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Direito fundamental à razoável duração do processo

28/04/2006 às 00:00
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O Estado, no início, não detinha poder suficiente para ditar normas jurídicas, sendo-lhe, portanto, impossível imiscuir-se na vida do particular para garantir a satisfação de seus interesses. Nessa época, a justiça era efetivada pelo próprio interessado através da força. Contudo, com o surgimento do Estado soberano [01], a autotutela foi retirada dos cidadãos que, com a instituição do poder jurisdicional, passaram a se submeter ao comando estatal [02] para dissolução do conflito. (ARENHART; MARINONI, 2004, p. 29).

Tem-se, aí, a jurisdição que se consubstancia na função estatal "destinada a solução imperativa de conflitos e exercida mediante a atuação do direito em casos concretos." (DINAMARCO, 2005, v. I, p. 330).

É, portanto, através do exercício do poder jurisdicional que o Estado mantém a ordem jurídica estável e, até certo ponto, satisfaz as pretensões de seus jurisdicionados [03].

Essa atuação estatal encontra-se permeada por diversos princípios que devem nortear a atuação do legislador e do intérprete da lei, de forma a adequá-la aos preceitos inerentes a um Estado de direito. (DINAMARCO, 2005, v. I, p. 213).

Para o propósito a que se destina o trabalho a ser desenvolvido, foram selecionados alguns princípios que, a despeito da importância de tantos outros, influenciam, de maneira precípua, a análise da razoável duração do processo.

O primeiro deles é garantia de acesso à justiça, previsto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito." (CONSTITUIÇÃO, 1988, p. 7). Nesse princípio, incutem-se todos os demais. É, para seu amplo e efetivo alcance, que os demais atuam. Para Dinamarco, tem-se, nele, o "princípio-síntese e objetivo final", ressaltando que o acesso à justiça não garante simples direito de ajuizamento de ação; assegura, de forma ampla, o acesso à uma ordem jurídica justa, onde, de fato, recebe-se "justiça". (DINAMARCO, 2005, v. I, p. 134 e 267).

Com o fito de implementar, em seu mais amplo alcance, o acesso à justiça citado, tem-se, como seus corolários, os princípios da efetividade, celeridade e instrumentalidade (dentre inúmeros outro, é bom lembrar). Em seus conteúdos, vislumbram-se os contornos de uma busca por um processo célere e, ao mesmo tempo, efetivo. A visão instrumentalista do processo no Brasil é recente e, através dela, tem-se implementado uma perspectiva de processo voltado para a busca de resultados, enfatizando-se seu caráter instrumental "cuja utilidade é medida em função dos benefícios que possa trazer para o titular de um interesse protegido pelo ordenamento jurídico material". (BEDAQUE, 2003, p. 15). Aliada à instrumentalidade, surge a efetividade que "constitui expressão resumida da idéia de que o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-político-jurídica, atingindo em toda a plenitude todos os seus escopos institucionais." (DINAMARCO, 1998, p. 270).

A conjugação de ambos oferece toda a fundamentação necessária à efetiva implementação do conceito de "razoável duração do processo", razoabilidade essa que deve ser encarada tanto sob o prisma da celeridade, quanto da efetividade da decisão. De nada adiantaria pronunciamento judicial célere porem ineficaz. Ao julgador competirá, sempre, atentar-se para as peculiaridades inerentes à tutela pleiteada, garantindo, assim, maior amplitude à eficácia de sua decisão [04].

De outro turno, a instrumentalidade, efetividade e celeridade bravamente defendidas não podem obstaculizar a concretização da segurança jurídica. "Tanto é inaceitável um processo extremamente demorado como aquele injustificadamente rápido e precipitado, no qual não há tempo hábil para produção de provas e alegações das partes, com total cerceamento de defesa." (HOFFMAN, 2006, p. 41).

Há que se ajustar, nessa ponderação, uma harmonia entre os princípios de modo a alcança a efetividade e celeridade sem injustificado prejuízo à segurança jurídica (contraditório e ampla defesa).

Ocorre que optando o sistema Jurídico por dar prestígio ao ideal da celeridade, tomando medidas tais como redução de possibilidade e/ou número de recursos e diminuição dos prazos processuais, não se estaria a prestigiar a segurança.

Por outro lado, prestigiando-se a segurança, prevendo-se, por exemplo, a possibilidade de variados recursos contra as decisões judiciais, acaba-se por acarretar a morosidade processual, ainda mais neste país onde estão os Tribunais abarrotados de recursos aguardando julgamento.

Pode-se dizer, portanto, que a solução do processo em prazo razoável é uma solução intermediária, que busca encontrar um ponto de equilíbrio entre os ideais segurança e celeridade. (ZANFERDINI, 2003, p. 15)

Não é difícil vislumbrar, até aqui, a imperiosa necessidade de se institucionalizar, no seio do Judiciário, a necessidade de um processo célere e efetivo. A espera, às vezes, por décadas, de solução para conflitos há muito instaurados não pacifica a sociedade; ao contrário, incute-lhes a crença de que suas mazelas não merecem o devido respeito e atenção do Estado.

Como o Estado tem funções essenciais perante sua população, constituindo síntese de seus objetivos o bem-comum, e como a paz social é inerente ao bem-estar a que este deve necessariamente conduzir (tais são as premissas do welfare State), é hoje reconhecida a existência de uma íntima ligação entre o sistema do processo e o modo de vida da sociedade. [...]. Ignorar as insatisfações pessoais importaria criar clima para possíveis explosões generalizadas de violência e de contaminação do grupo, cuja unidade acabaria por ficar comprometida. Como vem sendo dito, a litigiosidade contida é perigoso fator de infelicidade pessoal e desagregação social (Kazuo Watanabe) e por isso constitui missão e dever do Estado a eliminação desses estados de insatisfação. [...]. Mas a experiência mostra também que, apesar de contrariado, o litigante vencido tende a aceitar a solução de seus conflitos com sofrimento menor que o decorrente das instabilidades inerentes à indefinição. (DINAMARCO, 2005, v. I, p. 146-147).

Não é certo, contudo, afirmar que decisão célere é medida certa para pacificação. Não haverá paz social se o pronunciamento havido não estiver "cercado" por mínimas garantias inerentes à segurança jurídica (contraditório, ampla defesa e necessária produção de provas).

Não se pode olvidar, nesse particular, a existência de dois postulados que, em princípio, são opostos: o da segurança jurídica, exigindo lapso temporal razoável para tramitação do processo, e o da efetividade do mesmo, reclamando que o momento da decisão final não se procrastine mais do que o necessário, obtendo-se um equilíbrio destes dois regramentos – segurança/celeridade – emergirão as melhores condições para garantir a justiça no caso concreto, sem que, assim, haja diminuição no grau de efetividade da tutela jurisdicional. (TUCCI, 1992, p. 73)

A harmonia principiológica é possível e necessária. Coadunam-se os princípios para que a tutela jurisdicional alcance sua efetividade, de forma célere, sem prejuízo de outras garantias fundamentais.

A pacificação do conflito advirá, portanto, da efetividade da tutela. Efetividade essa que se encontra intimamente ligada à razoável duração do processo (não se pode desprezar, por óbvio, as demais garantias já citadas). Considerando-se a tutela efetiva como direito fundamental, não há como negar, à duração do processo, essa mesma característica. Ainda mais quando seu teor encontra-se incrustado no texto constitucional.

Tal direito não poderia deixar de ser pensado como fundamental, uma vez que o direito à prestação jurisdicional efetiva é decorrência da própria existência dos direitos e, assim, a contrapartida da proibição da autotutela. O direito à prestação jurisdicional é fundamental para a própria efetividade dos direitos, uma vez que esses últimos, diante das situações de ameaça ou agressão, sempre restam na dependência da sua plena realização. Não é por outro motivo que o direito à prestação jurisdicional efetiva já foi proclamado como o mais importante dos direitos, exatamente por constituir o direito a fazer valer os próprios direitos. (MARINONI, 2004, p. 8-9).

