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Direito material e direito processual:

a problemática advinda da incompreensão do binômio

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18/12/2006 às 00:00
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II – OS DOIS PLANOS DISTINTOS DO DIREITO

            1 – Direito material

            Ubi homo ibi Jus. Desde os primórdios o homem se entende como ser que convive necessariamente com outros de sua espécie. Não é possível conceber uma sociedade sem que as pessoas se relacionem entre si. Essas relações entre os seres são indispensáveis para a conjunção de esforços visando realizar coletivamente atividades e alcançar objetivos que seriam absolutamente inatingíveis individualmente.

            Assim, por vários motivos, somos obrigados a viver e a conviver necessariamente uns com os outros, travando relacionamento de várias naturezas. Para harmonizar essa convivência, carecemos de regras de como proceder para todos os níveis e naturezas de relacionamento. Sem essas regras disciplinadoras, a desordem reinaria absoluta, ter-se-ia, inevitavelmente, o caos.

            Nessa vida em sociedade, como vimos, estamos sujeitos as mais variadas naturezas de relações, todas regradas por normas de comportamento. Algumas dessas relações, dado o interesse em que o Estado tem na observância da forma como nascem, como se desenvolvem e como se findam, são por ele criadas, regras jurídicas, portanto.

            Outras relações, às quais regras também estamos sujeitas, não são regradas pelo Estado e não se confundem com as jurídicas, tal como as relações de cortesia, de urbanidade, de religião, de etiqueta, de amizade, etc. Essas, são relações meramente sociais, não jurídicas, vez que as regras disciplinadoras não foram criadas pelo Estado, e sim pelo meio social à qual se aplica: pelo circulo de amigos, pelos adeptos de uma determinada religião, pelos moradores de um condomínio, pelos sócios de um clube, etc.

            Frisa-se que, embora não se confundido, as regras meramente sociais e as regras jurídicas se entrelaçam e interpenetram-se, sendo que aquelas tendem-se a converter-se em normas jurídicas, como ocorreu recentemente com o instituto da união estável, exemplificando, outrora renegada pelo Estado e pela sociedade, posteriormente timidamente reconhecido pela sociedade e hoje plenamente reconhecido tanto pela sociedade como pelo direito, até mesmo em sede constitucional. [23] Basta uma relação ser disciplinada pelo Estado para ascender de meramente social ao status de jurídica.

            O conjunto dessas regras, criadas pelo Estado, disciplinadoras da vida do homem na sociedade, disciplinando as relações jurídicas, constituem justamente o chamado direito material.

            1.1 – Direito subjetivo e direito potestativo

            No sentido objetivo, o direito é justamente o conjunto das regras criadas pelo Estado disciplinadoras da vida do homem na sociedade. Essas regras prevêem abstratamente situações passiveis de ocorrência no mundo natural e, para elas proscreve certos efeitos. Ao elaborar ditas regras in abstrato, o Estado estabelece situações de vantagem e de desvantagem, determinando quais interesses devem prevalecer em detrimento de outros. Essa posição de vantagem em relação a outro interesse é justamente o direito subjetivo.

            A regra jurídica que determina que determinado estabelecimento estatal abra a determinado horário e a ele tenha acesso qualquer pessoa, é direito objetivo. As pessoas que a ele querem ter acesso já no horário em que a lei determina sua abertura, têm o direito subjetivo de a ele ter acesso. É o poder advindo duma situação fática anteriormente prevista abstratamente na lei.

            Quando se tem uma norma jurídica disciplinando relações ou atribuindo efeitos a fatos ou atos que o Estado reputou relevante, tem-se o direito objetivo. Quando essa mesma norma dota os destinatários de projeção própria, voluntária ou não, tem-se o direito subjetivo. Aquele que se encontra na posição de vantagem em relação à outrem, em função da norma jurídica regradora daquela relação jurídica, pode invocá-la em seu favor.

            Direito objetivo, portanto, é regra imposta ao proceder humano pelo Estado. Por sua vez, o direito subjetivo é o poder de que uma pessoa é titular em virtude dessa mesma regra, da qual diretamente deriva, podendo exigir de outrem uma prestação. É um poder correlato a um dever [24].

            Já o direito potestativo [25], conquanto faculdade, não encontra nenhuma correlação com um dever. Esse decorre de uma relação jurídica preexistente da qual decorre a faculdade de uma das partes de extingui-la, transformá-la ou criar uma nova independentemente de qualquer atitude da outra parte, a qual obrigatoriamente se sujeitará aos efeitos.

            2 – Direito processual

            Conquanto todas as pessoas, físicas ou jurídicas, estão necessariamente em pleno contato com o direito material, desde o inicio de sua existência [26], uma pessoa pode, seguramente, existir, desenvolver-se [27] e extinguir-se sem nunca ter tido um mínimo contato com o direito processual. Nossa vida é constantemente permeada por relações jurídicas. Explicamos: como o Estado se preocupa com algumas relações sociais que politicamente entende serem importantes, cria regras de observância obrigatória disciplinando essas, que passam à qualificação de relações jurídicas e não mais meramente sociais.

            O mesmo Estado que entende determinadas relações como importantes, a ponto de criar preceitos estatais sobre elas, apetece que todos a observem de forma espontânea. Essa utópica observância espontânea das normas de direito material é a fisiologia das relações jurídicas sociais, ou seja, todas os destinatários das normas materiais cumprindo-as pacificamente e sem necessidade de qualquer ingerência coercitiva do Estado ou da quem quer que seja. Sabemos, por motivos que fogem ao objeto desse trabalho, que essa cabal observância espontânea do direito material é tão utópica quanto o Estado imaginário idealizado por Thomas Morus. Onde há o homem, ali há relações jurídicas disciplinadas pelo direito material e há, ainda, um sem numero casuístico de inobservância espontânea dessas regras materiais.

            Tais aleivosias em corresponder espontaneamente o direito material caracterizam as crises no direito material, que clamam por solução. Há que se ater a que, o mesmo Estado que criou o direito material, veda expressamente que o lesado por essa inobservância espontânea a imponha coercitivamente. [28]

            Assim, o Estado cria o direito material e exige sua observância. Esse mesmo Estado, contudo, veda ao lesado o uso da autotutela, salvo raríssimas exceções, monopolizando o exercício de atividades visando a imposição coercitiva da observância do direito material. Logo, esse mesmo Estado, que monopolizou a solução coercitiva dos conflitos, tem o dever de solucionar as situações que caracterizem crises no direito material, impondo a força sua observância cogente.

            Essa atividade – verdadeiro poder-dever – mediante a qual o Estado examina as pretensões e impõe coercitivamente a observância do direito material que não o foi de forma espontânea, denomina-se jurisdição. Por essa atividade estatal, os órgãos jurisdicionais agem em verdadeira substituição às partes, que, como vimos, não podem fazer justiça pelas próprias mãos; resta, às essas, a possibilidade de provocar o Estado para substituí-las na tarefa de impor coercitivamente a observância do direito material. Essa provocação do Estado se dá através do direito de ação. Por sua vez, aquele a quem se imputa a inobservância espontânea do direito material tem o direito se ser chamado a exercer perante o Estado o seu direito de defesa.

            Essa função jurisdicional pela qual o Estado – que provocado pelo autor através do direito de ação, chama o réu para exercer o seu direito de defesa –impõe coercitivamente a fiel observância do direito material, desenvolve-se através de um instrumento denominado processo.

            O conjunto das regras estatais que disciplinam, não a vida das pessoas na sociedade, mas sim o modo de atuação da função jurisdicional, o modo de exercício do direito de ação e do direito de defesa e a forma do desenvolvimento dessa função pacificadora através do instrumento denominado processo, denomina-se direito processual. O direito processual disciplina assim a vida das pessoas enquanto atores de uma relação jurídica processual, concedendo-lhes poderes e faculdades e impondo-lhes ônus e obrigações, quer como partes, testemunhas, juízes, serventuários, auxiliares eventuais, etc. Como já dissemos outrora, conquanto uma pessoa – física ou jurídica – necessariamente convive diariamente com o direito material regrando toda sua vida, essa mesma pessoa pode passar toda sua existência sem nunca ter tido o mínimo contato com o direito processual. Basta essa pessoa nunca ter sido sujeito ou auxiliar em um processo, o que é plenamente possível. Ademais, conquanto é absolutamente seguro afirmar que toda pessoa necessariamente já tenha tido contato com o direito material, não é menos seguro afirmar que, sem dados estatísticos precisos, massa significativa de pessoas jamais teve o mínimo contato com regras processuais.

            Rematando esse raciocínio, como o direito material é o conjunto de regras estatais que disciplinam as relações jurídicas entre as pessoas na sociedade e em relação aos bens da vida; o direito processual, por sua vez, é o conjunto de regras estatais que disciplinam as relações entre os atores no processo, ou seja, o exercício conjugado da jurisdição pelo Estado, da ação pelo demandante e da defesa pelo demandado. O direito processual tem nítido caráter instrumental, haja vista que todos os seus institutos fundamentais – jurisdição, ação, defesa e processo – visam garantir a fiel observância do direito material, ainda de que forma coercitiva. Tais institutos compõem o objeto do direito processual e precisamente eles convergem inevitavelmente para dar-lhe individualidade e distinguí-lo do direito material. Tão pernicioso para a fiel prestação da atividade jurisdicional quanto o estudo e a aplicação do processo como um fim em si mesmo (olvidar que o direito processual existe para o direito material) é não reconhecer precisamente a distinção entre a relação de direito material e a relação de direito processual, com inúmeras implicações práticas indesejáveis, como apontaremos adiante.

            Frisa-se ainda que a instrumentalidade do direito processual consiste no fato de que só lhe cabe intervir quando o direito material deixar de ser espontaneamente observado, e também no sentido de que o direito material é indispensável para a existência do direito processual. Contudo, tal premissa não nos autoriza concluir que o direito processual seja secundário em relação ao direito material e que este possa menosprezá-lo. Como também não se pode concluir que a diversidade entre direito material e processual e a instrumentalidade desse em relação àquele, significa indiferença entre os dois planos normativos. Assim como o direito processual não poderia existir sem o direito material, igualmente o direito material, deve-se acrescentar, não poderia existir sem o direito processual. Portanto, em sua diversidade está presente uma estreita dependência recíproca entre direito material e direito processual, haja vista que o desígnio primordial do processo é justamente assegurar o que foi prometido pelo direito material, sem poder se desviar para outro fim nem deixar de estar a serviço desse objetivo.


