O anormal e o patológico para fins de inimputabilidade (civil ou penal)

O anormal como discurso de controle

09/12/2020 às 22:24
Leia nesta página:

Não podemos mais permitir que o uso indiscriminado do termo "anormal" se converta em instrumento de controle daqueles que tentar alertar a sociedade para os desmandos de grupos minoritários políticos ou religiosos que querem o controle a qualquer custo.

O primeiro registro que impede fazer é que nem tudo o que é anormal é patológico. Essa, uma primeira e importante lição que precisamos aprender.

 

O anormal é apenas aquilo que não é realizado pelo indivíduo com habitualidade ou aquilo que, comumente, as pessoas não fazem.

 

Uma pessoa que faz sempre o mesmo caminho cria um hábito. Logo, o dia em que toma um caminho diferente, pode-se dizer que teve um comportamento anormal, mas não, evidentemente, patológico.

 

Muitas vezes a sociedade e, fundamentalmente, a família, solicitam a internação asilar para tratamento, todas as vezes em que o comportamento do indivíduo não os agrada ou foge das convenções estabelecidas pela sociedade conservadora.

 

É muito importante respeitar o diverso. Inúmeras circunstâncias do cotidiano tendem a revelar excessos cometidos por pessoas com interesses escusos quando apontam para um determinado comportamento rotulando-o de patológico, quando, em realidade, está-se apenas diante de um comportamento anormal no sentido de não ser corriqueiro, ou mesmo, não aceito por convicções ideológicas específicas.

 

Muitos pensadores, no passado, diante de regimes políticos totalitários e/ou ditatoriais, tiveram determinada sua internação em nosocômios psiquiátricos como forma de conter a opinião destas pessoas e, assim, calar as vozes que clamavam por liberdade.

 

Lembro-me de, em minha adolescência, ler um livro chamado Uma questão de loucura, dos escritores russos Zhores & Roy Medvedev, que estampava na capa a seguinte frase: “O depoimento-libelo de um famoso cientista russo sobre o sistema comunista de perseguição e terror político”. Em breve síntese, o livro mostra que a teoria de um cientista começou a colocar em risco as bases teórico-ditatoriais do comunismo russo. Visando refreá-lo e, assim, contê-lo e desmoralizá-lo publicamente, o Estado Russo imputou-lhe a condição de “louco” e determinou sua internação em um hospital psiquiátrico. Assim se desenrola toda a trama.

 

A questão é que devemos ter muita cautela no concernente às alegações de loucura, insanidade, doença mental, doente mental, louco, dentre outras designações.

 

Somente uma avaliação técnica, por médico especialista e, acima de tudo, imparcial, pode conduzir a um diagnóstico preciso. Diante do quanto clinicamente constatado é possível tomar-se as medidas legais cabíveis, tanto em esfera penal, quanto na esfera civil.

 

Do ponto de vista do Direito Penal, a pessoa clinicamente portadora de doença mental é considerada inimputável, nos termos do Art. 26 do Código Penal, ou seja, ela não pode responder por seus atos, uma vez que, no momento em que o crime foi praticado, a mesma não tinha consciência do caráter ilícito de seu comportamento e nem condições de se autodeterminar.

 

Isso não significa que nada sofrerá do ponto de vista da penalogia, mas que, em razão do seu peculiar quadro clínico, não terá condições de cumprir uma pena privativa de liberdade. As penas privativas de liberdade possuem um caráter fundamentalmente retributivo, ou seja, visam retribuir com o mal da pena, o mal do injusto praticado contra uma pessoa da coletividade, ou mesmo contra esta.

 

Pessoas doentes, por uma questão humanitária, necessitam de tratamento. Por essa razão, estas pessoas são submetidas à medida de segurança que consiste em tratamento médico-hospitalar ou ambulatorial, nos termos do Art. 96 do Código Penal, que giza: Art. 96. As medidas de segurança são: I - Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado; II - sujeição a tratamento ambulatorial. Parágrafo único: Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta.

 

Assim, em um primeiro momento, é importante ter-se em mente que medida de segurança não é pena. Neste sentido, litteris:

 

Não. A medida de segurança é tratamento a que deve ser submetido o autor de crime com o fim de curá-lo ou, no caso de tratar-se de portador de doença mental incurável, de torná-lo apto a conviver em sociedade sem voltar a delinqüir (cometer crimes)[1].

 

O doente mental que comete crime nunca será colocado em presídio. Não havendo local adequado, o Estado deve prover um local para seu tratamento. Manter o inimputável em um presídio é uma clara violação de seus direitos humanos fundamentais.

 

Entretanto, como dito, não é qualquer comportamento que pode ser taxado de patológico, mesmo sendo anormal. Uma internação não pode atender a meros caprichos. Neste sentido, eis a opinião do psiquiatra G. J. BALLONE[2], nestes termos:

 

Existe uma notória reivindicação da sociedade em geral, e da família em particular, para a reclusão e tratamento asilar das pessoas consideradas alienadas. O hospício torna-se, então, uma necessidade social para este tipo de doente mental, que nem sempre é o mesmo doente mental reconhecido pela psiquiatria. A internação é tão mais solicitada quanto maior o grau de estranheza produzido pela pessoa em seu meio.