Essa essencialidade do direito à prestação jurisdicional efetiva volta-se ao legislador e ao juiz que devem dar atendimento a tal garantia. De um lado, instituindo diplomas legais que possibilitem a máxima eficácia das decisões judiciais e, de outro, com decisões que, de fato, alcancem, de forma eficaz, a raiz do conflito suscitado de forma a solucioná-lo trazendo paz aos litigantes (não obstante a evidente insatisfação de uma das partes com o resultado da demanda). "[...] o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva é dirigido contra o Poder Público, mas repercute sobre a esfera jurídica das partes." (MARINONI, 2004, p. 37).

A discussão trazida a lume de nada valeria se não fosse possível apresentar alternativas para dar efetivo implemento à garantia da razoável duração do processo. É apontando-se os problemas que se inicia a busca pela solução.

Sabe-se, por certo, que a duração de um processo (seja de qual natureza for), no Brasil, ultrapassa os limites da razoabilidade e, a fim de se mitigar os efeitos desse conhecido lapso temporal, foram criadas medidas que ajudam a contornar os inequívocos prejuízos que advém da demora citada.

Contudo, não devemos nos esquecer de que a marcha natural do processo até a concessão da tutela não pode ser afoita e precipitada, bem como que a mudança constante da lei e da própria jurisprudência causa igual preocupação e insegurança ao jurisdicionado e ao próprio profissional do direito, devido à instabilidade jurídica que cria. (HOFFMAN, 2006, p. 130).

As medidas criadas são, de fato, necessárias; são tutelas que buscam resguardar os efeitos da prestação que ao final será concedida, porém, em razão da urgência do provimento, não pode aguardar todo o trâmite processual para que se veja protegida. (THEODORO JUNIOR, 1998, p. 369).

O Poder Judiciário deverá passar por profunda reforma para, de fato, atender a todos os anseios da sociedade no que tange ao prazo para apreciação definitiva de uma demanda. As medidas paliativas, em que pese auxiliem sobremaneira, não é a solução definitiva. A necessidade de sua completa reestruturação é premente: modernização, mais juízes, mais funcionários, melhores treinamentos [05]. Não há milagre. Há, sim, interesse do Estado em, de fato, prestar a tutela jurisdicional que lhe compete, de forma efetiva e célere. Na brilhante lição de J.J. Calmon de Passos, "os gigantes de ontem só nos são úteis se permitirem que, subindo em seus ombros, possamos ver além do que eles foram capazes de vislumbrar." (PASSOS, 2003, p. 100).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

01"A soberania é o poder inerente ao Estado, quer dizer, à organização de todos os cidadãos para fins de interesse geral." (CHIOVENDA, 1998, v. 2, p. 9).

02 Calamandrei preleciona que "O Estado, cujo fim fundamental é a preservação da ordem na sociedade, regulamenta para tal objeto a convivência dos co-associados estabelecendo o direito objetivo, isto é, as normas às quais os particulares devem, em suas relações sociais, ajustar sua conduta." (CALAMANDREI, 1999, v. I, p. 96).

03 Cândido Rangel Dinamarco ressalva que, no direito processual moderno, a prestação da tutela deve se voltar às pessoas e não aos direitos, "podendo ser dada a um dos litigantes precisamente para negar que existam direitos e obrigações entre ele e o adversário." Por tal razão, há que ser superado o conceito de "processo civil do autor", visto que, atualmente, ele se presta a pacificar o conflito (processo civil de resultados), "dando tutela a quem tiver razão." (DINAMARCO, 2005, v. I, p. 126).

04"O saber pragmático exigido pela nova racionalidade jurídica pressupõe o conhecimento das situações concretas para, daí sim, extrair o máximo da regra." (CAMPILONGO, 2002, P. 40).

05"Para tornar a justiça mais eficaz, depende-se, insistimos, de reformas da organização judiciária e da legislação e de investimentos tecnológicos, culturas e estruturais.

Por certo não bastará a inserção nominal do prazo razoável, que, ao que tudo indica, será apenas mais uma garantia constitucional inoperante." (ZANFERDINI, 2003, p. 26).

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Sobre a autora
Andréa Bueno Magnani

advogada em Brasília (DF), pós-graduanda em Direito Processual Civil pela UniDF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGNANI, Andréa Bueno. Direito fundamental à razoável duração do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1031, 28 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8298. Acesso em: 3 mai. 2024.

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