"Artículo 5. La soberanía reside intransferiblemente en el pueblo, quien la ejerce directamente en la forma prevista en esta Constitución y en la ley, e indirectamente, mediante el sufragio, por los órganos que ejercen el Poder Público.
Los órganos del Estado emanan de la soberanía popular y a ella están sometidos."
Pela leitura do artigo 5º da Constituição Venezuelana de 1999, chamada Constituição Bolivariana, percebe-se uma diferença fundamental em relação à Constituição Brasileira de 1988, pois na Venezuela adotou-se a democracia em sua figura direta como a regra em uma exceção representativa.
Em interessante artigo, Roberto Amaral [01] tece importantes considerações acerca da decadência da democracia representativa, vendo na Carta Bolivariana um novo paradigma para o século XXI: a democracia participativa.
"Ainda que possa parecer revelação de segredo de polichinelo, é preciso dizer 100 vezes e 100 vezes repetir que a democracia representativa faliu, mas é preciso igualmente pôr de manifesto que essa forma de governo, sendo a mais notável das experiências políticas da civilização ocidental e o seu mais rotundo fracasso, não encerra toda a experiência da Humanidade." E prossegue "A democracia representativa é um ramo do gênero democracia, mas não esgota a espécie, nem é sua melhor experiência." [02]
A democracia direta, sem intermediários a legiferar errantes e governar bufantes remete ao ideal de autores como Rousseau, que à época da Revolução Francesa enxergava os problemas da representação política, mas a considerava um mal necessário, em virtude da impossibilidade de implementação de um modelo político organizado de soberania popular, fruto da falta de meios de comunicação entre governantes e governados.
Como observa o jurista e político carioca, a revolução nos meios de comunicação possibilita, no atual século XXI o necessário intercâmbio entre eleitores e eleitos ensejador de uma maior participação popular na esfera de poder estatal.
A democracia participativa remontaria assim, à definição de poder constituinte desenvolvida pelo Abade de Sieyès no mesmo período pré-Revolução Francesa. Sieyès utilizou essa soberania popular latente para legitimar a tomada pelo poder do terceiro estado, a burguesia francesa.
Mas o conceito de poder constituinte permaneceu até os dias atuais, e foi encampado de forma peculiar pela constituição venezuelana, que por meio de instrumentos de participação direta como o recall e o veto popular, trouxe a soberania do povo para a arcaica estrutura do poder estatal ao legitimar os poderes moral e eleitoral.
Nesse ponto, o novo paradigma se defronta com velhos problemas enfrentados pelas antigas monarquias européias, e por estados constitucionais que fizeram história como a República de Weimar, passando por regimes populistas que pipocaram por diversos países, notadamente na América Latina do século XX.
A Carta Bolivariana reescreveu com outras palavras, outros versos e outra textura, a derrocada da Constituição de Weimar (Alemanha, 1919) na tese schimittiana que consagrou o estado de exceção.
A Constituição de Weimar é considerada até hoje um marco histórico do Estado do Bem Estar Social, ao trazer para o texto constitucional os direitos sociais, combatendo o hegemônico liberalismo imposto pelas regras do mercado.
Contudo, a forma como o fez, trouxe desgaste político e muita controvérsia jurídica para o governo do partido social democrata alemão. A Constituição de Weimar era dividida em duas partes, a primeira tratava da organização do Estado e das Instituições, com visível influência do liberalismo e das relações de poder vigentes, já a segunda tratava dos direitos fundamentais, notadamente dos direitos sociais e previa, segundo autores como Herman Heller, uma passagem gradual para um estado socialista [03].
No meio desse nó jurídico, havia um artigo que possibilitava ao presidente do Reich, a declaração de um estado de exceção, legitimando que o executivo legislasse por meio de decretos [04], suspendendo a eficácia da ordem constitucional vigente.
Notáveis batalhas jurídicas foram travadas por autores como Heller, Smend e Schmitt, prevalecendo a tese do último de que a segunda parte da constituição era apenas formalmente constitucional, ao passo que a primeira, ao definir a estrutura do Estado tinha natureza jurídica materialmente constitucional.
