam repetição dos mesmos ilícitos supracitados afetos às relações de trabalho (dados aproximados, coletados a partir de julho/2005):

            - 16 denúncias-crimes ajuizadas;

            - 6 Termos Circunstanciados lavrados pela Polícia Federal e encaminhados à JT;

            - 12 transações penais lavradas, incluindo 01 sursis processual e três já integralmente cumpridas;

            - 25 a 30 audiências criminais realizadas;

            - 1 processo com instrução encerrada e concluso para sentença.

            A prática catarinense está sendo acompanhada pelo Judiciário Trabalhista paulista, ou pelo Ministério Público que nela atua na região, que, apesar de iniciada mais tardiamente, no início do ano de 2006, já possui 02 denúncias-crimes ajuizadas, acumulando outras quase 400 (ligadas à um único tema: fraude de direitos trabalhista mediante a utilização de cooperativas), além de outras, que aguardam a apreciação, seja em função do declínio da competência pelos Juízes Estaduais (e até mesmo federais), seja pela constatação de tipicidade penal das condutas pelo próprio "Parquet" Laboral ou pelos Juízes do Trabalho que acabam por a ele remeter.

            Os números, mesmo considerando São Paulo – de acordo com a abrangência daquela Regional – como o Estado que tem o maior número de demandas, em função da concentração de empresas e indústrias - não são capazes de inviabilizar a Justiça do Trabalho, mas muito pelo contrário, os efeitos dessa pequena prática processual penal trabalhista são surpreendentes, pois, ad exemplum, na Vara do Trabalho de Indaial (Santa Catarina), nas pautas que participa o Ministério Público do Trabalho todas as lides são conciliadas, tendo o empresariado local solicitado a realização de um seminário para esclarecimento das condutas que caracterizam ilícito penal trabalhista a fim de proceder sua adequação à nova realidade.

            Ou seja, a jurisdição penal trabalhista é limitada a algumas condutas capituladas no ordenamento como delituosas, e o seu exercício, ainda que em pequena escala, estimula a solução amigável das lides laborais e contribui para a erradicação de comportamentos graves e nocivos ao trabalhador e à própria sociedade, como trabalho e salário sem registro (informalidade e sonegação de direitos sociais), falsas anotações de jornada, etc., diminuindo, por conseguinte, o grau de litigiosidade nas relações entre capital x trabalho.


6. DA QUESTÃO DA COMPETÊNCIA E A CORRUPÇÃO NO BRASIL, E SEUS EFEITOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO-LABORAL – NECESSIDADE DE DEFINIÇÃO IMEDIATA, MESMO QUE EM CARÁTER LIMINAR (NEGATIVO DA PRETENSÃO) DA COMPETÊNCIA

            A experiência demonstra que nos casos mais graves de violação do ordenamento jurídico a serem enfrentados pelo Estado, a primeira defesa dos acusados é própria daqueles que não tem defesa: questionar a atribuição/competência do órgão acusador e do órgão julgador.

            E, ao se considerar o tempo que pode ser dispensado para apreciação desse tipo de matéria, conclui-se rapidamente que ela não favorece a aplicação efetiva de justiça. Citamos como exemplos os processos de n. 2003.41.00.005924-8/RO, 2003.41.005294-4/RO, 2003.41.00.003994-5/RO, 2003.41.00.003992-8/RO, 2003.41.00.004263-1/RO, 2003.41.00.004261-4/RO, e 2003.41.00.005929-6/RO, que correm no eg. TRF da 1ª Região. Tratam-se de denúncias-crimes e prisões preventivas propostas conjuntamente pelo MPT/MPF em casos envolvendo, em tese, exploração de trabalho em condições análogas à escravidão. As peças foram ajuizadas no ano de 2003, e, por força de decisão do juízo, que reconheceu a incompetência da Justiça Federal para processar e julgar a demanda, os processos estão sendo levados ao STF, aguardando, pois, até hoje, uma decisão preliminar que fixará apenas qual é o juízo competente. Eventualmente definida a competência em favor da Justiça declinante, será aproveitado o processamento desenvolvido na Justiça Estadual ou isto apenas estimulará exceções dilatórias de nulidades processuais, a suscitar novos atrasos na efetiva apreciação meritória?