III – A PROBLEMÁTICA ADVINDA DA CONFUSAO ENTRE O PLANO DO DIREITO MATERIAL COM O PLANO DO DIREITO PROCESSUAL

            Por vezes, assim como o direito material se sujeita a crises, as encontramos também no direito processual. São as crises nas relações processuais que, muita das vezes, não permitem ou dificultam o normal desenvolvimento do processo rumo ao seu escopo primordial, que é atuação concreta do direito material.

            Ditas crises processuais, verdadeiras deficiências nos requisitos indispensáveis ao julgamento do mérito, no mais das vezes impedem a marcha regular do processo, o qual se finda de forma anômala, sem julgamento do mérito, nos termos do artigo 267 do Código de Processo Civil, sem pacificar, portanto. Outras crises no processo não provocam a sua extinção anômala e prematura, mas, ou suspendem a sua marcha normal e desejável em direção a prestação da tutela jurisdicional, ou prejudicam sobremaneira essa marcha, dilatando o iter entre a provocação do órgão jurisdicional e o fornecimento da tutela jurisdicional.

            Assim, tendo como premissa básica que em todo processo temos a coexistência de duas relações distintas, uma sempre presente em toda e qualquer demanda – relação processual – e outra ao menos sempre afirmada – relação material – insta sempre identificar, em cada situação concreta, em qual das relações (material/processual) a crise ocorre. Estudaremos, adiante, inúmeras situações em que a prestação da tutela jurisdicional é extremamente prejudicada pela deficiente distinção entre a relação de direito material e a relação de direito processual e suas respectivas e individuais crises.

            1 – As condições da ação e as pseudocarências

            Como vimos, em todo e qualquer processo teremos, indubitavelmente, a existência de uma relação jurídica de direito processual. Por sua vez, nesse mesmo processo também teremos sempre a afirmação pelo autor da existência de uma relação jurídica de direito material (causa de pedir) da qual decorreria o resultado postulado (pedido).

            Assim, antes de o juiz verificar a real existência da relação de direito material afirmada pelo autor na inicial, bem como quais serão as conseqüências de sua eventual existência, deve antes verificar a regularidade da relação jurídica processual. Assim, essa análise é pressuposto daquela.

            Por uma questão de economia processual, o sistema vigente permite ao juiz o saneamento do processo desde seu primeiro contato com o processo, ou seja, já na análise da inicial (e espera que assim o faça), determinando a sua adequação às regras de direito processual ou indeferindo-a liminarmente. Frisa-se que, ao contrário do catequizado pela doutrina dominante [29], a fase saneadora do processo coincide com a fase postulatória: ambas iniciam com petição inicial e findam com a audiência preliminar, salvaguardando as hipóteses em que a crise processual seja superveniente a essa fase, podendo-se falar em saneamento do feito até o momento do julgamento final do processo. Durante todo o iter processual o magistrado pode e deve velar pela perfeita regularidade da relação jurídica processual, determinando o saneamento das eventuais irregularidades processuais sanáveis, ora anulando os atos processuais irregulares e os por ele contaminados ou, por fim, extinguindo o processo sem julgamento do mérito, quando insanáveis e detectadas no momento oportuno. [30]

            Ademais, tendo em vista o dispêndio advindo às partes e ao Estado, bem como a desproporção entre a enorme quantidade de processos litispendentes e a escassa quantidade de juizes, manda o bom senso (e o sistema bem idealizado pelo legislador) que as crises processuais sejam detectadas o quanto antes, e não apenas por ocasião da realização da audiência preliminar, na indevidamente dita fase saneadora. [31]

            Assim, em princípio, antes de sopesar a relação material afirmada pelo autor, que é o meritum causae, deve antes o juiz averiguar a regularidade da relação processual, ou seja, a presença dos requisitos que a doutrina convenceu chamar de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo [32]. Note-se que essa analise é feita exclusivamente à luz da relação processual, sendo plenamente dispensável qualquer analise, ainda que superficial, da relação jurídica material alegada na inicial.

            Contudo, também por uma questão de economia processual, visando impedir o desenvolvimento de processos absolutamente inócuos e inúteis, plenamente incapazes de conceder a qualquer uma das partes a tutela jurisdicional, o sistema permite ainda ao juiz, ab initio, uma superficial análise da relação jurídica material afirmada pelo autor na inicial, controlando sua pertinência.

            Frisa-se que aqui se trata não de uma análise da relação de direito processual, mas sim de uma preliminar e superficial análise da relação de direito material alegada pelo autor na petição inicial. Trata-se das denominadas condições da ação. Ao verifica-las, exerce o juiz uma atividade cognitiva superficial, não exauriente, da própria relação jurídica de direito material na forma como afirmada inicialmente pelo Autor. Junto com os pressupostos processuais, as condições da ação constituem os requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito.

            Como já vimos, o juiz deve abancar a sanear o processo desde o seu primeiro contato com a inicial, verificando se estão presentes os requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito. Verificando a falta de um desses requisitos, deve o juiz determinar liminarmente a emenda da inicial (artigo 284 do CPC), caso isso seja possível, ou, na impossibilidade, indeferir imediatamente a inicial. Caso o juiz não cumpra, nesse momento, o mandamento expressamente determinado na lei processual (artigo 284 e seu parágrafo único), o sistema mais uma vez o conclama a sanear o feito, analisando a inicial à luz da resposta do réu, consoante determinação novamente expressa em lei, precisamente na segunda parte do artigo 327 do CPC.

            Acaso hipoteticamente falhe novamente o juiz (o que infelizmente ocorre mais do que o aceitável), o sistema pela terceira e última vez roga pelo saneamento do feito, determinando (ou implorando) no artigo 331, § 2.º, a decisão das decisões processuais pendentes. [33] Em defesa dos magistrados, temos plena ciência do excesso de processos sob a responsabilidade de cada juiz, o que muita das vezes realmente lhes impossibilita a correta aplicação do sistema idealizado na lei. Contudo, indaga-se: será que com a fiel observância do sistema não se eliminaria grande parte desses processos que atravancam a "pauta" dos juizes e o próprio Judiciário?

            Ademais, seguramente essa foi a intenção do legislador ao optar pela adoção das condições da ação no sistema. Como vimos, ainda que se tratem de requisitos de admissibilidade do julgamento de mérito, o juiz analisa a presença ou não das condições da ação sempre em superficial e prematura análise da própria relação material alegada pelo autor.

            Ademais, a doutrina vacila em relação à natureza jurídica das condições da ação, ora criticando-as ferrenhamente e assimilando-as ao próprio mérito da causa [34], ora assimilando-a aos pressupostos processuais e ora classificando-as numa situação intermediária. Indubitavelmente, as condições da ação não se assimilam com os pressupostos processuais (ainda que, junto à esses, constituem requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito), haja vista que aquelas são analisadas sempre com base apenas na relação jurídica de direito material alegada (a falta de um pressuposto processual pode acarretar uma crise no direito processual, em nada afetando e nem dependendo da análise do direito material afirmado pelo autor na inicial), e não com base na relação jurídica processual, como esses.

            Por sua vez, meritum causae não podem ser, uma vez que a análise desse necessita de uma cognição exaustiva da relação de direito material culminando com a oferta da tutela jurisdicional definitiva, aplicando coercitivamente a regra estatal não observada espontaneamente, solucionando a crise no direito material com cunho de definitividade, o que não ocorre com a decretação de carência de ação.

            Assim posto o problema, parece-nos que o legislador corretamente optou pela situação intermediária, acolhendo a teoria do trinômio (pressupostos processuais – condições da ação – mérito) visando justamente (1) permitir o eficaz desenvolvimento da atividade jurisdicional da forma mais lógica possível, observando um método científico, ético e democrático capaz de assegurar a participação efetiva de todos os que serão diretamente afetados pelo seu resultado, com a exigência dos pressupostos processuais; (2) impedir o desnecessário desenvolvimento desse método lógico quando for cabalmente impossível alcançar o resultado almejado pelo autor, independentemente dos atos posteriores, com a exigência das condições da ação; e (3) obrigar a obediência à regra estatal de direito material que não foi observada de forma espontânea (compor a lide), o que somente ocorre com o julgamento do meritum causae.

            Entendemos que foi muito feliz a opção do legislador, possibilitando ao juiz um controle a priori da utilidade do desenvolvimento da relação jurídica processual como sempre pretendido pelo autor. Explicamos: acaso ausente uma das condições da ação na inicial, o autor jamais poderá alcançar a almejada tutela jurisdicional pleiteada. Ainda que todo o alegado na inicial seja realmente verídico, todos os fatos sejam indubitavelmente verdadeiros, ainda assim o juiz não poderá lhe ofertar uma tutela favorável (por instransponível óbice encontradiço no direito material), cabendo-lhe tão somente uma improcedência. Ora, se assim, por que permitir o desenvolvimento desse processo, importunando desnecessariamente o réu, assoberbando descabidamente a "pauta" de audiências, expedindo-se inutilmente cartas precatórias, rogatórias, ouvindo testemunhas, etc. É uma forma inteligente, justa, legítima e lógica, como pragmaticamente exige o método, de se controlar o próprio mérito através de um "filtro" de nítida natureza processual.

            O sistema positivo em vigor expressamente adotou as condições da ação como sendo a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir e a legitimidade das partes, acolhendo in totum a doutrina de Liebam [35].

            Pela possibilidade jurídica do pedido entende-se que deve existir dentro do ordenamento jurídico de direito material a providencia pleiteada pelo autor. Em processo civil, ao avesso do penal, significa a ausência de expressa vedação no direito material ao pleiteado na inicial pelo autor. Como o pedido não pode ser alterado após o prazo para a resposta do réu, seguramente essa condição da ação pode ser verificada com a simples leitura da inicial pelo juiz, logo no seu primeiro contato com essa.

            A segunda das condições da ação é o interesse de agir (interesse processual), que surge da análise da necessidade do autor de socorrer-se à atividade jurisdicional, ou seja, a alegação de uma concreta [36] não-observância espontânea do direito material pelo réu que lhe trará um prejuízo caso não proponha a demanda, e a adequação do provimento jurisdicional pleiteado para a apta solução da crise de direito material afirmada na inicial. Mais uma vez, o juiz vai se valer da superficial análise da relação de direito material que poderá ser feita com uma simples leitura da inicial, logo na primeira oportunidade.