O desenrolar dos fatos consagrou ainda o conceito de soberania sustentado por Carl Schmitt, segundo o qual "soberano é aquele que defende a constituição, que decide sobre o estado de exceção" [05], pois coube a Adolph Hitler exercer essa condição de soberano, com um triste respaldo legal e uma dolorosa legitimidade constitucional, que, ao transformar um estado constitucional em estado de exceção, pôde submeter os direitos fundamentais aos interesses do Estado.
Na Venezuela atual, surge o mesmo problema de exceção, não que se possa imaginar uma situação de genocídio como no caso alemão, mas através de uma retórica revolucionária de representante da soberania popular, Chávez acaba por representar ao menos eleitoralmente esse povo, massacrado pela política econômica neoliberal, o que torna a situação mais complexa.
A retórica de Chávez, aliada à sua legitimação junto ao povo, poderia ser uma importante fonte de poder estatal, mas a adoção da lei habilitante, que permite a alteração do texto constitucional em busca de uma eternização de seu poder, transforma arbitrariamente em uma democracia representativa, a democracia direta, forjando uma legitimidade popular na mesma medida que afronta princípios basilares do Estado Democrático de Direito como a República e a Separação dos Poderes.
Surge então a questão de se saber se o titular do poder constituinte, o povo, no caso também titular do poder constituído não teria legitimidade para aprovar, por referendo, o prolongamento do mandato de seu presidente, baseado na definição constitucional de ilimitabilidade do poder constituinte.
Eis o grande paradoxo da democracia direta venezuelana, a transformação de um estado constitucional em um estado de exceção pelo soberano, cuja soberania, sendo ratificada pelo poder constituinte, acaba por transformar a exceção em regra, em um estado de direito tão arbitrário quanto legítimo. Poderia tal paradoxo conviver em um Estado Democrático de Direito? A resposta pode estar, talvez, no direito natural. Por ora, ficam as sempre sábias palavras de Paulo Bonavides [06] analisando a figura do referendo, asseverando, após destacar pontos positivos do instituto que "A essas vantagens, contrapõem-se todavia graves inconvenientes: o desprestígio das câmaras legislativas, conseqüente à diminuição de seus poderes; os índices espantosos de abstenção; a invocação do argumento de Montesquieu acerca da incompetência fundamental do povo e seu despreparo para governar; a cena muda em que se transforma o referendum pela ausÊncia de debates; os abusos de uma repetição freqüente ao redor de questões mínimas, sem nenhuma importância, que acabariam provocando o enfado popular; o afrouxamento da responsabilidade dos governantes (ao menor embaraço comodamente transfeririam para o povo o peso das decisões); o escancarar de portas à mais desenfreada demagogia; em suma, o dissídio essencial da instituição com o sistema representativo."
Notas
01
A Democracia Representativa está Morta; Viva a Democracia Participativa! In Direito Constitucional – Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. Org. Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho, São Paulo: Malheiros Editores, 2001.02
Idem, ibidem, pg. 46/47.03
Sobre o tema vide Gilberto Bercovici, Constituição e Estado de Exceção Permante – A Atualidade de Weimar, Rio de Janeiro: Azougue, 2004.04
Em artigo intitulado As Medidas Provisórias no Brasil diante do Pano de Fundo Alemão, o jurista alemão Friedrich Muller faz uma interessante comparação entre esses decretos e as medidas provisórias editadas vorazmente pelo executivo no Brasil, in Direito Constitucional – Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. Org. Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho, São Paulo: Malheiros Editores, 2001.05
Idéia recorrente em suas obras escritas nas décadas de 20 e 30, como Teoria de la Constitución, Salamanca: Alianza Universidad Textos, 2003; La Defensa de la Constitución, Madrid: Tecnos, 1998; e Teologia Política, Belo Horizonte: Del Rey, 2006.06
Ciência Política, 12ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2006. Pg. 307/308.