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O problema social decorrente da sonegação fiscal

08/03/2007 às 00:00
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Este crime deve ser repreendido de uma forma mais gravosa, devendo ser revogados todos os artigos que determinam a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.

Atualmente, é mais do que comum ver em manchetes de revistas e jornais que a polícia conseguiu prender mais uma quadrilha de sonegadores fiscais. O crime de sonegação fiscal, previsto na Lei 8.137/90, é um dos crimes que afeta o Estado de forma mais drástica, uma vez que o dinheiro que deixou de ser arrecadado seria utilizado na realização de projetos sociais e outras finalidades do Estado. Segundo o art. 3º do CTN, "tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sansão de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada."

O bem jurídico tutelado nos crimes de sonegação fiscal é a arrecadação tributária, sendo o sujeito ativo nesses crimes, em regra, o contribuinte ou o responsável (caso a lei preveja substituição tributária), podendo, excepcionalmente, ser qualquer pessoa, como nos casos do art. 2°, III e V da Lei 8.137/90. O sujeito passivo será sempre um dos entes da Federação (União Federal, estados, municípios ou Distrito Federal). A consumação do crime ocorre com a efetiva supressão ou redução do tributo, contribuição social e/ou acessório. São crimes materiais, ou seja, exigem que se produza o resultado naturalístico para que se caracterize o crime.

Infelizmente, a justiça criminal tornou-se mera cobradora de tributos, tendo em vista que o pagamento do imposto, durante qualquer fase do processo, extingue a punibilidade do agente, conforme reiteradas decisões de nossos tribunais superiores interpretando a norma prevista no art. 9º, da Lei 10.684/03. Isso quer dizer que um crime de proporções que podem chegar ao absurdo, como a falta de dinheiro para construção de escolas ou para comprar medicamentos para pessoas doentes, deixando-as ao abandono com prejuízos sensíveis a sua saúde e quem sabe a sua vida, não será punido se as quantias forem restituídas ao erário público, com os devidos juros, correção monetária e multa.

A sonegação de tributo também gera outros efeitos prejudiciais para toda a sociedade, como a falta de investimento, que afeta o crescimento do país, e, principalmente, o aumento da carga tributária. A carga tributária aumenta porque o Estado precisa fazer a gestão de seus gastos, necessita de dinheiro para o pagamento de suas obrigações e investimentos que são necessários. E quem arca com esses valores são os contribuintes. Esse é o preço que se vive por vivermos em sociedade, segundo as lições da teoria contratualista do Estado, exposta por Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jaques Rosseau.

Devemos lembrar, ainda, que vivemos em um Estado Democrático de Direito, onde o Estado que faz as leis deve também obedecê-las. A Constituição, fruto da Soberania, um dos elementos do Estado (junto com o povo e o território), figura hoje no centro do Ordenamento jurídico, de onde irradia sua força normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para ordem infraconstitucional, mas também de vetor de interpretação de todas as normas do sistema.

Essa força normativa adquirida pela Constituição atual decorreu algumas mudanças sociais sobre a hermenêutica constitucional. A principal modificação até então teria sido com o pós-positivismo, que foi o período onde se reconheceram força normativa aos princípios. Depois disso veio o neoconstitucionalismo, que foi o período pelo qual as normas constitucionais passam a ser reconhecidas como cogentes, passam a ser realmente impositivas, passam a ter eficácia.

Segundo Celso de Albuquerque Mello, a noção de soberania não é absoluta, mas sim relativa, traz um conceito jurídico indeterminado e que varia de acordo com a época histórica. Afirma que em um mundo cruel em que o capitalismo prevalece só os direitos humanos podem defender a pessoa.

Os direitos fundamentais são prévios, são ligados a um núcleo de valores antecedentes ao Estado. Há que se afirmar ser falsa a pretensa dicotomia de que os direitos individuais, em regra são negativos, indicam a necessidade de abstenção do Estado, enquanto os direitos sociais são em regra, positivos, exigindo prestações efetivas do Poder Público. Isso porque é necessário observar o princípio da máxima eficácia ou da máxima efetividade para as normas constitucionais. Esse princípio conflita com o princípio da reserva do possível, princípio que a Administração Pública alega em sua defesa em processos judiciais, pelo qual teria que gerir meios escassos para atender necessidades ilimitadas, tendo que fazer constantes escolhas, que são discricionárias por parte da Administração, não podendo o Poder Judiciário se imiscuir nessas escolhas, conforme afirmam alguns doutrinadores, como Gustavo Amaral.