            Por fim, a terceira e ultima das condições da ação é a legitimidade das partes, que, nas palavras de Buzaid, autor do anteprojeto do código atual, correspondem à pertinência subjetiva da ação. Mais uma vez, sua analise é feita à luz do direito material, verificando-se a correlação entre credor e autor e devedor e réu. [37] Ou seja, o pretenso titular do direito subjetivo na relação jurídica de direito material alegada na inicial deve ocupar o pólo ativo da relação jurídica processual, por sua vez, o pretenso transgressor da norma da relação jurídica de direito material alegada pelo autor na inicial deve ocupar o pólo passivo da relação jurídica processual.

            Excepcionam a regra os casos de substituição processual, nos quais a lei processual [38] expressamente permite a alguém postular em nome próprio em defesa de direito cuja titularidade não lhe pertence.

            Desnecessário aduzir que, mais uma vez como as demais condições da ação, a pertinência subjetiva da ação, usando as palavras de Alfredo Buzaid, são verificadas à luz da relação de direito material alegada pelo autor na inicial. Desnecessário, ainda, repisar que o juiz pode (e deve) analisa-la já logo no primeiro contato com a inicial.

            Pois bem, de posse dessas premissas fundamentais, conclui-se que o legislador espera do juiz, ao receber a petição inicial pela primeira vez, uma primeira análise à luz do direito processual, verificando a presença dos pressupostos processuais [39]. Contudo, essa análise preliminar da inicial, em um segundo momento, vai extrapolar os lindes do processo, passando o juiz a realizar uma nova análise agora à luz do direito material, realizando uma atividade cognitiva superficial, mas capaz de detectar uma "improcedência" de ordem tamanha que o processo não merece sequer prosperar, haja vista que será impossível o autor obter uma tutela jurisdicional que lhe seja favorável. Como vimos, ainda que todo o alegado na inicial seja verdadeiro, jamais o juiz poderá julgar a demanda procedente. Assim, não há qualquer motivo que justifique o desenvolvimento desse processo, sob pena de se desenvolverem atividades estatais absolutamente inócuas e desnecessárias, ferindo-se sobremaneira o principio da economia processual [40] e qualquer lógica aceitável. Determina então o sistema a prematura e imediata extinção do processo, sem o julgamento do mérito. Como dissemos, é um filtro processual justo, eficaz e lógico que impede o desenvolvimento de processos desnecessários, analisando prematuramente e prescindindo de uma cognição exaustiva, a própria relação de direito material alegada pelo autor na inicial.

            É, portanto, uma verdadeira ponte entre o direito material e o direito processual. Constitui uma ferramenta processual que permite, de antemão, visualizar uma incontestável improcedência no final do iter processual, ceifando ab inicio, a relação processual, sem chegar sequer a importunar o próprio réu inutilmente, e evitando condenar o autor no pagamento dos honorários de sucumbência ao eventual advogado daquele. Economiza tempo e dinheiro o réu, economiza tempo e dinheiro o Estado e, por fim, economiza tempo e dinheiro o próprio autor.

            Sendo o processo um método lógico, ético e justo para a melhor desenvoltura da atividade jurisdicional, toda regra há de ter uma função teleológica. Seguramente, essa é a finalidade da adoção das condições da ação pelo legislador. Acreditamos que grande parte dos problemas do Judiciário, principalmente no que tange a sua malfadada morosidade, poderia ser amenizado com a realização de estudos estatísticos da quantidade de processos em que a carência de ação – detectável desde o início com mera leitura da inicial – são reconhecidos apenas após o termino da fase de instrução, o que poderia ensejar uma campanha de incentivo à fiel observância do sistema posto pelos magistrados. Mas não, ao invés de estudos estatísticos, prefere-se reformar, à sorrelfa, o direito positivo. [41]

            Prosseguindo, todo o exercício efetivo de verificação da presença das condições da ação pelo juiz é realizada com os olhos voltados para fora do processo [42], visualizando sempre a alegada relação de direito material constante na inicial.

            Outrossim, para prosperar a relação processual, determinando o juiz a citação do réu para que esse exerça o seu direito de defesa, o autor deve narrar na inicial uma situação fática da qual decorra uma conseqüência jurídica (causa de pedir) e deduzir um pedido de tutela jurisdicional, sendo que essa situação fática narrada abstratamente ou esse pedido não podem estar expressamente vedados pelas normas de direito material, hipótese em que, caso ocorra, o pedido será juridicamente impossível e o autor carecedor de ação. Ora, isso reafirma tratar-se as condições da ação um verdadeiro filtro processual lógico que permite detectar, ab initio, uma manifesta improcedência da ação ao final. Acaso o sistema processual não permitisse ao juiz a utilização desse filtro processual que analisa superficialmente a relação material afirmada, em apresentando o autor uma inicial pleiteando algo expressamente vedado pelas normas materiais, o juiz seria obrigado a determinar a citação do réu, aguardar sua resposta, permitir a produção de atividades probatórias, ou seja, desenvolver inutilmente todo o iter processual para no final, só então, julgar a ação improcedente por vedação expressa no direito positivo do pleito do autor.

            O mesmo raciocínio ocorre com a verificação da pertinência subjetiva da ação, ou seja, com a analise preliminar feita pelo juiz da correlação entre os titulares da relação jurídica de direito material (credor e devedor, em sentido amplo) alegada pelo autor na inicial e as partes na relação jurídica de direito processual (autor e réu). Alias, a necessidade dessa pertinência subjetiva está diametralmente ligado com a disponibilidade do direito material, uma vez que somente ao titular de um direito subjetivo é admitido sopesar a necessidade de se invocar a prestação da atividade jurisdicional ou se conformar com a resistência do destinatário da norma em cumpri-la espontaneamente. Frisa-se que apenas excepcionalmente o direito permite o fenômeno da substituição processual.

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            Por fim, também basta mera análise da inicial para se verificar a necessária presença do interesse processual, sem o qual seguramente o autor jamais logrará êxito em obter do Estado uma tutela jurisdicional que lhe seja favorável.

            1.1 – O acerto da teoria da asserção

            Dessa reflexão só é possível extrair uma única conclusão lógica, qual seja, a de que o legislador optou pela adoção da teoria das condições da ação visando impedir o desnecessário prosseguimento de processos que, seguramente não fornecerão uma tutela favorável ao autor e, sendo apenas um "filtro" instrumental, só teria razão de existir se tais condições forem conferidas em abstrato a partir da relação de direito material como alegada pelo autor na inicial, ou seja, o autor deve alegar [43] na inicial relação jurídica não vedada pelo direito material e dela extrair o seu pedido (pedido juridicamente possível), o autor precisa alegar ser o titular dessa mesma relação jurídica [44] controvertida, em face do réu (legitimidade de partes) e, finalmente, deve o autor demonstrar que a via processual eleita é necessária e adequada para assegurar a observância coercitiva da norma de direito material não espontaneamente observada pelo réu na forma como alegada na inicial.

            Fica claro, portanto, que defendemos a teoria da asserção, a única, a nosso ver, que fielmente distingue as duas relações autônomas (a sempre existente relação de direito processual e a sempre alegada relação de direito material) sem, no entanto, afastar o caráter instrumental do direito processual, o que explicaremos adiante. Não estamos defendendo que o juiz só poderá julgar o autor carecedor de ação em seu primeiro contato com a inicial [45] pois, como vimos, o saneamento do feito começa nesse primeiro contato, mas o sistema permite ao juiz "postergar" essa atividade até a fase processual prevista no artigo 331, § 2.º do CPC, dita pela doutrina "fase saneadora". Ademais, o juiz continua sempre verificando a presença dos requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito. O que o sistema tenta impedir é o tardio reconhecimento da carência de ação após o dito despacho saneador, bem como o reconhecimento a destempo de falta de pressupostos processuais preexistentes. Contudo, ainda que o juiz reconheça o autor carecedor da ação após a oferta da resposta do réu ou até mesmo no momento previsto no artigo 331, §2.º do CPC, esse reconhecimento será realizado à luz da relação jurídica material alegada pelo autor na inicial. Explica-se: caso o autor alegue na inicial uma situação jurídica hipotética na qual claramente se verifica a perfeita correlação da pertinência subjetiva da ação, o juiz jamais poderá detectar, ab initio, a ilegitimidade de parte. Caso o réu responda a ação e, na sua contestação, alegue que a titularidade passiva da relação de direito material alegada na inicial não lhe pertence, mas a terceiro, a controvérsia estará instaurada, carecendo o juiz de uma atividade cognitiva exauriente para prolatar sua decisão, decidindo se realmente foi travada uma relação jurídica material entre autor e réu, como alegado na inicial, ou se essa relação jurídica de direito material foi travada entre autor e terceiro, como alegado na resposta do réu. Caso o juiz se convença da veracidade da alegação do autor, analisará se dessa relação de direito material decorrerá o pedido e, caso positivo, a ação será julgada procedente. Por sua vez, caso se convença da veracidade da alegação do réu, o juiz estará, ao mesmo tempo, se convencendo de que a relação jurídica de direito material afirmada na inicial se deu entre autor e terceiro e de que a relação de direito material alegada pelo autor na inicial, da qual o réu seria coadjuvante, efetivamente não ocorreu, julgando logicamente a ação improcedente (pela inexistência do fato constitutivo do direito do autor) [46].

            Exemplificando, caso o autor A alegue na inicial de processo de conhecimento que celebrou com o réu B contrato de mútuo, a vencer em 30 dias, e que B não teria cumprido o contrato após o vencimento, e pleiteie a tutela condenatória de B em lhe devolver o valor emprestado, não há que se falar em carência da ação, pois (1) o pedido (condenação de pagar quantia certa em cumprimento de contrato de mútuo) não é vedado expressamente pelo direito material; (2) existe perfeita correlação entre autor/credor e réu/devedor e (3) o meio processual invocado pelo autor é necessário e perfeitamente adequado para, caso a alegação seja verídica, imponha ao réu a observância obrigatória da regra de direito material não observada espontaneamente. Caso todo o alegado na inicial seja verdadeiro, o juiz poderá, em tese, lhe ofertar uma tutela jurisdicional favorável.