            Outra situação demonstrativa vem da própria Justiça do Trabalho. Uma das primeiras ações civis públicas ajuizadas na Justiça Especializada, no início da década de 1990, somente neste segundo semestre de 2005 obteve decisão do TST que reconheceu a legitimidade do MPT e a competência laboral para o pleito. O Parquet trabalhista obrigou-se a pedir a perda do objeto, pois, passados doze anos decorridos da propositura, o provimento jurisdicional postulado deixou de ser útil à sociedade.

            O elo de conexão entre a divisão de competência/atribuições e a corrupção fica claro quando se visualiza, na população, o incômodo efeito da mora estatal na apreciação de questões que demandam sua atuação: há uma desconfortável sensação de impunidade gerada pelo sistema.

            Ora, se houver uma rápida resposta do Judiciário que diga da violação ou não do ordenamento jurídico no caso concreto, a dúvida se desvanece e os infratores saberão quais as conseqüências da repetição da conduta, se lícita ou ilícita. No entanto, se, do contrário, protela-se a decisão meritória da quaestio, é inevitável interpretar-se por uma complacência com o ilícito noticiado, pois o Estado, sabedor de uma possível violação aos preceitos legais, permanece por um bom tempo inerte diante da situação.

            Sabe-se que impunidade e corrupção têm entre si laços indissolúveis de proximidade em relação causa-conseqüência. Mora e complacência, na resolução de problemas, não estimulam outra coisa senão o descrédito do Poder constituído, e, na medida em que isto ocorre, a própria corrupção do sistema, favorecendo as violações da lei.

            No âmbito trabalhista, a situação é trágica: o título do Código Penal dedicado aos crimes contra a organização do trabalho é quase letra morta ante o desuso dos operadores do direito quanto aos tipos penais que decorrem da relação de trabalho. A pouca jurisprudência existente sobre os delitos em questão costuma ser negativa (quando não ocorrentes a prescrição, fato comum nos delitos deste tipo, por serem de menor potencial ofensivo), e raras as condenações, mesmo quando a Justiça Obreira constatam, em definitivo, as fraudes para frustrar os direitos previstos na legislação trabalhistas, nos casos individuais ou coletivos (em função da ação civil pública) postos.

            As conseqüências desastrosas dessa dura realidade são sentidas no quotidiano forense da Justiça do Trabalho – o trabalho informal, a sonegação de direitos mediante diversas fraudes (recibos em branco, truck-system, falsificação de assinaturas dos empregados, controle paralelo de jornada, salário "extra-folha", falso cooperativismo, constituição irregular de pessoas jurídicas, discriminações, e, pior, isto ocorrendo no âmbito da própria Administração Pública), ou, ainda, a simulação de ações trabalhistas para constituição de crédito privilegiado e burla a credores, etc., são todas condutas gravíssimas, mas de repúdio social diminuído ante a tolerância criminal estabelecida ao longo do tempo pela falta de competência penal da Justiça especializada. A ponto de se chegar ao cúmulo da existência de seminários propagando formas de evitar a atuação do Ministério Público do Trabalho, e postergar a incidência das sanções civis na renda da empresa, pasme-se! Fosse isto ocorrer em relação à atividade de outros ramos do Parquet, não se entenderia por apologia ao crime?

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

            A que ponto se chegou no Estado brasileiro para que o crime organizado trabalhista se institucionalize dessa forma? Mas não é necessário ir além: alguma vez, no Brasil, se tratou da questão referente ao combate de crime organizado trabalhista?

