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Eutanásia, morte assistida e ortotanásia:

dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte?

27/01/2007 às 00:00
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Os filmes Mar Adentro (que conta a história de Ramón Sampedro, que lutou até o último dia de sua vida para legalizar a eutanásia na Espanha) e Menina de Ouro reacenderam, em 2005, a velha polêmica em torno da eutanásia, que foi retomada, no final de 2006, com a morte do poeta e escritor italiano Piergiorgio Welby. Antes, em 2003, grande celeuma já havia causado a morte de Vicent Humbert, um francês de 22 anos (que morreu com a ajuda da mãe e do seu médico).

Em nossa opinião, dono da vida, o ser humano deve ser também, dentro de determinadas circunstâncias e segundo certos limites, o dono da sua própria morte. Não há nenhuma censura (reprovação) ética ou jurídica na chamada "morte digna", que é a morte desejada por quem já não tem mais possibilidade de vida e que, em estado terminal, está sofrendo muito. A morte nessas circunstâncias, rodeada de vários cuidados (para que não haja abuso nunca), não se apresenta como uma morte arbitrária, ou seja, não gera um resultado jurídico desvalioso, ao contrário, é uma morte "digna", constitucionalmente incensurável.

Todos esses temas (eutanásia, morte assistida ou ortotanásia) continuam muito nebulosos no nosso ordenamento jurídico. Grande parte dos doutrinadores (com visão puramente formalista do Direito penal) afirma que estaríamos diante de um crime. Formalmente a outra conclusão não se pode mesmo chegar. Mas esse enfoque puramente formal da questão merece ser totalmente revisado.

Na nossa opinião, mesmo de lege data (tendo em vista o ordenamento jurídico vigente hoje), desde que esgotados todos os recursos terapêuticos possíveis e desde que cercada a morte de certas condições razoáveis (anuência do paciente, que está em estado terminal, sendo vítima de grande sofrimento, inviabilidade de vida futura atestada por médicos etc.), a eutanásia (morte ativa), a morte assistida (suicídio auxiliado por terceiro) e a ortotanásia (cessação do tratamento) não podem ser enfocadas como um fato materialmente típico porque não constitui um ato desvalioso, ou seja, contra a dignidade humana, senão, ao contrário, em favor dela (no sentido de que a ortotanásia é juridicamente irreprovável cf. Luís Roberto Barroso, Folha de S. Paulo de 04.12.06, p. C4).

A essa conclusão se chega quando se tem presente a verdadeira e atual extensão do conceito de tipo penal (dado pela teoria constitucionalista do delito, que sustentamos com base em Roxin, Frisch e Zaffaroni), que abrange (a) a dimensão formal-objetiva (conduta, resultado naturalístico, nexo de causalidade e adequação típica formal à letra da lei); (b) a dimensão material-normativa (desvalor da conduta + desvalor do resultado jurídico + imputação objetiva desse resultado) e (c) a dimensão subjetiva (nos crimes dolosos).

A "morte digna", que respeita a razoabilidade (quando atendida uma série enorme de condições), elimina a dimensão material-normativa do tipo (ou seja: a tipicidade material) porque a morte, nesse caso, não é arbitrária, não é desarrazoada. Não há que se falar em resultado jurídico desvalioso nessa situação.

A base dessa valoração decorre de uma ponderação (em cada caso concreto) entre (de um lado) o interesse de proteção de um bem jurídico (que tende a proibir todo tipo de conduta perigosa relevante que possa ofendê-lo) e (de outro) o interesse geral de liberdade (que procura assegurar um âmbito de liberdade de ação, sem nenhuma ingerência estatal), fundado em valores constitucionais básicos como o da dignidade humana.

Todas as normas e princípios constitucionais pertinentes (artigos 1º, IV - dignidade da pessoa humana -; 5º: liberdade e autonomia da vontade etc.) conduzem à conclusão de que não se trata de uma morte (ou antecipação dela) desarrazoada (ou abusiva ou arbitrária).

Não há dúvida que o art. 5º da CF assegura a inviolabilidade da vida, mas não existe direito absoluto. Feliz, portanto, a redação do art. 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz: ninguém pode ser privado da vida "arbitrariamente".

Há muitos que afirmam que a vida e a morte pertencem a Deus (isso decorre da relevante liberdade constitucional de crença). Mas no plano terreno (e jurídico) o que temos que considerar é a Constituição Federal, os tratados internacionais e o Direito infraconstitucional. Na esfera constitucional o fundamental nos parece respeitar os princípios da dignidade humana e da liberdade (que significa direito à autodeterminação). Eles não conflitam com o direito à eutanásia ou ortotanásia ou morte assistida, ao contrário, constituem a base da chamada "morte digna".

Por seu turno, proclama o Direito Internacional vigente no Brasil (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, art. 6º, e Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San Jose -, art. 4º), que conta com status supralegal, nos termos do voto do Min. Gilmar Mendes (STF, RE 466.343-SP, rel. Min. Cezar Peluso), o seguinte: o direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deve ser protegido por lei e ninguém pode ser arbitrariamente privado dele.

Enfatizando-se: ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Em conseqüência, havendo justo motivo ou razões fundadas, não há como deixar de afastar a tipicidade material do fato (por se tratar de resultado jurídico não desvalioso). Essa conclusão nos parece válida seja para a ortotanásia, seja para a eutanásia, seja para a morte assistida, seja, enfim, para o aborto anencefálico. Em todas essas situações, desde que presentes algumas sérias, razoáveis e comprovadas condições, não se dá uma morte arbitrária ou abusiva ou homicida (isto é, criminosa) (para aprofundar seus conhecimentos sobre essa questão, veja www.lfg.com.br).

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia:: dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1305, 27 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9437. Acesso em: 25 nov. 2024.

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