            Situação distinta teríamos se o autor A alegue na inicial de processo de conhecimento que seu irmão B celebrou com o réu C contrato de mútuo, a vencer em 30 dias, e que B não teria cumprido o contrato após o vencimento, e pleiteie a tutela condenatória de B em lhe devolver o valor emprestado por seu irmão. Ora, o autor é nitidamente carecedor da ação, pois, ainda que todo o alegado seja devidamente comprovado nos autos, ainda que o réu confesse toda a situação fática narrada na inicial, o juiz jamais poderá prestar uma tutela jurisdicional favorável ao autor. Nesse caso, como em todo caso de carência de ação, basta uma leitura da inicial para se evitar o desenvolvimento de uma relação processual absolutamente inútil e desnecessária. Ainda que o juiz, desatento, determine a citação do réu, esse irá alegar em sua defesa a ilegitimidade de parte, ou ainda que não alegue, o juiz poderá reconhecer de ofício e impedir que o processo avance mais ainda de forma inútil, reconhecendo o autor como sendo carecedor de ação. Acaso o juiz não verifique a impertinência subjetiva e determine o comparecimento das partes na audiência preliminar, nesse momento deverá detecta-la, como lhe "implora" o sistema. Na eventualidade, mais uma vez, de o juiz não a detectar e determinar a produção de provas, permitindo o avanço dispendioso do processo absolutamente inútil, no momento de sentenciar o juiz deverá reconhecer a carência de ação e extinguir o processo sem julgamento do mérito, mas à luz da relação jurídica de direito material alegada na inicial. O que queremos aclarar é que o juiz, conquanto não deva, pode reconhecer a falta de uma ou mais das condições da ação mesmo após a realização de atividades probatórias, desde que o faça com base nos fatos como alegados na inicial.

            O sistema é perfeito e lógico, permitindo ao juiz a detecção preliminar da carência de ação, antes mesmo da citação do réu, evitando incomodar-lhe debalde. Caso o operador do sistema não o aplique perfeitamente, esse lhe dá outras oportunidades para a correta aplicação e, como vimos, obsecra ao juiz sua aplicação antes do início da fase processual que é a mais onerosa, justamente a fase da produção de provas. Como defendemos, uma vez aplicado corretamente, eliminar-se-ia milhares de processos que inutilmente se desenvolvem e atravancam sobremaneira o sistema. Ademais, sua correta aplicação não implica em cercear o direito de ação do autor, uma vez que (a) processo nos moldes constitucionais efetivamente existiu e (b) não há como se conceber a existência de processos que jamais poderão trazer qualquer conseqüência favorável ao seu autor. Como vimos, o próprio autor é sempre favorecido pelo prematuro reconhecimento da falta de uma das condições da ação.

            Avançando, em alegando o autor abstratamente na inicial uma relação jurídica de direito material plenamente apta à obtenção da tutela jurisdicional favorável, in statu assertionis, caso o réu conteste e, em sua defesa alegue que a relação jurídica de direito material não ocorreu na forma como alegada pelo autor na inicial, instaurando a controvérsia, não há como o juiz utilizar o instrumento processual consistente no prematuro reconhecimento de verdadeira improcedência manifesta: se o que o autor narrou na inicial for verídico, o sistema permite ao juiz ofertar uma tutela jurisdicional favorável ao autor. Se, por sua vez o réu estiver com a razão, os fatos constitutivos do direito do autor, conforme alegados na inicial, não ocorreram, logo a sentença é de improcedência, e não de carência de ação.

            Voltando ao nosso exemplo, caso o autor A alegue na inicial de processo de conhecimento que celebrou com o réu B contrato de mútuo, a vencer em 30 dias, e que B não teria cumprido o contrato após o vencimento, e pleiteie a tutela condenatória de B em lhe devolver o valor emprestado, não há que se falar em carência da ação. Caso B conteste a ação e reconheça que celebrou contrato de mútuo, mas não com A, e sim com seu irmão C, por via transversa, B está negando que celebrou contrato de mútuo com A. Ora, provado que não houve o contrato de mútuo com a A, ao contrário do alegado pelo autor na inicial, o caso é, indubitavelmente de improcedência, não de carência. Ademais, a sentença de improcedência é realmente pacificadora e se sujeita à ação rescisória, ao contrário da sentença de carência, que não compõe a lide e não se sujeita à ação rescisória.

            Atualmente, são raros os doutrinadores que negam que os elementos utilizados para a verificação das condições da ação são extraídos da verificação da relação jurídica de direito material. [47] A grande controvérsia, doutrinária e jurisprudencial, contudo, encontra-se justamente na profundidade dessa verificação para detectar ser o autor carecedor de ação. Reconhecida pelo juiz ab initio, a doutrina e a jurisprudência são uníssonas em reconhecer que se trata de carência de ação, devendo o juiz extinguir imediatamente a relação processual sem julgamento do mérito, nos termos do artigo 267, inciso VI do Código de Processo Civil atual.

            A balda exsurge quando a relação processual se desenvolve e o juiz detecta ser o autor "carecedor de ação" não com base nos fatos por ele abstratamente alegado na inicial, mas sim com base nos fatos como realmente ocorreram e ficaram provados no decorrer da relação jurídica processual.

            Nesse caso, não há que se falar em utilizar um instrumento processual para se evitar o desenvolvimento de um processo absolutamente desnecessário e inútil, não, o processo já se desenvolveu, foi útil e apto a pacificar plenamente, compondo a lide, concedendo ao réu a tutela jurisdicional efetiva: deve o juiz julgar o pedido do autor improcedente. Entender o contrário é negar o caráter instrumental do processo, é valorizar o instrumento pelo instrumento, e não pelo seu fim que é justamente o de compor a lide, pacificando as relações humanas e impondo a fiel observância do direito material.

            O processo é um método desenvolvido com esse escopo pacificador. Esse método possui um filtro lógico para evitar o desenvolvimento de relações processuais desnecessárias. Se o desenvolvimento dessa relação processual é necessário para se verificar com segurança a plausibilidade da existência relação de direito material, não há que se falar em posterior utilização desse instrumento processual, desse filtro. Não porque o processo já se desenvolveu, mas justamente porque era absolutamente necessário esse desenvolvimento para se aferir a real correlação entre os atores da relação material com os atores da relação processual, para se verificar se o pedido realmente não era vedado pelo sistema nem decorreu de situação jurídica igualmente vedada e, por fim, para se aferir a real necessidade e adequação do meio eleito pelo autor.

            O que o filtro permite é justamente detectar liminarmente – e com absoluta segurança – uma manifesta improcedência num eventual julgamento de mérito a ser posteriormente feito. [48] Caso o autor, exemplificando, narre na inicial uma relação jurídica material dissimulando a falta de uma das condições da ação e o réu denuncie tal dissimulação em sua contestação, o juiz não poderá verificar com segurança essa manifesta improcedência, haja vista a controvérsia instaurada com a alegação do réu (e se o réu dissimulou os fatos nas alegações de sua resposta?).

            Mais uma vez exemplificando, caso o autor A proponha ação de cobrança em face do réu B alegando divida de jogo, o juiz tem segurança suficiente para através de atividade cognitiva superficial premeditar – com absoluta convicção e segurança - que o pedido do Autor será julgado improcedente (ainda que todo o alegado seja verdadeiro, ainda que o réu não conteste os fatos, o juiz estará cabalmente impossibilitado de acolher o pedido do autor por expressa vedação no direito material positivo). Nesse caso, o sistema permite (e quer) que o juiz, bem manejando o instrumento lógico e ético que é o processo, ceife imediatamente esse processo, julgando o autor carecedor de ação e extinguindo o processo sem julgamento do mérito.

            Diferente é o caso em que o autor A proponha a ação de cobrança em face do autor B alegando dívida proveniente de contrato de compra e venda, cuja mercadoria já tenha sido devidamente entregue. O juiz, analisando a relação de direito material in statu assertionis não poderá jamais, através de atividade cognitiva superficial, premeditar com o mínimo de segurança se o pedido do autor será julgado procedente ou improcedente. Portanto, é impossível o juiz manejar o instrumento processual para impedir o desenvolvimento de processos inúteis (reconhecer o autor A como carecedor de ação).

            Se oportunamente o réu B responde à pretensão do autor A alegando que a divida afirmada pelo autor na inicial na verdade decorre de jogatina, sendo, portanto, pedido impossível, a controvérsia estará instaurada, não podendo o juiz, mais uma vez, premeditar com o mínimo de segurança se o pedido do autor será julgado procedente ou improcedente. Logicamente, o juiz deverá determinar a produção de provas, fixando como ponto controvertido a origem da dívida: o alegado contrato de compra e venda ou a alegada jogatina entre autor e réu. Se a instrução processual evidenciar que o autor estava com a razão, comprovando a existência do contrato de compra e venda não cumprido, a sentença a ser proferida é de procedência, condenando o réu B a pagar o valor da dívida ao autor A.

            Se, contudo, ficar comprovado a origem da dívida como decorrente de jogatina, teríamos duas situações possíveis.

            A primeira delas seria a prolação de sentença de extinção do processo sem julgamento do mérito, reconhecendo o autor A como carecedor da ação por intentar pedido juridicamente impossível (ainda que A não tenha postulado dívida de jogo).

            Dessarte, a segunda, por nós defendida, é a prolação de sentença de improcedência, uma vez que o réu B logrou êxito em comprovar a inexistência da divida alegada pelo autor A na inicial. Ora, provando B que a dívida entre eles existente advém de jogo, conseqüentemente comprovou também que a dívida advinda do contrato de compra e venda afirmado pelo autor na inicial não existe, o que, seguramente, enseja a improcedência da ação. O reconhecimento pelo juiz de que a dívida é proveniente de jogatina constará apenas no corpo da motivação da sentença e, no dispositivo, o juiz decidirá a inexistência da dívida consoante alegada na inicial. Nada justifica o manejo pelo juiz de um instrumento processual que tem por objetivo primordial impedir o desenvolvimento de um processo inútil e desnecessário, haja vista que foi absolutamente necessário e útil o processo desenvolver-se até aquele momento, mais, foi indispensável. Somente após o completo desenvolvimento metódico do iter processual, com plena cognição, o juiz pôde decidir com segurança. Parece-nos que, querer usar, nesse caso, aquele instrumento processual apto a impedir o desenvolvimento de processos inúteis apenas porque a situação fática comprovada após exaustiva cognição se amoldou às situações abstratas em que se admite seu uso é não distinguir a relação de direito processual com a relação de direito material, privilegiando o instrumento pelo instrumento, negando veementemente o caráter instrumental do direito processual face o direito material. Ademais, há se atentar à observância da regra da correlação entre a inicial e a tutela jurisdicional proferida, regra insculpida nos artigos 128, 459 e 460 do Código de Processo Civil.

            Assim, defendemos que a ação deverá ser julgada no mérito, sendo a sentença, nesse caso, de improcedência e não de carência. Ademais, a sentença proferida nos termos dos incisos do artigo 267 do Código deve sempre ser encarada como forma anômala de extinção do processo, devendo ser relegada para situações excepcionais, nas quais é absolutamente impossível a prolação de sentença de mérito.

