Em vigor desde 08 de outubro de 2006, após vacatio legis de 45 dias, a Lei nº 11.343/06 produziu modificações importantes quanto ao delito de associação ao tráfico, atualmente previsto no seu art. 35.
O art. 35, caput, tipifica a associação ao tráfico nos mesmos moldes do tipo anterior, previsto no revogado art. 14, da Lei nº 6.368/76. Assim, forma-se a tipicidade para o tipo através do vínculo estável entre pelo menos dois agentes para a prática dos crimes previstos no art. 33, caput e §1º e art. 34, da Lei Antidroga.
Note-se que a nova lei distingue o tratamento fornecido àquele que instiga, induz ou auxilia ao consumo de entorpecente (art. 33, §3º) e àquele que fornece gratuitamente entorpecente, para uso compartilhado (art. 33, §4º), condutas estas que anteriormente se subsumiam ao art. 12, §2º, II e art. 12, caput, da Lei nº 6.368/76 e que atualmente são sancionadas mais brandamente. Por falta de previsão legal, eventual associação estável nestes delitos não configura o crime do art. 35, da Lei Antidrogas.
Em seu parágrafo único, o art. 35 cria uma nova forma de associação estável, quando pertinente ao exercício do financiamento ou custeio da atividade de tráfico (art. 36, da Lei nº 11.343/06), fixando a mesma pena do caput.
Este figura delituosa é nova em nosso ordenamento jurídico, assim como a incriminação autônoma do financiador do tráfico, sujeitando-se ao rigor da irretroatividade, conforme o art. 5º, XL, da CF, por se tratar de novatio legis incriminadora.
A nosso ver a remissão em separado (entre o caput e o §1º, do art.35) não favorece a compreensão do tipo. Afinal, faz parecer que a associação deve ser feita pelos agentes com a finalidade de que ambos desejam praticar uma série de infrações idênticas.
Assim, porém não o é. A associação entre os agentes pode ser feita de forma heterogênea, envolvendo aquele que ficará incumbido de realizar condutas que serão típicas do art. 33, caput ou do §1º, do art. 34, bem como o seu financiador estavelmente associado, na forma do art. 36. Por exemplo, haverá a prática do delito entre a associação entre um importador de entorpecente e um agente financiador que lhe fornece (ou fornecerá) recursos para a aquisição do entorpecente no exterior, desde que o vínculo entre eles seja estável.
No tocante ao preceito secundário, o novo tipo penal restabelece o patamar do antigo art. 14, da Lei nº 6.368/76 no tocante a pena privativa de liberdade cominada e também estabelece sanções pecuniárias mais elevadas. Trata-se de novatio legis in pejus, sujeita à vedação da retroatividade, nos termos do art. 5º, XL, da CF, visto que a pena privativa de liberdade anteriormente prevista era regulada pelo art. 8º, da Lei nº 8.072/90.
Supera-se, assim, a estrutura punitiva anteior, em que a descrição típica era fornecida pelo art. 14, da Lei nº 6.368/76, porém com as sanções do art. 8º, da Lei nº 8.072/90. Prevista na nova lei sanções específicas para a associação ao tráfico, fica derrogado o dispostivo da lei de crimes hediondos quanto a este delito, permanecendo, porém, vigente quanto à quadrilha formada para a prática dos demais crimes hediondos. Seguindo-se o mesmo raciocínio da súmula 698, do STF, a modificação das penas da associação ao tráfico não interfere nas penas do crime de quadrilha voltada à prática dos demais crimes hediondos.
Na forma da previsão constitucional, o delito de associação ao tráfico não pode ser caracterizado como crime hediondo, pois em si não representa tráfico de entorpecente, mas apenas a finalidade de realizá-lo. O vínculo estável entre agentes com a finalidade da prática de uma série indeterminada de crimes consuma o delito independentemente da prática de qualquer realização concreta de tráfico ou financiamento ao tráfico de entorpecente, evidenciando o caráter autônomo e formal do delito associativo. Neste sentido, deve ser mantido o entendimento jurisprudencial já consolidado no STJ e no STF.
