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Elaborando a denúncia criminal

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24/11/2006 às 00:00
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5- ALTERNATIVAS: ARQUIVAMENTO, DILIGÊNCIAS, DENÚNCIA

Recebidos o procedimento policial ou os elementos de informação relativos a fato que em tese (ainda) poderá ter repercussão penal, três caminhos se abrem ao órgão de acusação.

De proêmio, é preciso atentar para o fato de que nessa fase vige o "in dubio pro societate", de forma que a dúvida opera em favor da propositura da ação penal, para que, sob crivo da ampla defesa e do contraditório, seja assegurado não só o direito do réu a sua defesa, mas também o direito da sociedade de ver a lei aplicada de forma transparente e correta ao fato concreto.

A primeira das alternativas que se apresenta é o arquivamento. Se manifesta a atipicidade do fato ou a presença de causa de exclusão da ilicitude, não há necessidade de instauração de ação judicial.

Todavia, a inexistência de suporte mínimo acerca de um juízo de tipicidade deve estar cabalmente caracterizada, o mesmo valendo acerca da presença de causas de exclusão da ilicitude, como, ad exemplum, caso de notória presença de legítima defesa.

A presença de uma dirimente não implicará no arquivamento do feito necessariamente. É que pode ser o caso de aplicação de medida de segurança. A inimputabilidade decorrente de menoridade, de seu turno, terá por consectário a necessidade de re-atuação do feito como procedimento da infância e juventude, para apuração do fato e eventual aplicação de medida de proteção, inclusive com remessa ao juízo competente.

Há, ainda, outras hipóteses que podem ensejar o arquivamento. A ausência de um suporte probatório mínimo em situação de impossibilidade de suprimento da deficiência é outra hipótese. Neste caso, tem aplicação o artigo 18 do CPP e a Súmula 524 do STF, contrario sensu, de forma que o surgimento de novas provas pode permitir a reabertura das investigações dentro do prazo prescricional.

Obviamente a promoção de arquivamento lançada pelo agente ministerial e a decisão judicial (imprescindível) que o determina devem ser fundamentadas, não só pode força do artigo 93, inciso IX, da CF/88 (caso da decisão judicial), como por expressa determinação legal no caso da manifestação do agente do Parquet (artigo 43, inciso III, da Lei nº 8.625/93).

Há possibilidade de ocorrer o denominado arquivamento implícito, que ocorre quando a denúncia é oferecida com exclusão de um dos indiciados. É de bom alvitre que este procedimento seja evitado, seguindo a peça incoativa uma promoção de arquivamento específica em relação ao agente excluído.

Não sendo caso de arquivamento, pode ocorrer de não haver material probatório mínimo necessário para a propositura da ação penal. A propositura de ação penal gera, por si só, danos à imagem do acusado. Em vista disso, mister a presença de elementos de convicção mínimos para caracterizar a "justa causa".

Consoante se depreende da redação do artigo 16 do CPP, somente poderá o Ministério Público solicitar a devolução dos autos à autoridade policial para a realização de diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia. Contrario sensu, se a diligência não for essencial, poderá o pedido ser indeferido. Impende considerar, no entanto, que o dominus litis é o órgão ministerial, a ele cumprindo verificar, em linha de princípio, da necessidade ou não de novas diligências. Nesta ordem de idéias, somente de forma excepcional e em caso de escancarada desnecessidade podem ser os pedidos de diligências indeferidos. A respeito, pertinente a citação de manifestação do STF, através do Ministro Celso de Mello, no julgamento do Inquérito nº 2.041:

"As diligências probatórias requeridas, ao Poder Judiciário, pelo Ministério Público, no contexto de um inquérito policial, objetivam permitir, ao Parquet, que este, com apoio nos resultados delas emergentes, venha a formar, eventualmente, a opinio delicti, pois é o Ministério Público o destinatário, por excelência, dos elementos de informação produzidos no contexto da investigação penal. Não cabe, em regra, ao Poder Judiciário, substituindo-se, indevidamente, ao membro do Ministério Público, formular juízo em torno da necessidade, ou não, da adoção de medidas probatórias reputadas indispensáveis, pelo dominus litis, à formação de sua convicção a propósito da ocorrência de determinada infração penal, ressalvada, no entanto, a possibilidade de controle jurisdicional sobre a licitude de tais diligências de caráter instrutório" [16]

O indevido indeferimento de diligências antes da instauração da ação penal está sujeito à correição parcial, desde que prevista no respectivo código de organização judiciária.

Então, pelo que se nota, deve o magistrado ter extrema cautela no indeferimento de diligências, o que somente deve ser feito quando absolutamente irrazoável o pedido.

Mas e qual o parâmetro para se aquilatar a essencialidade da diligência? Deve ser analisada a presença dos elementos necessários à propositura da denúncia e a inexistência de necessidade de investigação em relação a novos fatos ou aspectos do fato em apuração que possam conduzir a uma alteração em sua conformação jurídica. Por outras palavras, será possível o indeferimento quando já havendo elementos para a denúncia, destinar-se a diligência a suprir aspectos secundários, que não impedem o oferecimento de denúncia apta.

Vale registrar que no Estado do rio Grande do Sul, grande parte das diligências atualmente estão sendo solicitadas diretamente pelo Ministério Público à autoridade policial, de forma que o controle judiciário foi bastante reduzido, remanescendo, porém em relação aquelas providências sobre as quais recai a cláusula de reserva de jurisdição, como por exemplo, a quebra de sigilo telefônico.

Não sendo o caso de arquivamento e já estando presentes elementos para o oferecimento da denúncia, seja pela desnecessidade de diligências, seja pela realização daquelas que eram imprescindíveis, a elaboração da denúncia passa a ser a alternativa.

A alternativa do oferecimento da denúncia enseja uma série de questões a começar pelas condições da ação.


6- CONDIÇÕES DA AÇÃO

A plausibilidade da presença do jus puniendi, decorrente da juridicização de um fato em vista de um suporte probatório mínimo, ensejará a propositura da ação penal. O direito de ação, como já mencionado, comporta óticas que o conduzem de um grau maior de abstração até o seu exercício concreto. De direito genérico e ilimitado sob o prisma constitucional (direito individual) a ação, em seu exercício prático, apresenta limitações materializadas nas denominadas condições da ação.

Concebidas a partir da teoria eclética da ação, de Liebmam, as condições da ação representam o meio termo entre um direito completamente abstrato e o exercício do direito de ação com julgamento de mérito, ou seja, representam uma ponte entre as teorias abstratas da ação e as teorias concretas, estas últimas exigindo que para que houvesse ação devesse o autor ter reconhecido o seu direito.

Desta forma, as condições da ação tomam por paradigma analítico a situação concreta, mas in statu assertionis, ou seja, na conformação como ela se coloca na peça vestibular e em perfunctória avaliação. A verificação concreta das situações que compõe as condições será finalmente dirimida através do julgamento do mérito. Então, basicamente o que afasta as condições da ação do mérito é a consideração da prova e a cognição definitiva sobre ela e sobre o fato como uma realidade concreta e não meramente afirmada. Vale dizer, as mesmas questões são levadas em consideração tanto para análise da presença das condições da ação como do mérito, mas, no primeiro caso, elas são tomadas em linha de conta unicamente para aferir a possibilidade de válido exercício do direito de ação, e não para dirimir a situação fática de direito material sobre ela lançando um julgamento.

Concebidas primordialmente pela visão do processo civil e cognitivo, as condições da ação estão presentes igualmente nas ações de cunho cautelar e executivo, e também na ação penal, onde uma quarta condição entre em voga.

A primeira das condições da ação é a legitimidade ad causam. Como anteriormente referido, ordinariamente legitimado para a ação é o titular do direito posto em apreciação para que se veja declarado ou executado. Trata-se de uma questão de lógica, mas que comporta exceções. No caso da ação penal, o titular do jus puniendi, que é a dimensão material, é o Estado, e esta legitimidade é conferida a um órgão, hoje o Ministério Público. Excepcionalmente, poderá o ofendido de forma exclusiva ou subsidiária, ser legitimado. Daí resulta a presença de três espécies de ações quanto à legitimidade. A ação penal pública, também dita exclusiva, que é a regra e que se caracteriza pela legitimidade do órgão ministerial. A ação penal privada, em que a legitimidade é deferida ao lesado, e a ação penal pública subsidiária, onde a inércia do Ministério Público passa a legitimar a ação do ofendido.

Os casos de ação privada compreendem em regra, aquelas hipóteses nas quais o bem jurídico lesado é personalíssimo ou de interesse preponderantemente individual ou nos quais o strepitus fori poderia ser mais prejudicial do que o próprio delito.

Há, ainda, as ações penais públicas condicionadas à representação, mas esta não é condição da ação e sim condição de procedibilidade. O instituto não é uma condição da ação porque não é comum a todas elas, tratando de um condicionante externo, fruto de mera opção de política legislativa.

Vale ressaltar que inexiste no direito brasileiro a denominada ação penal adesiva do direito teutônico.

Por consectário da necessidade de legitimação, não pode o Ministério Público ajuizar ação penal em caso de ação privada, embora deva nela interferir para velar por sua regularidade e eventualmente aditá-la ou oferecer denúncia substitutiva se verificar hipótese de sua legitimação. Ao revés, em ação penal pública, não pode particular ajuizar se não for em atuação subsidiária, legitimada por inércia do órgão acusador, pois "o Direito Penal, enquanto ramo do Direito Público, não pode permitir que a vítima consagre seus interesses privados através da estrutura estatal-judiciária penal. A Constituição Federal admite a intervenção da vítima no processo penal unicamente através da ação penal privada subsidiária da pública (art. 5°, LIX, da CF), nos casos de inércia do órgão ministerial. Contrario sensu, havendo movimentação do Ministério Público, porém em direção contrária ao interesse da vítima, tem-se por não configurada da exceção constitucional à acusatoriedade pública". [17]

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Em contraponto, legitimado passivo é o agente do delito, salientado-se que a responsabilidade penal é pessoal e intransmissível, em regra. Trata-se do Princípio da Intranscendência, que é de direito material (artigo 5º, inciso XLV, da CF/88).

Da mesma forma, a um direito penal da culpabilidade repugna a idéia de que a responsabilização penal recaia em pessoas jurídicas. Não obstante, tal encontra previsão na Lei nº 9.605/98 em relação aos crimes ambientais. Esta previsão poderá gerar um paradoxo. É que não está afastada a possibilidade de responsabilidade de pessoa jurídica de direito público. Chegaríamos a possibilidade de o Estado punir penalmente a si mesmo. [18]

A segunda condição da ação é o legítimo interesse. Modernamente, o interesse se traduz em necessidade, utilidade e adequação do provimento. Em termos de direito penal e processo penal a análise de tais elementos perde muito em conteúdo e espectro. É que, sendo impossível a aplicação de sanção penal fora do processo penal, o qual, aliás, versa sobre direitos essencialmente indisponíveis, sempre será necessária a demanda judicial. A utilidade do provimento, de seu turno, está in re ipsa, e consiste exatamente em legitimar a aplicação da sanção, que por sua vez tem sua finalidade (repressão, prevenção e ressocialização).

Um viés que tem sido pouco explorado reside na consideração, para os fins de utilidade do provimento jurisdicional, do princípio da insignificância. Nestes casos usualmente se tem buscado o fundamento de atuação do princípio no direito material. Todavia, bem se poderia alvitrar, mercê da consideração da proporcionalidade, que diante de infrações de mínima ofensividade, estaria comprometida a utilidade prática da imposição de sanção, e, por conseguinte, faltaria utilidade à própria ação. Certamente o argumento pode ser combatido com a ponderação de que o que in casu é de pouca utilidade, em tese, é a aplicação da sanção, mas para que esta ocorra é indispensável a ação. Logo, a utilidade da ação permanece, como premissa imprescindível da pena. O que não subsistiria é a utilidade da sanção.

Uma hipótese, ainda que um tanto cerebrina, de falta de interesse processual por falta de utilidade seria o caso de uma denúncia que pede a absolvição do acusado. De fato, se há elementos para a absolvição, o procedimento teria sido o arquivamento, não havendo utilidade em um processo podendo desde já ser pedida a absolvição.

Por fim, no que tange à adequação do provimento, é muito difícil de se conceber a falta de interesse no processo penal. Isto porque o pedido é invariavelmente de condenação e formulado de forma genérica, ou, traçando um paralelo com o processo civil, de forma "ilíquida".