            Não se trata aqui de puro exercício doutrinário, de se adequar ou aceitar a teoria abstrata, teoria concreta ou a teoria eclética: trata-se de distinguir plenamente a relação jurídica de direito processual da relação jurídica de direito material e enaltecer o pragmatismo advindo do caráter instrumental do processo. É nítido que o escopo teleológico das condições da ação na forma como o legislador as incluiu no Código é um só: impedir o desnecessário desenvolvimento de uma relação jurídica de direito processual absolutamente desnecessária. Assim, se foi necessário o desenvolvimento dessa relação, não há qualquer lógica em extinguir o processo sem julgamento do mérito apenas porque ficou comprovado que a relação fática, ao avesso da relação afirmada abstratamente pelo autor na inicial, se amoldaria a uma das categorias de carência. Concluímos, portanto, que as condições da ação devem ser aferidas à luz da relação de direito material afirmada pelo autor na petição inicial. [49]

            Destarte, do equivocado reconhecimento de carência de ação decorrem complicações de ordem práticas e que, muita das vezes, prejudicam diametralmente os jurisdicionados: a sentença que reconhece o autor carecedor de ação não se sujeita à propositura de ação rescisória e não cumpre sua função pacificadora, uma vez que não se submete ao trânsito em julgado, não impedindo, em tese, a repropositura da ação já no dia posterior ao término do processo anterior. Para outra corrente, que vem ganhando adeptos, a sentença que declara o autor carecedor de ação impediria a repropositura da ação. Ora, entendemos que a emenda sairia pior do que o soneto: em não impedindo a repropositura da ação necessariamente a decisão teria caráter definitivo, fazendo, portanto, coisa julgada material. Contudo, ainda que imutável dita sentença de carência não se sujeitaria à desconstituição via ação rescisória, o que seria uma contradição inaceitável no sistema processual que é, acima de tudo, lógico, ético, seguro e justo.

            Conquanto defendemos a teoria da asserção (ou prospectação), que é como é conhecida a corrente doutrinária que defende que a atividade cognitiva do juiz voltada para a verificação da presença das condições da ação deve se dar in status assertiones, justamente por ser a que mais se coaduna com o caráter instrumental da relação jurídica de direito processual que não se deve confundir com a relação jurídica de direito material, mas que aquela só existe para essa, não podemos deixar de frisar que respeitada doutrina pátria não coaduna com esse pensamento, defensores da teoria da apresentação. [50]

            1.2 – Análise crítica das várias objeções à teoria da asserção

            Não obstante, mantemos nosso entendimento no que tange à analise das condições da ação in status assertiones. Não nos dobramos às duras criticas proferidas em face da teoria da asserção, muita das vezes criticas advindas exclusivamente do excessivo apego à teoria das condições da ação.

            Em face disso, modestamente tentaremos afastar, nas breves linhas que seguem, os principais argumentos traçados pela doutrina que expressamente repudia a análise das condições da ação in status assertiones.

            Uma das objeções [51] à teoria da asserção é a de que essa beneficiaria o autor que, contratando advogados "competentes", dissimularia na inicial a falta de uma das condições da ação. Ora, essa crítica seguramente não merece prosperar, de forma alguma. Como já vimos, quando o juiz reconhece previamente a falta de uma das condições da ação, extinguindo o processo antes mesmo de determinar a citação do réu, todos são beneficiados com esse reconhecimento de antemão, inclusive o próprio autor, que não será condenado em suportar os honorários sucumbenciais do advogado do réu. O único dispêndio que o autor poderá ter é arcar com as custas processuais e os honorários do seu advogado. Caso o advogado seja "competente" e dissimule a falta de uma das condições da ação na inicial, o grande prejudicado será o próprio autor: arcará com as custas processuais, arcará com os honorários de seu patrono, arcará com diligências dos oficiais de justiça para citação do réu e intimação de suas testemunhas, arcará com as despesas de suas testemunhas, arcará com honorários de eventuais peritos, arcará com honorários sucumbenciais do advogado do réu [52] e, muito provavelmente, arcará ainda com multa e indenização por litigância de má-fé, haja vista que, em regra, para dissimular a ausência de uma das condições da ação terá que alterar a veracidade fática, subsumindo-se assim ao preceito desenhado no artigo 17, inciso II do CPC.

            Ademais, ainda para aqueles que repudiam a teoria da asserção, os advogados dito "competentes" também poderiam perfeitamente dissimular uma carência de ação na inicial, a qual poderá ser reconhecida posteriormente com a resposta do réu e ou com a instrução da causa. Nesse caso, para esses, a falta de uma das condições da ação nos fatos como realmente ocorreram, e não como abstratamente narrados na inicial pelo autor, ensejaria a extinção do processo sem julgamento do mérito, declarando o autor carecedor da ação. Pois bem, na mesma situação fática, para os adeptos da teoria della prospettazione, com o reconhecimento posterior de que os fatos não ocorreram como narrados na inicial, ou seja, pelo reconhecimento da não ocorrência do fato constitutivo do direito do autor, a conseqüência não beneficiaria o autor sagaz que contratou advogado "competente", ao avesso, essa seria justamente a pior conseqüência que lhe poderia advir, ou seja, a extinção do processo com julgamento do mérito, julgando improcedente seu pedido, concedendo tutela jurisdicional favorável ao réu e passível de transito em julgado com seus efeitos. Não entendemos, portanto, a crítica, uma vez que os resultados serão bem mais severos para o autor caso contrate um advogado "competente", capaz de manipular a relação jurídica de direito material, alterando a realidade dos fatos como ocorreram. Ora, as conseqüências pragmáticas lhes serão bem mais austeras e indesejáveis, inclusive com prolação de tutela jurisdicional favorável ao réu e sujeita à imutabilidade decorrente da coisa julgada, o que não ocorreria pela corrente doutrinária diversa. Não vemos, assim, como prosperar a critica.

            Outra objeção apresentada, que também não nós parecer prosperar e que nos causa estranheza, seria a possibilidade do tribunal dar provimento a uma apelação interposta contra uma sentença de mérito nos casos em que o juiz "deveria" ter reconhecido a carência de ação, "suprimindo um grau de jurisdição". Por primeiro, essa crítica perdeu a sua razão de ser em função da recente reforma ocorrida no Código de Processo Civil, que permitiu expressamente ao tribunal julgar o mérito, quando possível, nos casos em que a sentença tenha sido proferida sem julgamento do mérito, consoante § 3.º acrescido ao artigo 515 pela lei 10.352/2001.

            Ademais, não obstante previsão tão expressa no Código, parece-nos que sempre foi assim: antes mesmo da reforma desapoiávamos sustentar a impossibilidade da comentada "supressão de instância". Sempre acreditamos que essa visão decorria de uma claudicante visão do binômio direito material e direito processual, principalmente pela visão distorcida dos efeitos processuais dos recursos, mormente do efeito devolutivo em sua profundidade, do qual sempre foi dotado o recurso de apelação, até antes mesmo da indigitada reforma.

            O § 1.º e o 2.º do artigo 515 do Código sempre devolveu expressamente ao tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, bem como os fundamentos do pedido e da defesa, ainda que a sentença não as tenha julgado. Ora, a lei já não fazia nenhuma distinção entre sentença com ou sem julgamento do mérito, ou entre defesa material ou defesa processual. Assim, antes mesmo da reforma, o tribunal poderia, com segurança, afastar a carência de ação (ou qualquer outro requisito de admissibilidade do julgamento do mérito) acolhida pelo juiz e, imediatamente, julgar o mérito, sem qualquer necessidade de se devolver os autos ao juiz a quo para prolação de nova sentença. Trata-se, nesse caso, da verificação da profundidade do efeito devolutivo dessa espécie recursal.

            A atividade cognitiva de segunda instância, embora limitada ao objeto da impugnação (cabeça do artigo 515, efeito devolutivo em sua extensão, reflexo do princípio dispositivo), deverá ser integral, incumbindo-lhe apreciar e julgar todas as questões suscitadas e discutidas no processo, considerando, inclusive, a fundamentação do pedido e da defesa, nas partes que não foram objeto de cognição pelo juízo singular, consoante o § 2.º do mesmo artigo 515 do Código.

            Trata-se, mais uma vez, de distorcida visão do binômio direito material e direito processual. Dava-se mais valor a uma regra processual doutrinária, que defendia a impossibilidade da dita "supressão de instância" do que ao próprio direito material violado. Foi preciso reformar a regra processual para dizer expressamente o que já estava dito outrora no mesmo artigo 515. Explicamos: antes da inserção, poderíamos até dizer desnecessária, do § 3.º ao artigo 515, já era plenamente possível ao Tribunal afastar a causa que extinguiu o processo sem julgamento do mérito e debruçar na análise e julgamento da própria relação de direito material controvertida, sem a necessidade de remessa dos autos ao juiz de primeira instância (o que ocorria amiúde nos Tribunais). Ora, mesmo quando a atividade cognitiva do juiz monocrático não tenha exaurido o deslinde de todos os pontos litigiosos, na forma como foram argüidos e debatidos pelas partes, a devolução do conhecimento da matéria impugnada ao tribunal deverá compreender não só as questões efetivamente resolvidas pelo juiz a quo, como também as que poderiam ser focalizadas pela sentença recorrida, tanto em relação às matérias de ordem publica, como em relação àquelas que dependem de provocação das partes (ainda que não mencionadas nas razões ou contra-razões de apelação). Ainda que não acolhidos, pelo juiz singular, todos os fundamentos do pedido ou da defesa, a apelação sempre devolverá (e já devolvia antes da reforma) ao juízo colegiado a cognição, também, daquele ou daqueles que não tenham sido sufragados pela sentença, não importa se essa pôs fim ao processo com ou sem julgamento do mérito. Ademais, não cabe ao intérprete criar empecilhos processuais à apreciação do mérito onde a própria lei não criou, desde que resguardado a segurança dos valores maiores do sistema, que, como vimos, é o contraditório, a ampla defesa, o devido processo constitucional, dentre outros. A extinção do processo sem julgamento do mérito é forma anômala e indesejável, exceção que deve ser evitada a todo tempo. Sempre que for possível proferir, com segurança, uma sentença de mérito, deve preferi-la o aplicador da lei, ainda que em segunda instância, sem qualquer risco de "suprimir uma instância".

            Face a essas breves considerações, concluímos que não merece guarida essa objeção, haja vista que o Tribunal pode sempre julgar o mérito (quando possível), independentemente de tê-lo feito, ou não, o juiz singular (e já podia antes mesmo da reforma que acrescentou o § 3.º ao artigo 515 do Código).

            Outra objeção traçada pela doutrina, e que também não merece melhor sorte, advoga que a sentença de improcedência de dívida de jogo negaria vigência ao artigo 814 do Código Civil, porquanto eventual pagamento posterior seria pagamento de dívida inexistente, e não de dívida não suscetível de cobrança judicial.

            Mas uma vez, essa objeção não prospera. Isso porque há que se observar os limites objetivos da coisa julgada da sentença de improcedência dessa dívida de jogo.

            Caso o autor tenha afirmado na inicial que se trata de dívida de jogo, o juiz conhecerá a ausência de uma das condições da ação (pedido juridicamente impossível) e o decretará carecedor de ação, a qualquer tempo [53], in status assertiones (à luz do afirmado na inicial).

            Por sua vez, caso o autor tenha contratado um advogado "competente" que tenha dissimulado a falta dessa condição da ação na inicial, afirmando, por exemplo, que se trata de dívida cuja origem tenha sido contrato de compra e venda, uma vez alegado e provado pelo réu que essa dívida teve sua origem no jogo, essa origem espúria da dívida vai constar apenas da fundamentação da sentença, na verdade, foi o modo que o réu utilizou para provar a inexistência da divida advinda de contrato de compra e venda como alegado na inicial, que é justamente o que constará no dispositivo da sentença e se sujeitará aos efeitos da coisa julgada. A dívida oriunda do jogo sequer foi objeto de julgamento pelo juiz (apenas foi um fundamento de defesa da inexistência da dívida oriunda do contrato afirmado), não se sujeitará aos efeitos da coisa julgada.

            Na eventualidade do devedor cumprir posteriormente sua obrigação natural, pagando a dívida de jogo, não há que se falar em ferimento ao artigo 814 do Código Civil, haja vista que essa dívida de jogo não foi nem superficialmente afetada pela prolação da sentença de improcedência da dívida de contrato de compra e venda.

            Ainda pela regra da correlação entre a sentença e a petição inicial, seguramente o juiz deve julgar improcedente o que foi pedido (dívida de contrato de compra e venda), uma vez que foi comprovado pelo réu a inexistência do fato constitutivo do direito do autor: o réu provou a inexistência do contrato de compra e venda, ainda que, para tanto, tenha invocado um outro contrato celebrado que logicamente afastou a possibilidade de existência daquele – o réu poderia ter se limitado a aduzir "não foi celebrado nenhum contrato de compra e venda do qual decorreria a dívida", mas, para ser mais minucioso e facilitar o trabalho cognitivo do juiz e o de produção de provas, preferiu aduzir "não foi celebrado nenhum contrato de compra e venda do qual decorreria a dívida, e sim, um carteado do qual decorreu uma dívida".

            Como os motivos pelo quais ficou provado a inexistência da relação jurídica de direito material (causa de pedir) da qual derivaria o pedido do autor não se sujeita à coisa julgada, ao qual se sujeita apenas o dispositivo da sentença (improcedência do pedido de pagamento de dívida advinda de contrato de compra e venda) a objeção traçada pelo mestre processualista, com todo o respeito, por nós parece que também não merece ser acolhida. Isso porque a dívida de jogo, como obrigação natural, sobrevive, ainda que desprovida de pretensão. Seu eventual cumprimento, ainda que posterior à sentença prolatada, não ensejará o direito de repetição.

            Por fim, a última crítica expressamente traçada pelo Professor Dinamarco em sua obra impar e de importância salutar ao amadurecimento do estudo do direito processual hodierno, trata justamente da hipótese de propositura simultânea, pelo mesmo autor, de dois ou mais processos visando a anulação de um mesmo contrato por motivos diversos. Julgado procedente um deles, conclui o mestre que, acaso aceito a teoria da asserção, a improcedência do outro se impõe, o que seria inaceitável.

            Contudo, nesse caso parece-nos que essa doutrina se confunde em relação a uma premissa básica da teoria da asserção: essa exige que a ausência de uma ou mais das condições da ação devam ser aferidas conforme a relação de direito material afirmada pelo autor na inicial, contudo, ainda que preferencialmente no primeiro contato do juiz com essa, essa verificação pode ser feita a qualquer tempo, ainda que após a realização de atividades probatórias. Contudo, ainda que reconhecida a destempo, deverá ser reconhecida in status assertiones. Só não foi reconhecida antes por dois motivos: ou porque o juiz não soube (ou não quis) manejar essa poderosa ferramenta processual que impede o desenvolvimento de processos absolutamente inúteis e desnecessários, ou porque houve um novo fato, superveniente, que afastou uma das condições da ação presentes na inicial in status assertiones.

            É o que ocorre na objeção traçada pelo eminente processualista. Trata-se de uma ocorrência superveniente que macula a própria relação jurídica de direito material como afirmada pelo autor na inicial, gerando uma carência de ação posterior, prejudicando a análise do meritum causae. Após a prolação de sentença de procedência no primeiro processo, o autor não tem mais interesse processual no prosseguimento do segundo feito, o que necessariamente impõe a extinção do processo sem julgamento do mérito. E essa carência da ação é perfeitamente auferível com o simples cotejo do fato superveniente com a inicial, in status assertiones, sem a necessidade de se cotejar com a relação de direito material como realmente ocorreu ou como alegada na resposta do réu.

            Alias, o mesmo raciocínio impera para a confusão processual, que o legislador optou por trata-la de forma distinta no inciso X do artigo 267 do Código.

            Se a confusão entre autor e réu ocorrer já no momento da propositura da demanda, certamente essa será indeferida por falta de interesse de agir, decretando o autor (e réu) carecedor da ação,

            Portanto, a confusão processual tratada no inciso X do indigitado artigo 267 do Código Processual certamente é a superveniente, que abrange aqueles casos em que, no curso da relação processual há uma modificação superveniente na relação jurídica de direito material que reflete diretamente na relação jurídica processual, fazendo coincidir as mesmas partes em ambos os pólos da demanda. Logicamente, o processo deverá ser extinto sem julgamento do mérito, e não improcedente (apenas em categoria distinta – art. 267, X, do CPC) por mera opção legislativa, sem deixar de ser, contudo, nítida falta de interesse processual.

            No exemplo citado pela doutrina em repúdio à teoria da asserção, há um fato superveniente que, cotejado com os fatos afirmados pelo autor, in status assertiones, lhe tolhem imediatamente o até então indubitavelmente presente interesse processual.

            Concluindo, traçamos apenas uma única objeção à teoria da apresentação, que repudia a teoria da prospectação, à qual não encontramos resposta satisfatória: Não sendo a carência de ação uma ferramenta processual que visa a impedir o desnecessário desenvolvimento de uma relação jurídica de direito processual absolutamente desnecessária, cujo resultado necessariamente será desfavorável ao autor, qual seria seu escopo, seu objetivo pragmático? Não se estaria extinguindo de forma anômala o processo, em detrimento do direito material, apenas por excessivo apego às normas processuais, que deveriam ser instrumentais, mormente a teoria das condições da ação?

            Curiosamente, na mesma obra em que repudia, já em capítulo subseqüente, o mesmo doutrinador parece defender a teoria da asserção. E nos dá um exemplo claro disso ao discorrer sobre demandas de condenação por danos decorrentes de acidentes automobilísticos propostas em face de quem já foi mas não é mais dono do veículo causador.

            Ora, é obvio que, nesses casos, o autor vai sustentar na inicial que o réu é proprietário do veículo causador, ou o era quando da ocorrência do acidente. Se o autor já na inicial delinear que o réu já não era proprietário do veículo quando aquele ocorreu, seguramente o juiz detectará imediatamente a carência de ação, ante a manifesta ilegitimidade passiva do anterior proprietário.

            Assim, o problema só surgiria, em tese, caso o autor afirme na inicial que o réu era proprietário de veículo quando o acidente ocorreu e esse, após sua defesa, consiga provar o contrário. Pela teoria que nós defendemos, a da asserção, o caso é típico de improcedência, pois o réu conseguiu provar que não deve ser responsabilizado pelos prejuízos advindos do acidente por não ser proprietário do veículo, ao contrário do afirmado pelo autor na inicial.

            Pela teoria da apresentação ("repudialista"), por sua vez, a relação jurídica de direito material, não como afirmada na inicial, mas como comprovada, claudica de uma das condições da ação, qual seja, a legitimidade da parte passiva (não há correlação entre o devedor da relação material com o réu da relação processual), ensejando assim a decretação de carência de ação e a extinção do processo sem julgamento do mérito.

            No entanto, ao citar esse e outros exemplos análogos, o mestre processualista – e com toda razão – critica decisões que optaram pela segunda opção, numa clara e evidente manifestação de afeto à teoria da asserção.

            Não fosse assim, sempre que o autor de ação de cobrança alegasse contrato de mútuo não cumprido e o réu, em sua defesa reconhecesse a relação jurídica material e alegasse e comprovasse o pagamento integral (defesa indireta material), o juiz deveria extinguir o processo sem julgamento do mérito, uma vez que falta ao autor o interesse processual (!!!).

            Diferente é o caso em que esse mesmo fato ensejador da carência de ação já possa ser aferido na inicial, in status assertiones: digamos que o mesmo autor de ação de cobrança alegasse contrato de mútuo e mencionasse, na inicial o pagamento integral? Seguramente, faltar-lhe-ia interesse processual. Não obstante, essa seria outra objeção que os contrários à teoria da asserção não logram êxito em responder satisfatoriamente.

            Entendemos, frisa-se novamente, que o reconhecimento da ausência de uma das condições da ação só tem sentido se for proveitoso para impedir, de forma absolutamente segura, o desnecessário desenvolvimento de processos supérfluos. Assim, se foi necessário o desenvolvimento da relação, não há qualquer lógica em extinguir o processo sem julgamento do mérito apenas porque ficou comprovado que a relação fática, ao avesso da relação afirmada abstratamente pelo autor na inicial, se amoldaria a uma das categorias de carência. Ora, se preciso for, o processo deve flexibilizar-se como instrumento efetivo de proteção do direito material e nunca o contrário, o que corresponderia a negar com veemência o caráter instrumental daquele.

            2 – Da visão distorcida do binômio direito e processo nos Tribunais

            Nesse tópico, cumpre-nos analisar a sistemática utilizada pelos tribunais pátrios para julgarem as mais diversas espécies recursais previstas no ordenamento jurídico e como a imprecisão técnica sobre os dois planos distintos do direito influencia de forma extremamente maléfica no resultado do julgamento e, via de conseqüência, na prestação da tutela jurisdicional.

            Nessa realidade, a problemática advém justamente do desrespeito direto ao momento de se analisar o recurso à luz do direito processual e ao momento distinto de se analisar o mesmo recurso agora à luz do direito material.

            Como vimos, o operador do direito não pode jamais confundir esses dois momentos distintos, sendo que o primeiro momento (análise processual) necessariamente procede ao segundo (análise material), que somente ocorrerá caso o primeiro resulte positivo. Contudo, como veremos adiante, ocorrem de forma assídua nos tribunais situações em que se embaralham os dois momentos, afrontando o binômio direito/processo, computando-se simultaneamente os votos referentes a analise recursal à luz do direito processual com os referentes a analise à luz do direito material. Aos casos, então.

            2.1 – Da impropriedade dos votos heterogêneos

            Um dos mais evidentes erros de julgamento nos tribunais são encontrados nos votos heterogêneos. Esses ocorrem quando nem todos os membros do tribunal que estão participando do julgamento estão pronunciando voto sobre a mesma matéria, seja de direito material, seja de direito processual.

            Ocorrem nos tribunais situações em que, após vários membros proferirem seu voto sobre o mérito do recurso, um dos membros suscita a falta de um dos requisitos de admissibilidade da espécie (plano processual). Nesse caso, cabe ao presidente suspender o julgamento do mérito e colher o voto de todos os membros a respeito da falta do requisito de admissibilidade suscitado por um dos membros. Caso o tribunal, por unanimidade ou por maioria, acolha essa suscitação de falta de um dos requisitos de admissibilidade, o recurso não será conhecido e os votos anteriormente prolatados sobre o mérito (plano material) deverão ser cabalmente desconsiderados, não merecendo sequer qualquer menção na respectiva ata de julgamento nem no posterior acórdão, que deverá apenas ser: ... Acórdão proferir a seguinte decisão: não conheceram do recurso, v.u. (ou por maioria), de conformidade com o voto do..., sem qualquer reminiscência aos votos de mérito.

            Por sua vez, caso o tribunal por maioria de votos rejeite a suscitação de ausência de um dos requisitos de admissibilidade do recurso, os votos outrora prolatados deverão ser considerados, e os demais membros deverão proferir seus votos em relação ao mérito, inclusive o membro que votou pelo não conhecimento do recurso. Nesse caso, o Acórdão deverá ser: ... Acórdão proferir a seguinte decisão: por maioria de votos, conheceram do recurso e, no mérito, deram (ou negaram) provimento v.u. (ou por maioria) para...

            A balda exsurge justamente quando o presidente do órgão julgador não faz respeitar essa regra necessária e que bem delimita os dois planos distintos, o plano do direito processual e o plano do direito material. São os conhecidíssimos Acórdãos: ...Acórdão proferir a seguinte decisão: por maioria de votos dão provimento ao recurso, vencido o desembargador J.M.R. que não conhecia do recurso... Ora, nesse caso, ocorreu o inconcebível computo de votos heterogêneos, o que acarreta prejuízos de ordem pratica à prestação da tutela jurisdicional. Nesse caso, o tribunal conheceu do recurso, ainda que por maioria. Cabia assim, ao membro hipotético J.M.R. proferir voto de mérito, que seria distintamente computado ao voto de mérito dos demais membros, podendo o Acórdão ser conhecido por maioria (o que não tem implicação prática) e, o que realmente importa, ser provido por unanimidade!

            Igualmente indesejável e o Acórdão em que se profere decisão não conhecendo do recurso por maioria, dando como vencido determinado membro que lhe dava provimento! Ora, se o recurso não ultrapassou a fase da analise à luz do direito processual, não há que se cogitar em analisa-lo à luz do direito material, sendo absolutamente inconcebível voto dando-lhe ou negando-lhe provimento.

            Uma das indesejáveis conseqüências práticas dessa verdadeira babel no computo dos votos é justamente permitir indevidamente o cabimento dos embargos de divergência quando esses efetivamente não caberiam, como no caso do recurso com decisão de provimento por maioria, em que determinado membro se limitou a votar pelo não conhecimento. Nesse caso, o presidente do órgão julgador deveria conclama-lo a se pronunciar sobre o mérito, haja vista que vencido na análise dos requisitos de admissibilidade. Caso seu voto de mérito seja pelo provimento do recurso, a decisão de mérito será unânime (sem nenhum prejuízo ou contradição ao seu anterior entendimento de ausência de um dos requisitos de admissibilidade do recurso), afastando definitivamente a possibilidade de cabimento de embargos de divergência.

            Mais patente ainda é a impropriedade quando se computam os votos heterogêneos impedindo o conhecimento e o provimento do recurso que deveria ser conhecido e provido. Explicamos. É o caso, v.g., de órgão julgador composto por sete membros em que, numa misturada teratológica, dois membros não conhecem do recurso, dois membros negam provimento ao mesmo recurso e os três últimos membros conhecem do recurso e lhe dão provimento.

            Nesse caso, seguramente o recurso deveria ser conhecido, pois três membros dele conheceram expressamente, e dois o conheceram implicitamente por proferirem decisão de mérito (negaram provimento, como vimos, a análise à luz do direito material pressupõe necessariamente a superação da analise à luz do direito processual). Logo, o tribunal conheceu do recurso por cinco a dois. Prosseguindo, no mérito o recurso poderia merecer a mesma sorte: três membros lhe deram provimento, vencidos outros dois membros no que tange ao conhecimento do recurso, caberia ao presidente colher-lhes os respectivos votos à luz do direito material que, acaso positivo, acarretaria no provimento do recurso.

            Pois bem, sabe-se que, indevidamente colhido os votos como no caso explanado (dois membros não conhecem do recurso, dois membros negam provimento ao mesmo recurso e os três últimos membros conhecem do recurso e lhe dão provimento), o resultado do julgamento será, consagrando a balburdia na colheita dos votos, o seguinte Acórdão: ... Acórdão proferir a seguinte decisão: por maioria de votos, o tribunal não conhece do recurso (ou nega provimento ao recurso), vencidos os desembargadores A, B e C que dele conheciam e davam provimento...

            Nesse caso, os prejuízos à prestação da tutela jurisdicional são incomensuráveis. Por inaceitável deficiência na distinção entre os dois planos do direito, computando votos heterogêneos, os tribunais sequer conhecem recursos que seguramente deveriam ser conhecidos e que poderiam ser providos.

            Frisa-se ainda que é muito fácil afastar essa impropriedade consubstanciada no computo simultâneo de votos heterogêneos. Basta o presidente do órgão colher separadamente os votos, por primeiro, de cada um dos membros do tribunal, em relação aos requisitos de admissibilidade da espécie recursal (processo) e, num segundo e distinto momento, acaso superado o primeiro momento, colher o voto separadamente de cada um dos membros em relação ao próprio mérito do recurso (direito material). Frisa-se ainda que, acaso suscitado mais de um motivo pelo não conhecimento do recurso, v.g. intempestividade e deserção, o presidente deverá colher os votos, ainda separadamente, em relação a cada um dos requisitos. Como no exemplo anterior, num órgão colegiado de sete membros, dois poderão não conhecer do recurso por entende-lo intempestivo e dois poderão não conhece-lo por deserção. Logicamente, o recurso deverá ser conhecido. [54]

            2.2 – Julgamento dos Embargos de Declaração nos Tribunais

            Um dos mais evidentes erros de julgamento nos tribunais são encontrados nos embargos de declaração. Partindo da hoje quase pacífica premissa de que os embargos de declaração são efetivamente espécies recursais, seus julgamentos necessariamente consistem em dois momentos distintos: no primeiro a análise da presença dos requisitos de admissibilidade e, caso presente todos esses requisitos, num segundo momento a análise do "mérito" do recurso que, como sabemos, consiste em verificar se houve alguma omissão, contradição ou obscuridade no pronunciamento jurisdicional. Então, como em todo e qualquer recurso o tribunal primeiro deve verificar se conhece ou não conhece os embargos e, caso conheça, num segundo momento, verificar se dá provimento ao recurso (reconhecendo e sanando a contradição, omissão ou obscuridade) ou se nega provimento ao recurso (afirmando que a decisão recorrida não padece dos vícios ensejadores dos embargos).

            Assim, na analise dos embargos de declaração à luz do direito processual, que necessariamente antecede a análise à luz do direito material, o tribunal deverá se limitar a verificar a coexistência dos requisitos de admissibilidade pertinentes à espécie, que são: (a) o cabimento do recurso – o embargante deve alegar a existência de contradição, omissão ou de obscuridade na decisão recorrida, (b) a legitimidade para recorrer – as partes, o Ministério Público e o terceiro interessado juridicamente, (c) a tempestividade – em regra, 5 dias, (d) a regularidade formal – forma escrita, e (e) a inexistência de fato extintivo ou impeditivo do poder de recorrer.

            Caso o tribunal, pelo voto da maioria dos julgadores que participarem do julgamento, se convença da presença de todos os requisitos de admissibilidade, o recurso deverá ser conhecido. Caso contrário, basta a ausência de um dos requisitos, para que os embargos não sejam conhecidos.

            Uma vez conhecido os embargos, o tribunal deverá julgar o mérito, isto é, verificar se a contradição, omissão ou obscuridade alegada pelo embargante realmente ocorreu e, caso positivo, deverá dar provimento ao recurso sanando o vício alegado.

            Contudo, estranhamente e sem qualquer justificativa plausível, os tribunais de forma reiterada utilizam a imprópria terminologia acolheu ou rejeitou os embargos, sendo cabalmente impossível aos destinatários da decisão saberem se os embargos não sobreviveram à análise dos pressupostos de admissibilidade ou se o tribunal entende que não houve a alegada contradição, omissão ou obscuridade.

            Explico: caso o tribunal acolha (rectius: conheça e dê provimento) os embargos, os destinatários saberão com absoluta segurança que eles foram conhecidos e, no mérito, providos. A balda exsurge quando o tribunal rejeita os embargos. Nesse caso, caberá aos destinatários da decisão, após análise exegética do acórdão, inferirem se o tribunal não conheceu dos embargos ou se deles conheceu porem negou-lhes provimento, o que nem sempre poderá ser realizado com efetiva segurança.

            Mais uma vez, a solução para essa problemática é deverás simples e depende apenas da perfeita distinção entre os dois planos do direito, o plano do direito material e o plano do direito processual, bem como ao respeito à terminologia correta a ser empregada a cada um dos respectivos planos.

