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A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho

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2.Aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito do Trabalho

Analisada a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica em geral, podemos ingressar em nosso tema específico, qual seja, a aplicabilidade da despersonalização ao Direito do Trabalho.

Trata-se de questão de intenso interesse prático e ainda amplamente debatida, porquanto não se alcançou acordo quanto aos seus pontos principais, nem em sede de doutrina, nem no âmbito jurisprudencial.

Ainda assim, essa teoria vem sendo largamente aplicada às demandas trabalhistas, em nome da proteção ao obreiro e para garantir a efetividade da prestação jurisdicional.

Veremos que na seara trabalhista, a disregard doctrine é empregada de uma maneira bastante flexível, pelas próprias características deste ramo do Direito, porém, deve-se atentar para que essa "flexibilidade" não venha a ignorar toda a construção da separação entre a personalidade dos sócios e a do ente social.

Na prática, tem-se operado a superação da personalidade jurídica indiscriminadamente, por vezes quando a empresa dispõe de bens para adimplir os débitos oriundos do contrato de trabalho. Tal procedimento leva à insegurança jurídica, posto que os sócios podem ter seu patrimônio alcançado mesmo gozando a pessoa jurídica de plena saúde financeira.

Pode-se afirmar que contribui para o desvirtuamento na aplicação da disregard doctrine a ausência de disposição normativa explícita a seu respeito na legislação trabalhista, embora haja autores para os quais resta clara a existência de fundamento legal próprio no texto consolidado.

Suzy Cavalcante Koury, [39] por exemplo, entende que o art. 2º, §2º, da CLT, [40] forneceria a base para a superação da personalidade societária na esfera justrabalhista. Pensamos diversamente, vez que tal comando normativo consagra, tão somente, hipótese de responsabilidade solidária de empresas relacionadas entre si.

Corroboramos, assim,com a tese de Alexandre Couto e Silva [41], para quem o artigo em tela não se refere à desconsideração por três motivos:

primeiro, porque não se verifica a ocorrência de nenhuma hipótese que justifique sua aplicação como fraude ou abuso; segundo, porque reconhece e afirma a existência de personalidades distintas; terceiro, porque trata-se de responsabilidade civil com responsabilização solidária das sociedades pertencentes ao mesmo grupo. A existência do grupo econômico por si só não justifica a desconsideração da personalidade jurídica (...)

Por seu turno, Adriana Carreira Calvo [42] vislumbra, além do já mencionado, outros artigos no mesmo diploma legal, como fundamentos normativos para a desconsideração no Direito do Trabalho. Seriam eles os arts. 9º [43], 10 [44] e 448 [45]. Parece-nos, contudo, que igualmente não lhe assiste razão.

Com efeito, os dispositivos em questão não estatuem, de forma direta, uma positivação da teoria da desconsideração em sede trabalhista, nos moldes existentes no Direito do Consumidor e no Direito Civil. No entanto, ao tratar de questões diversas, porém conexas, fornecem supedâneo para uma aplicação da disregard por outros meios.

Em verdade, tais artigos consistem em desdobramentos do princípio protetivo, princípio este, que por procurar prover ao obreiro uma superioridade jurídica como forma de equilibrar sua relação com o empregador, deve fornecer-lhe não apenas as vias necessárias para garantir seus direitos, mas também os mecanismos aptos a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional.

Revela-se, portanto, tal princípio, diretamente ligado ao intento de coibir fraudes aos direitos trabalhistas, constituindo-se na mais importante fonte legitimadora do uso da superação da personalidade jurídica no Direito do Trabalho.

Entendemos, assim, que não existe previsão legal específica que trate da desconsideração no bojo da Norma Consolidada, pelo que, faz-se necessário, lançar mão das fontes subsidiárias do Direito, para a configuração desta teoria em sede justrabalhista.

Na ausência de norma expressa, procuraram os profissionais do Direito Laboral, como já dito, outros meios de se valer da desconsideração da pessoa jurídica, buscando ampliar a efetividade do processo. Um dos mais utilizados, por bom tempo, foi a incidência direta, por analogia, do art. 28 do Código do Consumidor, [46] solução apontada por vários escritores, [47] e largamente empregada pela jurisprudência. [48]

A analogia empreendida mostrava-se correta, dada a ausência de norma específica na CLT, e a própria afinidade entre o Direito do Trabalho e o Direito do Consumidor, enquanto ramos precipuamente destinados à proteção de sujeitos de direito hipossuficientes, apenas diferenciados pelo lapso temporal existente entre eles, e pelo fato de se inserirem na tutela, respectivamente, de direitos humanos de segunda e terceira geração. [49]

Ademais, a excelência da redação do referido Código, neste particular, emprestava trato bastante adequado à matéria e recomendava a continuidade da utilização do art. 28 nas lides trabalhistas.

Contudo, com o advento do Código Civil de 2002, operou-se certa alteração na matéria, que forçosamente impeliu os estudiosos trabalhistas a repensarem o fundamento positivo da desconsideração em sua área. Sucede que o novo Diploma Privado, como já visto, tratou da matéria expressamente, em seu art. 50. [50]

Ora, é conhecimento basilar do Direito do Trabalho o de que a ele se aplicam, subsidiariamente, os preceitos civilistas, quando houver lacuna nas fontes justrabalhistas principais; [51] assim, havendo o art. 50, na parte geral do Código Civil, automaticamente passaria este a reger a desconsideração da personalidade jurídica na área trabalhista.

A questão que se nos apresenta é que o Código Civil, ao dispor sobre a superação da personalidade, o fez de forma bem menos precisa que o Código do Consumidor. Neste sentido, é instrutiva e detalhada a lição de Suzy Cavalcante Koury [52]:

(...) em que pese o avanço representado pelo artigo 50 do Novo Código Civil, pois não havia regra geral permitindo a desconsideração da personalidade jurídica no nosso ordenamento jurídico, o mesmo merece restrições, na medida em que elenca como hipóteses de aplicação apenas o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, além de não cuidar da possibilidade de sua aplicação de ofício pelo juiz.

Destarte, os especialistas do Direito do Trabalho passam a se confrontar com a necessidade de encontrar solução para o seguinte problema: como continuar a utilizar a desconsideração, com sede legal diversa, sem alcançar resultados menos satisfatórios.

Cremos que a melhor solução é adotar, como regra jurídica primórdia, o referido art. 50 do Código Civil. Casos haverá em que será suficiente invocá-lo, apenas, e obteremos sem problema a satisfação do crédito diretamente junto aos sócios.

Porém, como já sinalizado por Suzy Koury, no excerto acima transcrito, muitos são os claros em que incorre o art. 50. Frise-se que não são proibições, mas lacunas, insuficiências, pontos em que o legislador deveria ter dito mais e não o disse, sem contudo vedar. Nessas situações, incidirá, por analogia, o art. 28, a ampliar as possibilidades do juiz trabalhista, mesmo porque o dispositivo do art. 50 não pode ser considerado meramente taxativo. [53]Nesse sentido, registre-se, é o ensinamento de José Affonso Dallegrave Neto. [54]

Postas estas considerações, estamos aptos a traçar, com mais detalhe, as situações em que consideramos cabível a desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho.

Adotaremos, em virtude de existir uma maior semelhança quanto ao caráter protecionista, os pressupostos indicados no art.28 do Código de Defesa do Consumidor.

Este artigo, além das hipóteses acolhidas pelos demais ramos do direito que são abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, ou violação dos estatutos ou contrato social, enumera expressamente outras que são empregadas exclusivamente ao Direito Consumerista, e que, conforme exposto acima, são estendidas ao Direito Laboral, quais sejam: falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração e, consoante disposto no §5º, sempre que a personalidade jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Socorrer-nos-emos, para a definição dos pressupostos comuns, dos estudos desenvolvidos em outros ramos do Direito, sobretudo do direito tributário, que tão bem tratou da matéria, em razão da relevância que ela assume na execução dos tributos.

Inicialmente, tomaremos por abuso de direito, primeira causa de desconsideração indicada no artigo em análise, a definição fornecida por Clovis Bevilaqua [55], segundo a qual ocorre abuso de direito quando "o titular de um determinado direito subjetivo o exerce sem respeitar os interesses dos demais indivíduos e da sociedade. O exercício de um direito deve respeitar sempre a esfera jurídica de proteção dos demais indivíduos e da coletividade, do contrário, se considerará abusivo e ilícito."

De forma simplificada, Luciano Amaro ensina que a expressão "excesso de poderes" refere-se à prática de ato para o qual o terceiro não detinha poderes. [56] Partindo desta lição, temos, por ato praticado com excesso de poderes, aquele realizado pelo terceiro (gerente, diretor ou representante), em nome da sociedade, que extrapole os limites dos poderes a ele instituídos para o exercício de suas respectivas funções.

O ato constitutivo é que estabelece os poderes a serem concedidos ao administrador, que irá, a partir de então, agir em nome da sociedade. Indica o documento, ainda, as diretrizes a serem seguidas na administração desta sociedade, de modo que, qualquer ato que contrarie disposição expressa sua, pode ser encarada como violação.

Referiu-se o Código do Consumidor a ambas as espécies de ato constitutivo da sociedade, estatuto e contrato social, com vistas a abarcar tanto as sociedades civis, quanto as comerciais.

A prática de ato para o qual não detinha poderes, por parte do administrador, poderia parecer, à primeira vista, prática de ato com excesso de poderes, no entanto, qualquer ato que extrapole os poderes concedidos pela sociedade, por meio do ato constitutivo, a seu representante, configura contrariedade do estatuto ou contrato social. [57]

Em verdade, como destaca o professor Luciano Amaro, nem sempre é clara a distinção entre excesso de poderes e infração de lei, estatutos ou contrato social, tornando-se difícil ao aplicador, em muitos casos, verificar em qual possibilidade agiu o gerente, diretor ou representante da sociedade, para que seja considerado responsável pela obrigação. Assim ensina o autor:

Muitas hipóteses se enquadram em mais de uma dessas situações: um ato praticado com excesso de poderes pode estar violando, a um só tempo, o estatuto e a lei; um ato ilegal certamente não estará sendo praticado no exercício de poderes regulares. Para que a responsabilidade se desloque do contribuinte para o terceiro, é preciso que o ato por este praticado escape totalmente das atribuições de gestão ou administração, o que freqüentemente se dá em situações nas quais o representado ou administrado é (no plano privado), assim como o Fisco (no plano Público), vítima de ilicitude praticada pelo representante ou administrador. [58]

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Infração de lei, por sua vez, consistiria na contrariedade a dispositivo legal, mais especificamente de legislação civil e comercial, já que se encontra próxima às expressões "excesso de poder" e "violação de lei, contrato social e estatuto", típicas do direito societário, que é regulado por estes conjuntos legais. [59]

Analisados os pressupostos da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica comuns a todas as áreas do direito, passaremos aos requisitos específicos do Direito do Consumidor, perfeitamente cabíveis no Direito do Trabalho, consoante demonstrado supra.

Embora controvertida nos demais ramos do Direito, na seara consumerista, e, por inferência no campo trabalhista, a má administração é causa suficiente para a desconsideração do ente societário, por determinação expressa do artigo sub examine, quando este permite a despersonalização por falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração e sempre que a personalidade jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

É este o mais claro reflexo do princípio da proteção ao hipossuficiente, pois basta o simples inadimplemento por insuficiência patrimonial (ficando, nesse caso, afastados a fraude e abuso de direito), para que os bens dos sócios sejam atingidos.

Explica-se a admissão desse pressuposto no campo justrabalhista em razão de um outro princípio, o da alteridade, norteador das relações de emprego, segundo o qual os riscos da atividade econômica desempenhada pelo empregador não podem ser transferidos aos empregados.

De qualquer sorte, mesmo em face de tão ampla utilização da despersonalização, deve se ter em mente que esta teoria não pode ser utilizada de forma irrestrita. É corriqueiro atacar-se o patrimônio dos sócios quando não localizados bens a serem penhorados na sede da empresa, mesmo existindo patrimônio suficiente à integralização do valor devido, ou como é mais comum, pela insuficiência de fundos na conta corrente da sociedade, situação em que se determina seja procedido o bloqueio da conta dos sócios.

Recorrente é, ainda, a situação em que sócios que já se retiraram da sociedade sofrem constrição de seu patrimônio pelos débitos trabalhistas com empregados que sequer integravam o quadro funcional da empresa quando de sua participação. [60] É patente, nestes casos, a irregularidade da despersonalização.

Antes da aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, como bem destaca Suzy Koury [61], devem ser empreendidos todos os esforços possíveis no sentido de o próprio ente societário responder, com seu patrimônio, pelas dívidas trabalhistas. Faz-se indispensável, pois, na configuração das hipóteses de aplicabilidade, serem tomadas todas as precauções possíveis para se certificar de que se está atacando os bens daqueles que realmente devem responder pelas verbas trabalhistas, ou seja, os sócios integrantes do atual contrato social.

Além disso, devem ser respeitados o contraditório, a ampla defesa e a coisa julgada, para que, ao se assegurar o direito do trabalhador, não se esteja violando garantias constitucionais dos sócios.

Deste modo, conclui-se que a disregard doctrine, apesar do caráter indispensavelmente amplo e protecionista que assume na execução trabalhista, como em qualquer área do Direito, consiste em artifício apenas supletivo para a garantia do débito para com o obreiro, de sorte que sua aplicação deve se dar de forma conscienciosa, após exaurido o patrimônio da sociedade e mediante cuidadosa análise da presença de seus pressupostos.

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Sobre a autora
Ticiana Benevides Xavier Correia

advogada em Recife (PE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREIA, Ticiana Benevides Xavier. A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1100, 6 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8589. Acesso em: 24 abr. 2024.

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