Porém, a despeito da evidência de distinção entre a reprovabilidade do tráfico de entorpecente (que recebe tratamento de crime hediondo) e a mera associação, o art. 44, da Lei nº 11.343/06 fixou uma série de restrições ao delito de associação ao tráfico no mesmo paramar conferido aos delitos mais gravosos. A saber: 1. Vedação de fiança, sursis, graça, anistia, indulto, liberdade provisória e de concessão de pena restritiva de direitos, bem como estabeleceu a concessão do livramento condicional após o cumprimento de 2/3 da pena.
Ora, por um basilar exame do princípio da proporcionalidade salta aos olhos a inconstitucionalidade de aplicar-se as vedações típicas do crime hediondo a um outro crime que assim não é considerado.
A admissão de tal conseqüência reduziria a clausula do art. 5º, XLIII, da CF, a um mero juízo formal de intenção, que poderia ser burlado ao bel prazer do legislador ordinário.
Ademais, se a Constituição trata como hediondo o delito de tráfico de entorpecente e drogas afins, mas não menciona neste dispositivo a associação ao tráfico, que dele se distingue formal e materialmente, não podemos compreender este delito como equiparado a hediondo.
E como vemos, em nenhum momento o delito de associação ao tráfico passou a ser previsto como hediondo, restando inalterado o art. 1º, da Lei nº 8.072/90.
Analisemos em espécie as vedações fixadas.
1. Vedação de fiança e liberdade provisória – o dispositivo contraria frontalmente o art. 5º, XLVI, da CF, que estabelece como garantia fundamental a possibilidade de liberdade provisória como regra geral no sistema processual brasileiro. Note-se que mesmo quando se trata de crime hediondo o STF é rígido ao exigir a devida fundamentação da negativa de concessão de liberdade provisória, a partir da existência de elementos que indiquem a necessidade da prisão preventiva. Embora seja constitucional limitar-se a concessão de fiança, a vedação absoluta de liberdade provisória não é admitida em nosso regime constitucional.
2. Vedação de sursis – a suspensão condicional da pena, prevista no art. 77 a 82, do Código Penal, tem aplicação controversa aos crimes hediondos. Embora a nosso ver não haja impedimento entre o instituto e a Lei nº 8.072/902, a jurisprudência majoritária fixou-se em sentido diverso, apontando a incompatibilidade do instituto com o rigor punitivo da pena em regime integralmente fechado. A nós parece que a justificativa perde razão de ser a partir do entendimento fixado pelo STF no julgamento do HC 82.969, com a declaração incidental de inconstitucionalidade do regime integralmente fechado. Assim sendo, os crimes hediondos, em tese, admitem o benefício, desde que presentes os requisitos legais.
Pode a lei fixar restrições à concessão do sursis, posto que os parâmetros de sua concessão também assim são determinados. Assim, a vedação de sursis a uma classe de crime hediondo não se torna inconstitucional apenas porque outra parcela de crimes hediondos o admite.
Porém, a despeito de concluirmos pela constitucionalidade da vedação de concessão de sursis ao tráfico de entorpecente e/ou independentemente da conclusão acerca da vedação ou não do benefício aos demais crimes hediondos, nos parece ser inconstitucional a vedação do sursis ao crime de associação ao tráfico.
Ora, se concluirmos que todos os crimes hediondo são incompatíveis com o sursis a despeito de haver ou não expressa previsão legal, concluiremos que tal vedação é inerente aos crimes desta natureza e que portanto não podem ser estendidas aos demais crimes, por força da necessidade de preservação material do art. 5º, XLIII, da CF.
Se por outro lado, considerarmos que somente o crime de tráfico de entorpecente possui tal vedação, que não se aplica sequer aos demais crimes hediondos, haveria uma evidente lesão da proporcionalidade ao vedar-se um benefício ao crime de associação ao tráfico que é compatível até com a classe mais grave de delitos do nosso ordenamento. É inconcebível aplicar-se uma vedação a um delito comum, que sequer existe para um crime hediondo.
3. Vedação de anistia, graça ou indulto – a nosso ver é a mais evidente violação constitucional da nova lei. A concessão de anistia, graça ou indulto decorrem de poderes constitucionais atribuídos ao Congresso Nacional (anistia) e ao Presidente da República (graça e indulto) e evidentemente somente podem ser limitados por norma constitucional. E a Constituição somente estabelece esta vedação aos crimes hediondos (art. 5º, XLIII, CF).
Apesar da Constituição não deitar expressamente a vedação ao indulto aos crimes hediondos (somente a Lei nº 8.072/90 tem o dispositivo explícito), esta vedação decorre da ordem constitucional como uma conseqüência lógica da vedação da graça, afinal se um delito não admite o perdão estatal para um indivíduo, não poderia o admitir para centena ou milhares destes conjuntamente.
Como o crime de associação ao tráfico não é crime hediondo, não pode o legislador ordinário restringir o poder fixado em sede constitucional referente a concessão do indulto, da graça ou da anistia.
4. A vedação de concessão de pena restritiva de direitos é desacompanhada de qualquer elemento razoável que justifique a restrição, por ser medida excepcional. Embora reconheçamos que ao legislador é atribuído poderes para fixar restrição a este benefício, tal deve ser feito em obediência ao princípio da razoabilidade e da isonomia.
A restrição de concessão de pena restritiva de direitos não é automática e somente se aplica aos casos expressos na lei. Estes são os casos dos crimes dolosos com pena aplicada em patamar superior a 04 anos ou quando praticados com violência ou grave ameaça à pessoa. Por isso sempre sustentamos que crimes hediondos poderiam, em tese, admitir a substituição, caso presentes os requisitos (neste sentido, STF, HC 84.928, rel. Min. Cezar Peluso, DJU de 11.11.05, p. 293).
Assim, se nem aos crimes hediondos é vedada a substituição, somente com a previsão expressa da lei será possível limitar-se tal aplicação.
E assim o fez a Lei nº 11.343/06. Porém, não o fez de maneira válida.
Primeiro porque elencou a restrição junto com demais delitos que devem ser considerados hediondos, mostrando um grau de restrição ao direito de liberdade do agente praticante do delito de associação ao tráfico desproporcional à gravidade do delito praticado.
Em segundo lugar porque estabeleceu uma distinção inconcebível da associação ao tráfico com as demais associações criminosas, ou seja, com o delito de quadrilha com finalidade de praticar crime hediondo.
Esta distinção de tratamento fere o princípio da isonomia e da proporcionalidade, pois estabelece uma distinção de tratamento entre delitos similares, sem um fundamento razoável, de ordem material que indique a maior reprovabilidade deste comportamento.
Ora, se o desvalor da conduta ou do resultado não se apresenta superior, não há porque um delito receber sanção superior ao outro que lhe é equivalente, mormente quando os delitos são estruturalmente idênticos. Falta o seu fundamento de potencial lesivo que suporta a legitimidade da sanção.
5. Restrição de concessão de livramento condicional, com obtenção com apenas 2/3 da pena, salvo se reincidente específico, quando ocorre a vedação total – sob os mesmos fundamentos exposto no item anterior, tal disposição não tem o condão de ser aplicada ao crime de associação ao tráfico. Trata-se de restrição típica de crime hediondo, ao qual este crime não pode ser equiparado e de restrição inexistente ao delito de quadrilha para a prática de crime hediondo, que possuem o mesmo desvalor de conduta e resultado, criando-se uma restrição de fundamentação inexistente.
Ou seja, a "equiparação" de tratamento da associação ao tráfico ao crime de tráfico de entorpecente é inconstitucional, exigindo o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 44, da Lei nº 11.343/06, neste particular.
Outra conseqüência da nova lei foi a ausência de previsão da associação eventual como causa de aumento de pena do crime de tráfico, que anteriormente era extraído pela jurisprudência da redação do antigo art. 18, III, da Lei nº 6.368/76. Assim, é forçoso reconhecer que neste ponto a nova lei é mais benéfica, devendo retroagir inclusive sobre os processos já julgados, excluindo-se dos processos e da eventual condenação a majoração imposta por este fundamento. Neste sentido, aliás, já decidiu o STJ, no HC 65.402, rel. Min. Laurita Vaz, DJU de 18.12.06, p. 451.