A possibilidade jurídica do pedido no que diz respeito à ação penal, ao contrário do que ocorre com o interesse, cresce em importância. É que, enquanto no processo civil, em regra à parte é lícito escolher o pedido mediato e imediato a seu talante, no processo penal este é vinculado e genérico. Vinculado no sentido de que invariavelmente o pedido imediato será de condenação ou pronúncia. Genérico no sentido de que o pedido mediato, ou seja, a aplicação da sanção, não comporta quantificação expressa. Fica assim, afastada qualquer outra espécie de pedido.

Há, no caso da ação penal, uma quarta condição da ação: a justa causa. Ela existe em vista da importância dos direitos postos em jogo e da gravidade das conseqüências que a propositura da ação penal apresenta em relação ao acusado. O só fato de ser proposta ação penal já repercute negativamente na imagem do acusado perante sua comunidade e seguramente representa um gravame psicológico ponderável, pois este passa a ter a espada de Dâmocles sobre sua cabeça. Este é um mal necessário e inafastável, mas que pode e deve ser tratado com cautela. Uma das facetas desta cautela é justamente a exigência de justa causa para a propositura ação. Mas qual a sua materialização prática? Concretamente, toma a feição da necessidade de plausibilidade e mínimo suporte na acusação.

Nesta ordem de idéias, tem-se a ausência de justa causa quando manifesta a atipicidade da conduta, há ausência de um suporte probatório mínimo a arrimar a acusação ou há causa extintiva da punibilidade. Assim, por exemplo, decidiu o TJRS, na Apelação Crime nº 70010948438, Oitava Câmara Criminal, relatora a Desembargadora Lúcia de Fátima Cerveira no seguinte sentido:

"Denúncia amparada em mera suposição da vítima, que, no entanto, não restou corroborada pelo restante da prova carreada aos autos. A simples constatação de que o acusado é propenso à prática de delitos não tem o condão de, isoladamente, pressupor sua autoria em um delito sobre o qual não lhe recaiam quaisquer outros indícios de participação. E sem tais elementos não há justa causa para instauração da ação penal, pois do contrário estaríamos a admitir a propositura de processos criminais contra qualquer pessoa, com base apenas em suspeitas e suposições. Mesmo que se possa dizer que a alegação da denúncia poderia eventualmente ser comprovada em juízo, deve haver um rastro inicial mínimo, que faça com que nisso possamos acreditar. Caso contrário, bastaria que se denunciasse para que depois se buscassem aqueles elementos que minimamente já deviam estar presentes como condição de possibilidade. Ausência de fumus boni iuris para que a ação penal tenha condições de viabilidade." [19]

No mesmo escólio, o julgamento do Habeas Corpus nº 70015222060, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, relator o Desembargador Nereu José Giacomolli, em cuja ementa se lê:

"1. O hábeas corpus pode ser utilizado como instrumento de collateral attack, possibilitando a extinção do inquérito policial ou até mesmo do processo penal quando inequívoca a atipicidade do fato, quando faltar indícios suficientes da existência e autoria, quando houver extinção da punibilidade pela prescrição, entre outras causas. 2. Por justa causa entende-se a presença de um substrato probatório suficientemente apto a desencadear o exercício da pretensão acusatória, ou seja: indícios razoáveis de autoria e materialidade de um fato típico e ilícito, bem como a possibilidade de incidência legítima do ius puniendi. 3. No caso concreto, o paciente foi acusado da prática de estelionatos e formação de quadrilha. Entretanto, a prova dos autos indica que paciente e acusado não são a mesma pessoa. 4. Ausência de justa causa para a propositura da ação penal, uma vez que feita sem um lastro mínimo de provas" [20]

Por outro lado, somente a ausência primu ictu oculi do fumus delicti pode ensejar o reconhecimento da falta de justa causa, não sendo possível a análise aprofundada do material probatório em sede de cognição sumária do habeas corpus, usualmente utilizado para buscar-se o trancamento da ação penal ab origene.

Se pela análise inicial se constatar a presença das condições da ação estará aberto passo para a confecção da peça inaugural da instância criminal por excelência: a denúncia, a qual se submete a uma série de princípios.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Elaborando a denúncia criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1241, 24 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9196. Acesso em: 19 abr. 2024.

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