            Outro exemplo: a odiosa exploração de trabalhadores em condição análoga à escravidão, embora atualmente enfrentada de forma incisiva pelo Estado brasileiro, notoriamente através das forças-tarefas entre MPT, Polícia Federal e DRT, permanece no silêncio jurisdicional quanto ao tipo do art. 149 do Código Penal. Prisão preventiva nesses casos é algo raro. E onde está a pretensão punitiva alardeada pelo Procurador Geral da República, nesses casos? Se aguardando prescrição, certamente não é nos escaninhos da Justiça do Trabalho que, repise-se, não tem atuado nas hipóteses do art. 149 do Código Penal por se entender, que, embora de forma anacrônica, tal delito mesmo quando decorrente da relação de trabalho ainda permanece na seara da Justiça Federal, por força do disposto no art. 109, IV, V-A e VI, da CF.

            A atuação cível do MPT, na área trabalhista, tem sido suficiente para debelar o problema? Como resposta, se vê o constante agigantamento do número de ações trabalhistas, a multiplicação e o desdobramento das fraudes, cada vez mais engenhosas no que concerne à precarização das relações de trabalho e frustração de direitos da massa trabalhadora. Administradores públicos criando formas tergiversas e esdrúxulas de contratação, mesmo mediante terceirização e quarteirização, visando a evitar o vínculo com o órgão e, por conseguinte, o concurso público. Ainda, o encerramento de atividades de pessoas jurídicas constituídas com o fito de burla de direitos sociais e o desaparecimento dos sócios geram a impunidade na área trabalhista e a insuficiência das condenações pecuniárias: sentenças fadadas à inexeqüibilidade.

            O que resta desse resultado é o sentimento de impunidade, pela ausência (não por previsão legal, mas factual, diante da inexistência de conhecimentos específicos dos demais ramos de direito sobre as fraudes na relação de trabalho) de uma forma repressiva (criminal) que atinjam os infratores exatamente naquilo que eles tiram dos seus empregados: a liberdade - mesmo quando a conduta jurisdicional (Judiciário Trabalhista) reconhece a ocorrência do fato jurídico.

            Daí a premência de se definir de uma vez por todas, com base na Emenda Constitucional nº 45/05, e em respeito ao princípio da unidade de convicção, a competência criminal (na negativa de liminar da ADI, pelos motivos expostos) da Justiça do Trabalho, a fim de expugnar da realidade fática o sentimento de impunidade e fazer prevalecer, como deve ser todas as decisões calcadas na competência absoluta, a soberania das decisões judiciais trabalhistas proferidas pela Justiça do Trabalho.

            Se vale a lembrança, a LOMPU prevê mais de vinte instrumentos de atuação do Ministério Público da União. Por força de restrição da competência da Justiça do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho tinha apenas dois: a ação civil pública e a ação civil coletiva. Não é preciso muita digressão para se concluir pela absoluta insuficiência destes dois instrumentos para debelar as múltiplas lesões ao ordenamento jurídico social. Urge, pois, consagrar a competência criminal da Justiça do Trabalho para que ela possa acolher o INSTRUMENTO DE ATUAÇÃO POR EXCELÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO, que é a AÇÃO PENAL.

Assuntos relacionados
Sobre os autores
João Humberto Cesário

Juiz titular da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT), doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino, mestrando em Direito Ambiental, professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual do Trabalho

José Eduardo de Resende Chaves Júnior

doutor em Direitos Fundamentais pela Universidad Carlos III de Madrid, juiz do Trabalho em Belo Horizonte (MG), vice-presidente da Rede Latino-americana de Juízes

Viviann Rodriguez Mattos

procuradora do Trabalho na PRT 2ª Região (São Paulo), mestre em Direitos Econômicos Especiais pela Universidade Ibirapuera (UNIB), especialista em Interesses Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, mestranda em Direito Administrativo pela PUC/SP.

Marcelo José Ferlin D'Ambroso

Procurador do Trabalho da 12ª Região (Santa Catarina), pós graduado em Trabalho Escravo pela Faculdade de Ciência e Tecnologia da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CESÁRIO, João Humberto ; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo Resende et al. Comentários à ADI nº 3684:: em defesa da competência criminal da Justiça do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1020, 17 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8238. Acesso em: 18 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos