O efeito regressivo no recurso de apelação, nos processos afetos ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

Leia nesta página:

O juízo de retratação na apelação, art.198, VII do ECA, se trata de pronunciamento irrecorrível porque ausente do rol do art. 1.015 do CPC.

Cassio Scarpinella Bueno1, quando da interposição de recursos, ensina a ocorrência dos seguintes efeitos: (i) obstativo (impedir a formação da coisa julgada, formal ou material); (ii) suspensivo (impedir o início da eficácia da decisão recorrida ou prolongar seu estado de ineficácia); (iii) regressivo (mais comumente chamado de efeito modificativo é a possibilidade de o próprio prolator da decisão julgar o recurso, retratando-se, no todo ou em parte, alterando a decisão recorrida); e (iv) diferido (hipótese em que a admissibilidade do recurso depende da interposição e do conhecimento de outro recurso e que, no CPC de 2015, parece se restringir ao que é mais conhecido como recurso adesivo).

Em regra, o juiz não pode se retratar da sentença proferida, exceto para corrigir, de ofício ou a requerimento, inexatidões materiais ou erros de cálculo, ou por meio de embargos de declaração, nos termos do disposto no art. 494 do CPC.

Como dito, denomina-se efeito regressivo a faculdade que alguns recursos atribuem ao órgão a quo de reconsiderar a decisão atacada. Por excelência, os recursos dotados desse efeito são o agravo de instrumento, o agravo interno e o agravo no recurso extraordinário ou no recurso especial. Por conseguinte, caso haja a reconsideração, o recurso fica prejudicado.

A apelação, em regra, não permite que o juiz se retrate, contudo, o Código de Processo Civil prevê três hipóteses expressas de possibilidade de retratação por ocasião da apelação, no prazo de 5 dias: a) indeferimento da petição inicial, art. 331, caput, do CPC; b) improcedência liminar do pedido, art. 332, § 3º, CPC e; c) sentença sem resolução do mérito, art. 485, § 7º, CPC.

Quer dizer, a apelação só tem efeito regressivo quando houver previsão legal nesse sentido. Logo, o juízo sentenciante só pode se retratar de sua sentença em razão da interposição de apelação quando houver expressa previsão em lei.

Desse modo, a possibilidade de ampla retratação constitui inovação, na esteira do prestígio ao “diálogo” como pedra de toque do novo processo civil brasileiro (arts. 7º, 9º e 10 do CPC).

Trazendo para a realidade recursal disposta no Estatuto da Criança e do Adolescente, vejamos como é tratada a questão da retratação no caso de apelação ou agravo de instrumento, senão vejamos:

Art. 198. Nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, inclusive os relativos à execução das medidas socioeducativas, adotar-se-á o sistema recursal da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), com as seguintes adaptações.

[...]

VII - antes de determinar a remessa dos autos à superior instância, no caso de apelação, ou do instrumento, no caso de agravo, a autoridade judiciária proferirá despacho fundamentado, mantendo ou reformando a decisão, no prazo de cinco dias;

VIII - mantida a decisão apelada ou agravada, o escrivão remeterá os autos ou o instrumento à superior instância dentro de 24 (vinte e quatro) horas, independentemente de novo pedido do recorrente; se a reformar, a remessa dos autos dependerá de pedido expresso da parte interessada ou do Ministério Público, no prazo de 5 (cinco dias), contados da intimação.

Com efeito, percebe-se que o ECA, ao contrário do CPC, possui as suas especificidades e, neste lado, adota o juízo de retratação como diretriz em todos os seus recursos de apelação e agravo.

Assim sendo, tenho que as disposições do Novo Código de Processo Civil não tiveram o condão de revogar, ainda que tacitamente os dispositivos da Lei 8.069/90 que trata do juízo de retratação no recurso de apelo.

Contudo, a parte do inciso que se refere à interposição do agravo de instrumento perante o juízo a quo estaria prejudicada, em vista da reformulação dos dispositivos deste recurso, nos moldes do art.1018, § 1º, do CPC.

Desta forma, o juízo de retratação, nas demandas que versem sobre os interesses afetos às crianças e adolescentes, aquelas que se enquadram na competência do art. 148, caput, do ECA, e seu parágrafo único, se constitui obrigatório no recurso de apelação e não decorre da recorribilidade da sentença, mas da efetiva impugnação.

Em vista disso, o próprio juiz poderá reformar a sua sentença ou decisão, no caso, no prazo de 05 (cinco) dias, antes de determinar a remessa dos autos à superior instância, por meio de despacho fundamentado. Todavia, no caso de manutenção da decisão apelada, o escrivão remeterá os autos à superior instância dentro de 24 (vinte e quatro) horas. Caso haja a reforma da decisão, a remessa dos autos dependerá de pedido expresso da parte interessada ou do Ministério Público, também no prazo de 05 (cinco) dias. Entretanto, não há necessidade de se retornar ao procedimento de interposição.

Percebe-se que a ideia é permitir que o próprio Juízo recorrido, à luz das razões e contrarrazões de recurso, tenha uma nova chance para rever e quiça modificar sua decisão.

De mais a mais, é importante que o despacho de manutenção ou reforma da decisão seja, de fato, devidamente fundamentado, como exige o dispositivo, bem como o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, não se limitando a ratificar a decisão anterior “por seus próprios fundamentos”, como não raro se vê na prática2.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Além disso, o juízo de retratação é único, isto é, o magistrado pode se retratar da mesma decisão uma única vez, pois é da própria lógica do sistema recursal do duplo grau de jurisdição, no qual a decisão deve ser revista somente mais uma vez, pois caso contrário a segurança jurídica ficaria prejudicada pelos inúmeros recursos interpostos contra a mesma decisão.

Doutra banda, a doutrina questiona se, manejada apelação intempestiva, poderá o juiz examinar a admissibilidade do recurso ao menos para que possa formular seu juízo de retratação, porquanto, no direito atual, como mandamento caberia apenas a instância ad quem, tal análise.

Luiz Guilherme Marinoni considera que, no caso de intempestividade da apelação interposta, deve-se outorgar ao juiz de 1º grau a prerrogativa de examinar esse defeito, pelo menos para não proceder ao juízo de retratação. Visto que sendo intempestivo o recurso, a retratação violaria a preclusão pro judicato da sentença (art. 494 do CPC), fazendo com que o juiz atuasse fora dos limites de sua atribuição. Por isso, é lógico que a análise de admissibilidade do recurso deve ser feita pelo menos para que o juiz possa exercer essa faculdade que a lei lhe atribui.

Marinoni e Arenhart assim explicam:

Essa análise de admissibilidade, evidentemente, jamais poderá inviabilizar a tramitação do recurso, tendo consequências apenas para o exercício do poder de retratação outorgado pelo código. É certo que a intempestividade do recurso deve implicar a inviabilidade do juízo de retratação. Porém, parece também correto que a falta de qualquer outro pressuposto recursal deve ser considerado pelo juízo a quo, ao receber a apelação. A análise, como dito, não tem por objetivo negar seguimento ao recurso, mas, sim, inviabilizar o exercício do juízo de retratação sobre a decisão de indeferimento da inicial. Por outras palavras, verificando o juiz recorrido que falta pressuposto recursal, haverá simplesmente de processar a apelação, dando-lhe o encaminhamento oportuno ao tribunal, sem, todavia, exercer qualquer juízo de retratação”3.

Concluem os autores que “Por uma questão de lógica, se o recurso não é admissível, a sentença proferida opera preclusão pro judicato, o que impediria que o juiz a revisasse. Como só tem cabimento a reapreciação da sentença provocada em razão da interposição (válida) de recurso de apelação, então só se esse recurso for admissível é que se pode cogitar do juízo de retratação”.

Por conseguinte, entendemos que o pronunciamento do juiz que analisa o juízo de retratação, se trata de decisão irrecorrível porque ausente do rol do art. 1.015 do CPC (cabimento do agravo de instrumento), havendo preclusão lógica para alegá-la em preliminar de apelação ou nas contrarrazões desse recurso (art. 1.009, § 1º, do Novo CPC).


 

Acrescente-se ainda que, em regra, para cada tipo de pronunciamento judicial cabe uma, e somente uma, espécie de recurso que o legislador previu como apropriado para impugná-lo. Além disso, quando há interposição de dois recursos pela mesma parte e contra a mesma decisão, apenas o primeiro poderá ser submetido à análise, em face da preclusão consumativa e do princípio da singularidade ou unirrecorribilidade recursal, que proíbem a interposição simultânea de mais de um recurso.


 

De mais a mais, como inserto no inciso VII, do art. 198 do ECA, a autoridade judiciária proferirá despacho fundamentado, mantendo ou reformando a decisão. À vista disso, conclui-se, ainda, que conforme estabelece o art. 1.001 do Código de Processo Civil “Dos despachos não cabe recurso”.


 

Por derradeiro, necessário se faz ressaltar que a ausência do juízo de retratação, previsto no art. 198, inciso VII, do ECA, consiste em mera irregularidade, incapaz de afetar a essência do processo, que tem em vista a breve solução dos interesses de menores. Ora, se no momento processual de exercer o juízo de retratação o magistrado remete os autos à instância superior, é de se considerar, por evidente, que manteve a decisão impugnada. Nesse sentido, os precedentes do STJ (AgRg no HC 574.224/AP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, sexta turma, julgado em 09/06/2020, DJe 16/06/2020; HC 181.294/MG, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, quinta turma, julgado em 18/10/2011, DJe 22/11/2011).

Nesse passo, conclui-se que o despacho proferido pelo Julgador, nos termos do art.198, VII, do ECA, deve ser enunciado de ofício e a ausência do juízo de retratação consiste em mera irregularidade, não cabendo no presente caso qualquer recurso, vez que se trata de efeito regressivo do apelo e não de decisão interlocutória.

1BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. Lei n. 13.105, de 16-3-2015. São Paulo: Saraiva, 2015.

2DIGIÁCOMO, Murillo José; DIGIÁCOMO, Ildeara Amorim. Estatuto da criança e do adolescente anotado e interpretado. 8. ed. Ministério Público do Estado do Paraná. Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente. Curitiva, 2020.

3 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil: (arts. 294 ao 333). 2. ed. Col. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

Sobre as autoras
Inês Cristina Alencar de Albuquerque Barbosa

Mestranda em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará. Graduada em Direito, pós-graduada em Direito Processual, servidora do Ministério Público do Estado do Ceará.

Narjara Soares Magalhães

Graduada em Direito, pós-graduada em Direito Público, mestre em Planejamento e Políticas Públicas, servidora do Ministério Público do Estado do Ceará.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Aprofundar o conhecimento e fomentar a discussão sobre o ECA.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos