Capa da publicação Exclusão do Grêmio por  racismo: proporcionalidade?
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Os princípios da razoabilidade e proporcionalidade aplicados na Justiça Desportiva.

Uma análise da exclusão do Grêmio na Copa do Brasil de 2014

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08/11/2023 às 19:09
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3. ANÁLISE DESCRITIVA DO CASO E CRÍTICA

O caso ora analisado trata sobre uma partida de futebol realizada no dia 28 de agosto de 2014, válida pelas oitavas de final da Copa do Brasil na Arena do Grêmio, em Porto Alegre/RS. Na ocasião, cinco torcedores do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense foram flagrados e identificados por imagens do Canal ESPN proferindo ofensas discriminatórias ao goleiro do time adversário, chamando-o de “macaco". Ao final da partida, como determina o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) em seu artigo 75 (BRASIL, 2003), foi elaborada a súmula (BRASIL, 2014) pelo árbitro, contendo todas as informações técnicas referentes ao jogo. Neste documento não foi incluso nenhuma observação em relação a prática de descriminação racial, mas no dia sucessor a partida, o árbitro Wilton Pereira Sampaio, inscrito na Fifa/GO, realizou uma mudança na súmula, incluindo as ofensas racistas proferidas pela torcedora.

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) determina a existência de uma Procuradoria presente nas instâncias estaduais (Tribunal de Justiça Desportiva - TJD) e nacional (Superior Tribunal de Justiça Desportiva - STJD), das quais são responsáveis por analisar e, se necessário, denunciar as ilegalidades que ocorrem no desporto. Assim, tendo em vista que o árbitro relatou na súmula a ocorrência de injúria racial, a mesma foi encaminhada para a Procuradoria a que realizou a denúncia (BRASIL, 2014) do clube gaúcho com base no artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que possui a seguinte redação em seu caput:

Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

O julgamento ocorreu no dia 03 de setembro de 2014, pela Terceira Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) (BRASIL, 2014), tendo como relator do processo, o auditor Francisco Pessanha. Pela defesa foram ouvidos o presidente do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, Fábio Koff, e os procuradores do clube, Gabriel Vieira e Michel Assef Filho. O representando da Procuradoria foi Rafael Vanzin. Também foram colhidos os depoimento do árbitro Wilton Pereira Sampaio e seu assistente Carlos Berkenbrock, pois punidos por não relatarem o incidente logo após o término da partida.

A acusação fundou-se no artigo 343-G e o representante da Procuradoria sustentou que a prática de racismo foi evidente e realizada não apensas por uma única torcedora. Ademais, mostrou imagens de vídeo da partida posterior entre Grêmio e Bahia, onde a torcida realiza cantos de cunho racista. Assim, entende que o clube Gaúcho deve ser punido.

Porquanto, a defesa também mostrou vídeos do clube e seus jogadores sobre campanhas contra o racismo. No julgamento, o presidente do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense depôs que tais campanhas demonstram que o clube repudia toda forma de preconceito e que justo seria uma punição em sentido pedagógico para não ultrapassar limites prejudiciais à instituição. Na noite do jogo havia na Arena do Grêmio 30.294 (trinta mil duzentos e noventa e quatro torcedores) (GRÊMIOPÉDIA, 2014) torcedores, sendo que o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense destina 10% (dez por cento) para o clube adversário, haviam mais de 27.000 (vinte e sete mil) torcedores gremistas e somente cinco cometeram atos racistas. Nesse sentido, os advogados do clube Gaúcho refutam a tesa da defesa em alegar que uma foi uma quantidade razoável de torcedores que proferiram as ofensas. Sustentaram que o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense possui um acordo formado com o Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul a fim de coibir ilegalidades dessa alçada. Entendem ser passível uma punição condizente com o caso e não com a repercussão do mesmo.

A decisão da Terceira Comissão Disciplinar do Pleno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) decidiu punir o clube gaúcho com a expulsão do clube da Copa do Brasil de 2014 e ao pagamento de multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Os cinco torcedores foram punidos com a proibição de entrar em estádios de futebol por 720 (setecentos e vinte) dias.

Após a decisão em relação ao Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, ocorreram outros episódios envolvendo racismo em estádio de futebol. O Observatório da Discriminação Racial no Futebol possui dados sobre casos envolvendo racismo e injúria racial e, no ano de 2014, o caso envolvendo o goleiro do Santos na Arena do Grêmio foi o 17º registrado a um atleta brasileiro, porém nenhum dos outros clubes de futebol sofreu uma punição como o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, de ser expulso da competição. O Observatório da Discriminação Racial no Futebol possui atualmente dados de 2014 a 2018 (OBSERVATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL, 2020), mostrando os incidentes no futebol por questões de discriminação.

Em 2014 (OBSERVATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL, 2014) foram registrados 20 (vinte) casos de discriminação racial, onde apenas um (01) foi em rede social (instagram) e 19 (dezenove) em partidas de futebol nos estádios. Desse total, 07 (sete) casos tiveram punição pelo Tribunal de Justiça Desportiva (TJD) e 06 (seis) casos pagaram multas de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 15.000,00 (quinze mil reais). O Superior Tribunal de Justiça Desportiva puniu 02 (dois) clubes, as multas variaram de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Apenas o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense foi punido, além da multa, com a exclusão do campeonato pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva.

No ano de 2015 (OBSERVATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL, 2015) ocorreram 35(trinta e cinco) casos de discriminação racial, sendo 11 (onze) casos pela internet e 24 (vinte e quatro) dentro de estádios de futebol. Desses casos em apenas 01 (um) houve punição pelo Tribunal de Justiça Desportiva por ato discriminatório. Em outros 02 (dois) casos o agressor foi preso, identificado e liberado pela polícia após pagamento de fiança. Em 01 (um) caso, a Federação local suspendeu preventivamente o acusado. Nos demais casos de injúria racial não houve punição ao agressor em nenhuma esfera, bem como nenhuma responsabilização para clubes de futebol.

O registro no ano 2016 (OBSERVATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL, 2016) foram de 25 (vinte e cinco) casos, onde 06 (seis) flagrados em redes sociais e 19 (dezenove) dentro dos estádios de futebol. O Superior Tribunal de Justiça julgou apenas 02 (dois) casos e aplicou multas aos clubes, de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) e 20.000,00 (vinte mil reais). Enquanto o Tribunal de Justiça Desportiva julgou outros 02 (dois) casos, aplicando multa e suspensão para um funcionário do clube, em cada caso. Os demais 21 (vinte e um) casos não há registros de punição.

Em 2017 (OBSERVATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL, 2017) foram 43 (quarenta e três) fatos de discriminação racial, onde 29 (vinte e nove) ocorreram dentro dos estádios, 11 (onze) casos ocorreram pela internet e 03 (três) em outros espaços. No relato do Observatório de Discriminação Racial no Futebol, consta apenas 01 (uma) punição de multa para o clube, apesar do torcedor infrator ter sido identificado. E o Superior Tribunal de Justiça Desportiva absolveu dois clubes conhecidos, Flamengo (Clube Regatas do Flamengo) e Botafogo (Botafogo de Futebol e Regatas).

Os últimos dados correspondem ao ano de 2018, onde o observatório registrou a ocorrência de 44 (quarenta e quatro) casos de discriminação racial no futebol, sendo 29 (vinte e nove) dentro dos estádios, 12 (doze) pela internet e 03 (três) em outros espaços. Houveram apenas 02 (duas) punições, impostas por Tribunal de Justiça Desportiva e, nenhuma foi de exclusão de competição.

Esses dados revelam que, infelizmente, existem casos de discriminação racial no futebol, em sua maioria em partidas oficiais ocorridas dentro dos estádios. A penalidade aplicada ao Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, no tocante à expulsão da Copa do Brasil de 2014 (grande competição nacional), é notória por ser única, visto que demais clubes são absolvidos ou punidos apenas com multa. Também não foram encontrados relatos de exclusão de campeonatos nacionais anteriores ao caso em questão.

Ainda, na mesma competição em que o clube gaúcho foi punido, ocorreu um caso semelhante, onde um homem presente na torcida do Paraná Clube foi flagrado chamando o zagueiro do time adversário de "macaco". O Superior Tribunal de Justiça Desportiva realizou a identificação do acusado proferiu sua decisão, com fundamento no artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). OParaná Clube foi punido apenas com multa, conforme observado pela decisão proferida 4ª Comissão Disciplinar (BRASIL, 2014):

Pelo exposto, acompanho o voto do e, relator com relação a aplicação do artigo 243-G, parágrafo segundo do CBJD, aplicando a pena de multa em R$ 30.000,00 (trinta mil reais), porém, somado ao parágrafo terceiro, acrescentado, assim, a pena do inciso VII, do artigo 170 do CBJD, a perda de mando de campo por 01 (uma) partida, alcançando o caráter pedagógico da pena. É o voto.

A repercussão da pena foi pauta de opinião de Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, ao conceder entrevista para o site Globo Esporte (GLOBO ESPORTE, 2015) um ano do julgamento do caso do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense apontou. Ele afirmou que a penalidade foi muito isolada, não servindo de parâmetro aos demais casos que ocorreram no período. Marcelo entende que a redação do artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva possui interpretação subjetiva por não detalhar o número de pessoas cometendo ato de injúria racial. O texto prevê pena para "ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante (...) praticado simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva". Dessa forma, cabe aos julgadores a decisão sobre o número de pessoas e isso foi, inclusive, postulado em sede de defesa pelos procuradores do clube gaúcho.

Em relação ao princípio da razoabilidadeobserva-se a forma como ocorreu o fato e a penalidade aplicada. O canal ESPN divulgou imagens que auxiliaram na identificação da prática deinjúria racialsendo cometida por um grupo de 05 (cinco) torcedores. A decisão não foi razoável, visto que não teve ponderação e prudência ao excluir o clube gaúcho da competição, justamente em razão de os atos isolados partirem de uma minoria, a qual teve punição de não poder frequentar estádios de futebol por 720 (setecentos e vinte dias). Da redação do §2º do artigo 243-G observa-se o seguinte:

§ 2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.

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Ao aplicar a multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) e punir os torcedores foi respeitado o devido processo legal, pela aplicabilidade do disposto no parágrafo acima citado. O exemplo apresentado sobre o Paraná Clube evidencia a extravagância e incompatibilidade da pena aplicada ao Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, ferindo o princípio da razoabilidade. Para o caso do Paraná Clube, onde um torcedor foi identificado e punido, o clube recebeu a pena de multa, enquanto nos mesmo moldes do caso, o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense recebeu além da multa, a exclusão da Copa do Brasil. Os 05 (cinco) torcedores não possuíam nenhuma relação com a instituição, se não o fato de estarem na torcida deste clube. No entanto, em vista disso, o clube foi punido com multa prevista no próprio artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).

Pelo princípio da razoabilidade, analisam-se questões sobre ponderação e prudência na decisão dos julgadores. Para tanto, faz-se necessária a análise dos fatos e qual a maneira de sentenciar, assim, respeitando a adequação entre os meios e os fins. Para o caso em estudo, o fato é a discriminação racial sendo praticada por um grupo de 05 (cinco) torcedores e, dentre as possibilidades previstas no artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), a proibição dos torcedores frequentarem estádios de futebol por 720 (setecentos e vinte) dias cumulada com a multa ao clube - em razão de serem torcedores deste – satisfaz um meio adequado de punição.

O princípio da proporcionalidade também não foi aplicado no julgamento em questão. De maneira geral, o esse princípio determina que a decisão esteja de acordo com a conduta e, conforme abordado no item anterior, para atender essa determinação existem três classificações, sendo adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

A etapa da adequação corresponde à possibilidade fática ao analisar se, ao menos, a decisão estimula um resultado eficaz. Com efeito, a exclusão do clube não fez cessar a prática de ato discriminatório em razão de raça, conforme dispõe o caput do artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). Esse fato resta comprovado pelos relatórios anuais publicados pelo Observatório de Discriminação Racial no Futebol e, também, pela entrevista do diretor desse observatório, Marcelo Carvalho, ao afirmar 01 (um) ano após o caso do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense que a penalidade foi muito isolada e não serviu de parâmetro aos demais casos que ocorreram no período. O racismo é um problema social e no momento da decisão cabia aos julgadores o entendimento de que a exclusão do time não promoveria o ideal de findar atos dessa alçada.

Em relação à necessidade observa-se que, da aplicação do artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), o legislador poderia aplicar a perda de pontos conforme previsão do parágrafo primeiro, ou multa conforme previsão do parágrafo segundo, ou, ainda, a exclusão prevista no parágrafo terceiro. No caso, o Pleno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva estava diante de três possibilidades e, a etapa da necessidade leciona que nesses casos utiliza-se o meio menos gravoso considerando a conduta, o qual para o evento em questão seria somente a pena de multa e não a cumulação de multa com a exclusão como fora aplicado.

A proporcionalidade em sentido estrito satisfaz a possibilidade jurídica tendo por consideração a relevância da aplicação de uma norma em detrimento de outra. Assim, de acordo com a análise da necessidade sabe-se que no caso em questão duas penalidades foram impostas ao Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e, ainda, a análise da adequação demonstra que a exclusão não promove um ideal em relação a prática de injúrias raciais em estádios de futebol. Com efeito, a pena de multa em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) onera os cofres do clube e demostra que a Justiça Desportiva age a fim de punir ilegalidades. A pena de exclusão disposta no parágrafo terceiro artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) não possui relevância para os verdadeiros culpados que ofenderam a raça do jogador do time adversário.

Os casos envolvendo discriminação racial necessitam de punição na forma legal a fim de coibir esse tipo de conduta. No entanto, ao analisar o caso, os reais culpados pelas ofensas raciais foram penalizados de acordo com a legislação de Direito Desportivo e houve uma penalidade severa que transcendeu os limites da culpa dos torcedores.

Assim, a análise crítica da decisão que excluiu o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense da Copa do Brasil de 2014, aponta que os princípios da razoabilidade e proporcionalidade - os quais constituem bases sólidas para a correta aplicação das normas e penalidades- não foram observados pelos legisladores do Pleno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Franciely Prado. Os princípios da razoabilidade e proporcionalidade aplicados na Justiça Desportiva.: Uma análise da exclusão do Grêmio na Copa do Brasil de 2014. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7434, 8 nov. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91664. Acesso em: 9 mai. 2024.

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