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Violência e crime, sociedade e Estado

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23/12/1998 às 00:00
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POLÍCIA EM CRISE

A questão econômica que envolve a polícia e os policiais não pode e não deve ser resolvida, por ambas partes (governos e policiais), como se tal atividade pública fosse equiparável às demais; sucede que para além da essencialidade do serviço, há um diferencial radical que é o poder das armas (greve ou movimento reivindicatório de policiais soa, quase sempre, como coação armada) e a própria autojustificação institucional : quando os mantenedores da ordem e da segurança geram, ainda que por justa motivação, a desordem e a insegurança, já perdem, desde já, a razão de existir.

Por outro lado, só a rígida disciplina castrense, por certo, não será suficiente para conjurar o perigo da polícia em desatino, eis que o desamparo material da família desestabiliza até quem está desempregado, que dirá um estressado policial, tal quadro é psicossocial e institucionalmente preocupante. Em face da delicada atuação social, pesa sobre o policial um permanente ônus pessoal de correção ético-profissional, por isso mesmo ele carece de segurança econômica, psicológica e técnico-profissional, sendo assim a tranqüilidade de todos e cada um, proporcional encargo individual e social. Até porque uma sociedade que não pode (ou não quer, ou não sabe) custear serviço tão essencial, cuidar de reduzir e de prevenir a violência e o crime, não estará suficientemente apta a guardar suas riquezas e sua paz social e individual.

O alto índice de vitimização (fatal ou menos, da polícia e até dos delinqüentes) no trabalho da polícia é sério sintoma de deficiência profissional. É alarmante o alto índice de baixas entre os policiais, máxime entre os PMs cujas agruras da atividade policial são agravadas pelas do regime militar (que não deve ser formação prioritária de polícia alguma, só mesmo da "polícia" das policias: o Exército) e outras mazelas (escalas apertadas, salários, moradias perigosamente promíscuas) geram estresse profissional e suicídios. Em qualquer instituição este sombrio quadro é preocupante, todavia na polícia a todos deveria incomodar. A frustração profissional e familiar, a baixa auto-estima, a subvalorização social são fatores sempre deletérios, contudo quando se trata de policial, por razões obvias, são potencialmente perigosos: o descontrole mental de um policial desarmado já é alarmante; quando armado é a negação da razão de ser da polícia.

O Policial de nosso dias, mais que adestramento militar (ordem unida, fardamento, preparo físico) que deve ser apenas parte da boa habilitação básica (com reciclagens periódicas) de todo e qualquer policial, carece de melhor formação (não informação c/ocorre hoje) jurídico-humanística (IED, Dir.Constitucional, Criminologia, D.Penal e Processo Penal, Medicina Legal, Cidadania e direitos humanos...), além das demais disciplinas necessárias (básica ou de complementação). Estas disciplinas jurídicas deveriam ser cursadas, no caso de policial em formação de nível superior, em faculdades oficiais (estaduais ou federais, até por serem gratuitas) de Direito juntamente com os alunos regulares destas, até porque, hoje, é muito comum que os formados por academias policiais busquem as faculdades de Direitos para se graduarem e no mais das vezes aproveitando (como já cursadas naquelas academias) muitas disciplinas jurídicas nem sempre concluídas com o mesmo nível de exigência ("aqui forma-se policiais, não advogados ! ...")



A POLÍCIA DE QUE PRECISAMOS

O estágio de desenvolvimento (inclusive do crime) do país não mais permite disfunções e reforço na equação custo-benefício subjacente da criminalidade. A globalização do crime parece ser, dentre todas, a mais efetiva e ameaçadora; daí porque é urgente uma reforma séria e profunda (não apenas maquiagem como até aqui) no setor da segurança pública, que, aliás, só é tarefa da polícia enquanto efeito, eis que os muitos fatores determinantes da violência e da criminalidade são direta ou indiretamente atribuição de muitas outras agencias estatais, das empresas, dos meios de comunicações, da sociedade em geral. Convém reafirmar que num Estado de Direito a atividade policial deve ser coordenada e executadas por profissionais do Direito, que em sua dimensão imediata é operado pelo juiz, promotor, advogado e policial (estes dois últimos representam a ponta sensível do Estado de Direito em funcionamento).

Policial bem preparado deve estar conscientizado disto e da dignidade e importância de seu trabalho, é, pois, urgente que se logre resgatar a boa imagem da polícia. Já por ser o exercício da função policial um eterno ônus ético-profissional que pesa sobre cada policial, ela não é ocupação para qualquer um e menos ainda de superficial e rápida formação básica (estágio em que se deve aproveitar traços da instrução militar: adestramento físico, fardamento, ordem unida, conjugada com o elementar preparo jurídico-humanístico) tal como costuma ocorrer entre nós (p.ex. 60 dias p/o recruta policial). O policial prepotente (quase sempre mais a favor do meliante rico que da vitima pobre, negra, gay...), espalhafatoso e que troca a inteligência pela força bruta (aqui é melhor o respeito que o temor) reforça a baixa estima social de sua nobilíssima profissão. Se a força muscular houvesse de ser relevante nesta função estatal, o melhor recrutamento policial seria feito dentre os estivadores.