            3 – Do mérito nos recursos extraordinários lato sensu

            Cumpre-nos, nesse momento, a análise do julgamento dos Recursos dito extraordinários nos Tribunais sob a ótica da indesejável confusão advinda do imperfeito conhecimento do binômio direito e processo.

            Insta aduzir, ab initio, que reportamo-nos aos recursos extraordinários em sua acepção lato sensu, ou seja, abarcando tanto o Recurso Extraordinário stricto sensu, quanto o Recurso Especial. Frisa-se que ambos são recursos extraordinários em razão de seus peculiares escopos e das restrições aos seus cabimentos, nos quais se discute exclusivamente matéria de direito, sendo vedada a apreciação de matéria fática.

            A problemática é encontrada quando se tem a interposição do Recurso Extraordinário com fundamento no artigo 102, inciso III, alínea "a" da Constituição Federal [55] e a interposição do Recurso Especial com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea "a", também de nossa Carta Maior [56].

            O conflito, no que tange ao julgamento dessas duas espécies recursais, exsurge justamente no momento em que o Tribunal verifica se estão presentes os requisitos de admissibilidade de cada um deles (processo) para, posteriormente, em momento processual distinto, verificar o mérito do recurso (direito material). Numa confusão inaceitável, os Tribunais de Superposição vêm, reiteradamente, embaraçando de forma inaceitável o binômio direito e processo, do qual surgem incomensuráveis prejuízos insanáveis para as partes.

            Como é sabido, assim como os processos nas instancias originárias [57], o exame de um recurso pressupõe duas análises distintas e sucessivas: primeiro os requisitos de admissibilidade recursal (plano do direito processual) e, sucessivamente, o mérito (plano do direito material).

            Os recursos especial e extraordinário recebem um primeiro juízo de admissibilidade exercido ainda no tribunal recorrido (art. 542, § 1º, do CPC), geralmente realizado pelo seu membro Decano ou pelo seu Presidente – que, se resultar positivo, não gera preclusão para que os tribunais de superposição reexaminem a matéria, mas, se negativo, poderá importar no trânsito em julgado da decisão, caso não manejado tempestivamente o recurso cabível dessa decisão (agravo de instrumento). Nessa fase, é realizado o exame da regularidade formal do recurso, abarcando todos os requisitos gerais de admissibilidade de todo e qualquer recurso, como preparo, tempestividade, legitimidade, interesse em recorrer, dentre outros, bem como os requisitos formais específicos do recurso especial e do extraordinário, singulares que são, cujo âmbito se estende além do preenchimento das exigências constitucionais, mas também àquelas decorrentes do Código Processual, do Regimento Interno de cada um dos tribunais e ainda de súmulas de jurisprudências que contemplam numerosos outros requisitos de admissibilidade, como é o caso do prequestionamento, por exemplo.

            Pois bem: no caso dos recursos extraordinários lato sensu tem-se por primeiro a análise processual de admissibilidade do recurso que, como vimos, deve ser feita tanto no tribunal recorrido (determina ou nega seguimento ao recurso) quanto no tribunal recorrente (conhece ou não conhece do recurso) e, numa fase seguinte, caso o recurso logre êxito em ultrapassar a primeira (ou seja, caso o recurso seja conhecido), o tribunal ad quem, e apenas esse, deve julgar o mérito (dando ou negando provimento ao recurso, mantendo ou reformando o acórdão recorrido).

            No caso dos recursos interpostos com base nas alíneas constitucionais aventadas, essa análise posterior – que corresponde ao julgamento de mérito do recurso – corresponde justamente à verificação se o acórdão recorrido contrariou ou não o texto constitucional (extraordinário) ou a legislação infraconstitucional afirmada (especial). Diz-se, na praxe forense, que o tribunal verificará se houve ou não contrariedade da decisão à lei federal ou à constituição. Nisso consiste o julgamento do mérito (plano do direito material) desses recursos.

            Portanto, presente todos os requisitos processual, o tribunal deve conhecer do recurso (ou não conhecer, na ausência de um deles) e presente a contrariedade, deve o tribunal dar provimento ao recurso (ou negar, na ausência da afirmada contrariedade).

            A balda exsurge quando, presente todos os requisitos de admissibilidade do recurso (plano do direito processual), o tribunal delibera que o acórdão recorrido não apresentou a afirmada contrariedade (plano do direito material), proclamando que "não conhece do recurso por ausência de contrariedade" (!!!). Frisa-se que essa absurda e inaceitável confusão entre o plano do direito material com o plano do direito processual infelizmente ocorre com regular assiduidade tanto no STJ (julgados) quanto no STF (julgados).

            Ademais, perniciosa confusão entre os dois planos distintos (direito material / direito processual) ocasiona incomensuráveis problemas que impedem a perfeita oferta da tutela jurisdicional. Trataremos dos principais.

            Um desses problemas advindos diretamente e tão somente dessa indesejável confusão pode ser verificado na eventualidade de propositura de ação rescisória. Ora, se o tribunal proferiu decisão "não conhecendo o recurso", ele não julgou o mérito (embora saibamos que, nesses casos em que ele declara inexistir a contrariedade afirmada, ele efetivamente julgou o mérito – plano do direito material). Nesse caso, como não houve apreciação do mérito (!!!), o acórdão proferido não desafiará a rescisória, nos termos do artigo 485 do CPC, apenas desafiando esta o acórdão recorrido.

            Conseqüência abominável: em que pese o tribunal ter efetivamente enfrentado e julgado o meritum causae do recurso extraordinário, o prazo para a propositura da ação rescisória será contado a partir da intimação da decisão anterior (recorrida) e, na grande maioria das vezes, a parte não poderá sequer valer-se da rescisória por força da concretização do prazo decadencial de 2 anos dessa. Ademais, ainda que não transcorrido o apontado prazo decadencial, ter-se-ia, por força desse desacerto quando aos dois planos distintos do direito, uma situação deveras inusitada: ainda que o tribunal de superposição tenha efetivamente conhecido do recurso e analisado o mérito de forma exauriente, competente para o julgamento da rescisória seria o tribunal prolator da decisão recorrida, em vez daquele (bem como o objeto do pedido rescisório, que seria o acórdão proferido pelo tribunal estadual ou regional federal, ao invés do proferido pelo respectivo tribunal de superposição, STJ ou STF).

            Outro problema advindo dessa indesejável confusão se verifica quando se apresenta um recurso extraordinário (lato sensu) interposto adesivamente a outro. Consoante determina o Código Processual Civil, em seu artigo 500, inciso III, o recurso interposto na forma adesiva não é sequer conhecido quando não o for o principal. Ora, se o tribunal declara não conhecer o recurso principal (quando na verdade o conheceu, mas negou provimento), conseqüentemente não conhecerá o recurso interposto adesivamente, que poderia preencher todos os requisitos de admissibilidade e, eventualmente, poderia realmente apontar contrariedade existente no julgado recorrido.

            Assim, por um erro inaceitável do tribunal, falhando na prestação da tutela jurisdicional, o segundo recorrente injustamente não terá o seu recurso sequer conhecido, quando o do primeiro recorrente efetivamente foi conhecido e julgado.

            Por fim, outra indesejável conseqüência dessa confusão entre o juízo de admissibilidade (processo) e o julgamento do mérito (direito) é a invasão inconstitucional da competência dos tribunais de superposição pelos tribunais de segundo grau quando no exercício do juízo de admissibilidade. O tribunal a quo, primeiro a realizar o exame de admissibilidade do recurso extraordinário lato sensu deve se limitar ao plano do direito processual, sendo-lhe expressamente vedado, pela Constituição da República, analisar o plano do direito material – artigo 102, III e artigo 105, III, ambos da CR – verificando se ocorreu ou não a afirmada contrariedade.

            Outrora, a Súmula de jurisprudência número 400 do Supremo Tribunal Federal conferiu competência para a atuação dos tribunais recorridos para verificarem os recursos extraordinários à luz do direito material, julgando o próprio meritum causae.

            A indigitada súmula permitia ao tribunal prolator da decisão recorrida e responsável pela primeira análise de admissibilidade, verificar se houve "razoável interpretação à lei" ainda que não fosse a melhor, permitindo, de forma teratológica que uma decisão não diametralmente correta, mas "razoável", não autorizava a remessa dos recursos extraordinários lato sensu aos tribunais de superposição. Frisa-se que, com a nova redação constitucional, a Súmula 400 do STF seguramente não mais se aplica.

            Assim, sempre que o Desembargador Decano, ou outro prolator de decisão monocrática que denegar seguimento a recurso extraordinário lato sensu interposto com fundamento na contrariedade do julgado por entender inexistente essa contrariedade, seguramente estará indevidamente usurpando competência exclusiva dos tribunais de superposição.

            Claramente, o acerto ou não do tribunal a quo sobre a interpretação da norma não integra o plano do direito processual, sendo matéria de mérito (plano do direito material) que somente pode ser enfrentada pelo respectivo tribunal de superposição, por força de previsão constitucional expressa e cristalina que lhes deferiu competência para a manifestação acerca da correta interpretação do direito constitucional e infraconstitucional federal. Infelizmente, essa usurpação de competência ocorre diariamente em nossos tribunais regionais federais e nos estaduais, fazendo-se necessário a interposição de inúmeros agravos de instrumentos dessas reiteradas decisões que, indevidamente e a todo custo, denegam seguimento aos recursos extraordinários lato senso.

            Novamente, a solução é extremamente simples e prescinde de maiores esforços: basta o perfeito entendimento dos dois planos distintos do direito e o respectivo respeito à eles: ao tribunal recorrido cabe apenas e tão somente a análise realizada no plano do direito processual, verificando fielmente e tão somente a presença de todos os requisitos de admissibilidade da espécie. Ao tribunal recorrente, por sua vez, caberá a cognição plena e exauriente do recurso à luz de ambos os planos, cada qual no seu momento específico, por óbvio, evitando os votos heterogêneos, como vimos.

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Sobre o autor
Ricardo Santos Ferreira

advogado na área empresarial, professor de Direito Empresarial no Centro Universitário Unimódulo, professor de Direito Processual Civil e Direito Administrativo no Curso Mérito, professor de Direito Processual Civil no Curso Exord, professor de Direito Processual Civil e Direito Tributário no curso Alfa & Ômega, especialista em Direito Processual Civil, Direito Tributário, Direito Administrativo e Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Ricardo Santos. Direito material e direito processual:: a problemática advinda da incompreensão do binômio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1265, 18 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9283. Acesso em: 16 abr. 2024.

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