Reza o artigo 57 da Lei n° 11.101/05, que regula a recuperação judicial e extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária:
Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151[ [01]], 205[ [02]], 206[ [03]] da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional.
Referido artigo, como se vê, condiciona a concessão da recuperação judicial do devedor à apresentação de certidões negativas de débitos tributários. A esse respeito, Coelho (2005), ao interpretar o teor do artigo 57, refere que, se não juntadas as certidões negativas de débitos tributários, o juiz deverá simplesmente indeferir o pedido de recuperação judicial.
Inobstante o teor claro da lei, no sentido de impedir qualquer tentativa de processamento de recuperação judicial sem a quitação ou, ao menos, a demonstração de que o devedor está em dia com o Fisco (parcelamento ou qualquer outra situação que autorize a emissão de certidão negativa de débito ou certidão positiva com efeito de negativa), o ordenamento jurídico brasileiro parece ser receptivo às hipóteses em que o devedor não apresenta tal condição.
Contudo, é sobremaneira difícil demonstrar referida receptividade já que, de acordo com o artigo 4° da Lei de Introdução ao Código Civil, a própria lei deve ser a primeira referência do julgador, sendo que somente poderão ser utilizados a analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito quando a lei for omissa, o que não seria o caso, pois a norma se mostra demasiado clara ao referir que a recuperação judicial só será admitida à vista das respectivas certidões negativas de débito tributário.
No entanto, se verificado o teor do artigo 5° da mesma Lei de Introdução ao Código Civil [04], é possível a apreensão de que, a despeito da clareza solar do dispositivo legal do artigo 57 em estudo, se faz viável a flexibilização de referido comando impositivo. Isto porque já no artigo 47 da Lei n. 11.101/05 está dito que a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Não há como se conceber, pois, a possibilidade de uma recuperação judicial tomando-se como um de seus requisitos a apresentação de certidões negativas de débitos tributários. Até mesmo porque, segundo Silva (2005) as empresas
primeiramente deixam de pagar os tributos para não deixarem de honrar compromissos com os fornecedores, o que inviabilizaria, de imediato, a continuidade das atividades da empresa.
Santos (2006) também observa que os débitos tributários estão entre os primeiros a serem inadimplidos pelo empresário endividado, apontando tal situação inclusive como normal, já que o não pagamento de tributos não inviabilizaria a atividade empresarial.
Tal fato, por si só, parece autorizar que o magistrado deixe de aplicar o artigo 57 da Lei 11.101, por manifesta inconstitucionalidade, aplicando ao mesmo o "Dogma da Nulidade da lei inconstitucional, a qual tem por base que, caso o juiz venha a reconhecer que uma lei é inconstitucional, não cria um novo Estado, apenas declara a inconstitucionalidade no caso concreto" (Machado, 2005). Em outras palavras, o magistrado poderá deixar de aplicar o artigo 57 da Lei 11.101 pela via do controle difuso de constitucionalidade, que pode ser exercitado "em qualquer grau de jurisdição" (Cavalheiro, 2004, p. 30).
Considerando-se que a falência de uma empresa gera reflexos dos mais diversos é possível a verificação de incompatibilidade do artigo 57 da Lei 11.101 com vários artigos da Constituição Federal, como por exemplo, o artigo 6° que conceitua como um dos direitos sociais o trabalho. Ora, a quebra de uma empresa consiste necessariamente na extinção dos respectivos contratos de emprego e trabalho eventualmente entabulados. A sua vez, o artigo 57 da lei 11.101, ao invés de contribuir para manutenção de tais contratos, estaria a dificultar a sua própria existência, em sentido que segue trilha diametralmente oposta àquela eleita pela Carta Magna. Utilizando-se o mesmo raciocínio observar-se-ia também inconstitucionalidade do artigo 57 da Lei 11.101 com o artigo 170, "caput" e VIII, da Constituição, consagradores dos princípios gerais da atividade econômica, quais sejam, a valorização do trabalho humano e a busca do pleno emprego. Estaria arredado também o artigo 193 da Carta Magna, que refere que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.
Poder-se-á dizer, no entanto, que tendo em vista que o controle difuso de constitucionalidade possui efeitos apenas no âmbito das partes litigantes, seria impossível alegar, pela via de tal controle, inconstitucionalidades que teriam reflexos a partes não integrantes da relação processual, que no caso seriam os respectivos empregados.
Entretanto, é possível a verificação de ao menos duas inconstitucionalidades que interessam ao próprio empresário requerente da recuperação judicial.
É que o artigo 57 da Lei 11.101 parece ferir também o artigo 1°, IV da Constituição Federal, que prevê que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, dentre outros, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
O artigo 1° da Constituição Federal, ao fundamentar a existência da própria República Federativa do Brasil na valorização social do trabalho e da livre iniciativa, parece se mostrar repulsivo a qualquer providência no sentido de depreciação do valor trabalho. Aliando-se tal conclusão ao fato de que a recuperação judicial tem por um de seus objetivos a manutenção da fonte produtora (artigo 47, da Lei 11.101), o artigo 57 é mesmo inconstitucional, já que ao dificultar sobremaneira a utilização do instituto da recuperação judicial, despreza a garantia de proteção ao trabalho, a qual, segundo BARILE (apud Moraes, 2005, p. 130) "não engloba somente o trabalhador subordinado, mas também o autônomo e o empregador, enquanto empreendedor do crescimento do país". Considerando-se, como visto, que o artigo 1°, IV da Constituição Federal, ao assegurar o valor trabalho de forma indiscriminada, o faz também em relação ao empregador, não haveriam problemas em relação a eventual alegação de falta de interesse e legitimidade para argüir uma inconstitucionalidade através do controle difuso (de eficácia inter partes) já que a inconstitucionalidade ora debatida estaria a prejudicar o empresário requerente da recuperação judicial e não apenas o trabalhador terceiro interessado.
Conclui-se, assim, que é possível o agitamento do controle difuso de constitucionalidade por incompatibilidade do artigo 57 da Lei 11.101/05 com os artigos 1°, IV, 6°, 170, "caput" e VIII, 193, todos da Constituição Federal, sendo razoável o processamento da recuperação judicial mesmo sem a apresentação das respectivas certidões negativas de débitos tributários.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Publicada em 5 jan. 1988. Diário Oficial da União, p. 1 (anexo).
BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 set. 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Publicada em 9 set. 1942. Diário Oficial, p. 1.
BRASIL. Lei n. 11.101, de 9 fev. 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Publicada em 9 fev. 2005. Diário Oficial da União, p. 1. Edição extra.
BRASIL. Lei n. 5.172, de 25 out. 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Publicada em 27 out. 1966. Diário Oficial, p. 12.452.
CAVALHEIRO, K. M. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. Inédito. 2004. 67 p.
COELHO, F. U. Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 2 ed. São Paulo: Saraiva. 2005. 542 p.
MACHADO. M. M. A. A. Controle de Constitucionalidade. DireitoNet. São Paulo. Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/19/24/1924/>. Acesso em: 7 jun. 2006.
MORAES, A. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 5 ed. São Paulo: Atlas. 2005. 2930 p.
SANTOS, T. C. A exigência da CND e o posicionamento dos magistrados no Processo de Recuperação Judicial. Jus Vigilantibus, Vitória, 26 mar. 206. Disponível em <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/20634>. Acesso em: 31 mai. 2006.
SILVA, R. C. Lei de Recuperação de Empresas e sua necessária interpretação principiológica como único meio à consecução de seu objetivo jurídico colimado. Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 941, 30 jan. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7900>. Acesso em: 05 jun. 2006.
NOTAS
01 Artigo 151 do Código Tributário Nacional: "Art° 151 - Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: I - moratória; II - o depósito do seu montante integral; III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo; IV - a concessão de medida liminar em mandado de segurança; V – a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial; (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001); VI – o parcelamento. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001). Parágrafo único. O disposto neste artigo não dispensa o cumprimento das obrigações acessórios dependentes da obrigação principal cujo crédito seja suspenso, ou dela conseqüentes".
02 Artigo 205 do Código Tributário Nacional: "Art° 205 - A lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão negativa, expedida à vista de requerimento do interessado, que contenha todas as informações necessárias à identificação de sua pessoa, domicílio fiscal e ramo de negócio ou atividade e indique o período a que se refere o pedido. Parágrafo único. A certidão negativa será sempre expedida nos termos em que tenha sido requerida e será fornecida dentro de 10 (dez) dias da data da entrada do requerimento na repartição".
03 Artigo 206 do Código Tributário Nacional: "Art° 206 - Tem os mesmos efeitos previstos no artigo anterior a certidão de que conste a existência de créditos não vencidos, em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou cuja exigibilidade esteja suspensa".
04 Artigo 5° da Lei de Introdução ao Código Civil: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".