REPENSANDO O TEMA

Nas últimas décadas a inteligência humana vem sendo desafiada a dar solução não ao crime e à violência, mais sim ao exagero de seus índices. Assim, desde a Comissão dos Padrões e Fins da Justiça Criminal (EUA, final dos anos 60), passando pelo Relatório Peyreffite (França/1976) busca-se aquele objetivo e com certa taxa de êxito. Já em nosso pais, vimos discutindo desde 1979, vide relatórios dos grupos de cientistas sociais e dos juristas que se reuniram (em que pese dois relatórios), pioneiramente no Brasil, para estudar a "crescente onda de crime e violência que lavra nos centros populosos do país" (Port. MJ/791,14/08/79). De mesma forma e mais recentemente as recomendações aprovadas no 9º Congresso/ONU sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente (Cairo, maio/95) e reafirmadas pelas Resoluções 8 e 9 do Congresso/ONU de Caracas (1980) apresentam conclusões e sugestões muitas delas aqui estampadas.

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Assim, parece-nos transparente a ineficácia (a reincidência é maior entre os ex-detentos) e a inviabilidade (geração de vagas infinitamente menor que a demanda) de penas privativas de liberdade, que devem ser tidas como último remédio (só p/condenados de alta periculosidade e crime graves), preferindo-se o leque mais amplo de penas alternativas (p/os delitos de transito, p.ex.). Faz-se necessária a aproximação, no tempo, entre crime e condenação; assim como, melhor consideração incentivadora da colaboração eficaz (delação premiada).É impositivo melhor definição dentro das delegacias dos setores específicos de polícia judiciária (apurações/investigações de crimes), de policiamento velado nas vias públicas e de patrulhamento ostensivo e fardado e cujas equipes (de constituição constante, o máximo possível, para favorecer o entrosamento c/a comunidade: o policial do quarteirão, da quadra...) se renderiam, aos turnos, na delegacia. A abertura da delegacia policial, tanto quanto da escola e do centro social, à comunidade circundante, sob a liderança do delegado (que ao depois poderia ser escolhido em co-participação: comunidade e chefe da polícia), é fator preponderante da melhoria da imagem e do desempenho da polícia.

Outras sugestões: repensar um melhor aproveitamento para o inquérito policial; federalizar certos crimes, para melhor enfrentá-los (livre de interferências locais), tais como aqueles contra os direitos humanos, contrabando de armas e outros que são objeto de tratados internacionais; promoções de soldado a capitão (talvez último posto na nova polícia) através de cursos intermediários (necessariamente em convênio com as universidades: para enriquecer, nobilitar e entrosar o policial) e merecimento (dentro da nova mentalidade) profissional e em interstícios mínimos de exercício profissional; o estabelecimento de um fundo financeiro de emergência, a partir de um percentual mínimo do orçamento de cada Estado, com duração preestabelecida (03/05 anos), para aplicação exclusiva (condicionado à liberação de verbas federais...) em segurança pública; criação de órgão federal coordenador, modernizador, centralizador das pesquisas/estatísticas, informações criminais. Criação de ouvidorias (ombudsman) externas, com amplos poderes e recursos para a correição de desvios em todos as organizações policiais, sugestão esta que apresentamos já 1979, naquele encontro pioneiro.



NOTAS

1) ‘É dando que se recebe’; ‘antes esperto que honesto’; lei de Gerson; a banalização de valores (pilares de qualquer boa convivência grupal, tais como a vida, a virtude de caráter, amor, justiça...) Boa parte de nossos meios de comunicação, sobretudo a TV (concorrente desproporcional da escola, que em termos de formação do brasileiro sai sempre perdendo), tem sido potente dissolvente daqueles princípios de sanidade social, porque infundem, franca ou subliminarmente, no povo, a relativização daqueles valores. Entre nós a maior rede TV, a nossa quase "alma nacional", poderia contribuir muito mais com nossas crianças esperanças se incorporasse e liderasse, efetiva e afetivamente, em sua programação diária a campanha ‘por uma TV mais ética e saudável". Aliás, é estranho que tenhamos desenhos animados na madrugada (na TV comum) e sexo, violência, banalização dos fundamentais valores da sociedade, de forma implícita e explicita e em qualquer horário. O grotesco e a truculência televisivas, em concurso com outro muitos fatores criminógenos (e temos senão todos, o bastantes), comprometem qualquer excelente política criminal. É interessante notar que a publicidade já melhorou bastante, após o novo referencial trazido pelo Código do Consumidor (e a auto-regulamentação).
2) Na passagem em que o moleque e ex-escravo Prudêncio surra outro negro mais fraco só para "se desfazer das pancadas recebidas..."
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Sobre o autor
Luiz Otavio O. Amaral

advogado, professor de Direito da Universidade Católica de Brasília, autor de obras e ensaios jurídicos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Luiz Otavio O.. Violência e crime, sociedade e Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/945. Acesso em: 3 mai. 2024.

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