 

Os critérios (culturais) de internação para a pessoa causadora de constrangimento e estranheza nem sempre tem levado em consideração o sofrimento denta pessoa, como acontece com as internações em outras especialidades médicas. Culturalmente a exclusão de nosso paciente do mundo dos normais prende-se, quase exclusivamente, ao aspecto comportamental. Portanto, nessa questão social da loucura o critério de diagnóstico é o ATO do paciente. Desta forma, grande parte das internações psiquiátricas tradicionais acaba atendendo muito mais a sociedade e/ou a família do que o paciente propriamente dito.

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É preciso analisar o quadro clínico global do paciente e ter em mente o real sofrimento experimentado pela pessoa que é rotulada de doente mental. Solicita-se a internação daquelas pessoas que, de alguma forma, incomodam. Confirmando este entendimento, valemo-nos, ainda, de G. J. BALLONE[3], que assim giza:

 

Na realidade, se fosse possível uma psiquiatria institucional livre e emancipada das pressões político-sociais, seriam internadas pessoas não apenas em decorrência de seus atos mas, sobretudo e principalmente, em razão de seus sofrimentos e suas limitações. Isso quer dizer que, enquanto a sociedade tem uma preocupação centrada exclusivamente no ato da pessoa, a psiquiatria se preocupa também e, predominantemente, com seus sentimentos.

 

Com frequência, as alterações emocionais e sentimentais que afetam a pessoa acabam por resultar em algum tipo de prejuízo nas condutas sociais e na realização pessoal. Não obstante, alguns dos mais sublimes e dolorosos sentimentos, como é o caso da angústia e da depressão, podem não provocar estranheza, preocupação ou sofrimento nos demais. Eles fazem sofrer apenas a pessoa.

 

Muitos pacientes deprimidos poderiam se beneficiar de uma internação psiquiátrica, mas como não incomodam acabam relegados à quase indiferença sócio-familiar. Seus atos, tímidos e retraídos, só incomodam à eles próprios. Esses pacientes apresentam uma maneira peculiar de viver e de sentir a vida, cuja compreensão evoca uma outra unidade de observação que não seja o ato; trata-se de considerar aqui o sentimento.

 

A pessoa que sofre necessita de ajuda. Isso é ponto pacífico. A internação deve ser precedida de um sério e percuciente laudo psiquiátrico. Caso contrário, as internações podem servir de instrumento de mordaça para aqueles considerados inconvenientes para o sistema social-político posto. Nesse sentido, ainda, as palavras de G. J. BALLONE, nestes termos[4]:

 

Desta forma, o conceito de Doença Mental leigo, julga a sanidade do indivíduo de acordo com seu comportamento, de acordo com sua adequação às conveniências sócio-culturais, tais como a obediência familiar, sucesso no sistema de produção, postura sexual, etc. Há, por outro lado, uma outra conceituação mais humanizada da Doença Mental e que interessa particularmente ao enfermo e ao profissional médico que o assiste. Sempre houve e continuará havendo, choques contundentes entre estas duas maneiras de entendimento da Doença Mental. Neste campo de batalha sofrem, além das vítimas envolvidas, também o profissional da saúde mental. Este estudioso da psicopatologia vê seus conceitos científicos brutalmente deturpados por interesses sócio-culturais que ultrapassam a seara de sua ciência. (sic)

 

Por essa razão é preciso um extremo cuidado com discursos sobre doença mental e distúrbios mentais, notadamente, em sociedades dominadas por influências religiosas extremistas, bem como em Estados que possuem regimes de exceção totalitários e/ou ditatoriais. A internação como forma de punição ideológica é um crime contra a natureza humana.

 

Todo extremismo é um erro e uma manifestação patológica de tentativa de se manobrar/controlar a coletividade.

 


[1] Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/presos/parte910.htm>. Acesso em: 09 dez. 2020.

[2] Disponível em: <http://psiqweb.net/index.php/psicopatologia/diagnostico-em-psiquiatria/>. Acesso em: 09 dez. 2020.

[3] Idem.

[4] Idem, ibidem. Observação: o texto encontra-se na ortografia anterior à reforma ortográfica de 2009.

Sobre o autor
Rodrigo Mendes Delgado

Advogado. Escritor. Palestrante. Parecerista. Pós-Graduado (título de Especialista) em Ciências Criminais pela UNAMA – Universidade do Amazonas/AM. Ex-presidente da Comissão e Ética e Disciplina da 68ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo por dois triênios consecutivos. Membro relator do Vigésimo Primeiro Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP pelo 3º triênio consecutivo. Autor dos livros: O valor do dano moral – como chegar até ele. 3.ed. Leme: Editora JH Mizuno, 2011; Lei de drogas comentada artigo por artigo: porte e tráfico. 3.ed. rev., atual. e ampl. Curitiba: Editora Belton, 2015; Soluções práticas de direito civil comentadas – casos concretos. Leme: Editora Cronus, 2013 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado). Personal (Life) & Professional Coach certificado pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE COACHING – SBCOACHING entidade licenciada pela BEHAVIORAL COACHING INSTITUTE e reconhecida pelo INTERNACIONAL COACHING COUNCIL (ICC). Carnegiano pela Dale Carnegie Training Brasil. Trainer Certificado pela DALE CARNEGIE UNIVERSITY, EUA, tendo se submetido às certificações Core Competence e Endorsement, 2014. (Contatos profissionais: Cel./WhatsApp +55 018 9.9103-5120; www.linkedin/in/mdadvocacia; [email protected])

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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