Não obstante, devemos lembrar que os direitos fundamentais produzem efeitos irradiantes a todos os ramos do Direito, penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, a administração e o Judiciário. Trata-se de hipótese de filtragem constitucional, que exige do aplicador do direito uma nova postura, voltada para a promoção dos valores constitucionais em todos os quadrantes do direito positivo. Segundo a teoria da despatrimonialização, os direitos patrimoniais não são um fim em si mesmo, devem obedecer a sua função social, são meios para realização da pessoa humana.

São mencionados pela doutrina aquilo que se chama de "mínimo existencial", que seriam os direitos fundamentais mínimos para uma vida digna em sociedade. Esses direitos estariam em grande parte descritos no art. 6º, da Constituição, que trata de alguns dos direitos sociais. Os direitos sociais são os chamados direitos de igualdade, ou direitos de segunda geração; enquanto os direitos e garantias fundamentais seriam os direitos de liberdade, ou de 1ª geração; e os direitos transindividuais seriam os direitos de fraternidade (ou sociabilidade), ou de 3ª geração. Divergindo a doutrina mais moderna quanto a existência de direitos de quarta e de quinta geração.

Há que se afirmar que a dignidade humana e as condições materiais de existência não poderiam retroceder aquém do mínimo existencial, como afirma Ricardo Lobo Torres. O princípio da dignidade humana serve de epicentro de todo o ordenamento jurídico e é com base nele que se deflui o mínimo existencial. A doutrina diverge sobre quais dos direitos descritos no art. 6º de nossa Carta Magna estaria incluído nesse conceito, tendo como unânime somente os direitos à saúde, alimentação e educação. Eu incluiria nesse rol, também, o trabalho, o lazer e a moradia, por entender necessários à formação do caráter de uma pessoa.

Há tributos com vinculação específica e tributos sem destinação específica. O imposto, por exemplo, é uma espécie tributária que não pode ter vinculação em razão de disposição constitucional (art. 167, IV). A receita tributária, após repartida entre os entes federativos, conforme dispõe a CF, é utilizada para a garantia muitas vezes desses direitos aqui denominados de "mínimo existencial".

Com a sonegação dos tributos, e a arrecadação menor do que o esperado, deixam de serem repassados aos órgãos garantidores desses direitos as respectivas verbas. A secretaria de saúde deixa de receber verba para saúde, a secretaria de educação idem, e assim por diante. Quem sai perdendo com isso tudo é a sociedade, não apenas os mais necessitados, que precisam diretamente desses serviços, mas também aqueles que têm maiores posses. Isso porque maior parte da população necessita desses serviços, e estudos comprovam que quanto piores os serviços prestados para a população, maior é o gasto de manutenção desses serviços, pois eles passam a ser depredados. Os orelhões só são depredados porque não funcionam corretamente, os ônibus porque não oferecem o conforto necessário, os hospitais por deixarem as pessoas horas e horas em fila de espera e, no final do dia, não as atenderem.

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Essa má prestação dos serviços públicos, que gera revolta por parte de seus usuários, faz com que as pessoas passem a desacreditar no Estado, inclusive àquele do conceito contratualista de sua formação, pois se o Estado objetivava dar condições iguais de tratamento ele não está conseguindo. Passam a surgir, então, espaço para os chamados comandos paralelos, como o que é feito pelo tráfico ou por milícias em favelas.

O tráfico para se manter precisa arrecadar dinheiro com a venda de drogas, os viciados para manter seu vício passam a praticar pequenos delitos e quando menos esperam esses pequenos delitos se tornam crimes bárbaros e cruéis, como é o caso da morte do menino João Hélio, arrastado por 7 km, preso ao carro roubado pelo cinto de segurança, ou outros do mesmo gênero. Sem contar que o comando do tráfico faz com que pessoas, acreditando não ter mais espaço no mercado de trabalho, passem a ser recrutadas para trabalharem junto com eles, muitos desses são crianças, meninos inclusive com menos de 10 anos de idade, que acreditam que uma arma na cintura traz poder e garotas, preferindo viver um curto período de tempo com mordomia (pois sabem que essa vida no tráfico é curta) do que viver a vida na amargura da pobreza.

Pois é... se ficamos chocados com o crime bárbaro de pessoas sendo mortas arrastadas presas em um cinto de segurança de um automóvel ou queimadas cruelmente dentro de um ônibus, pedindo cada vez mais uma sociedade com mais justiça e com aplicações mais rigorosas e severas das penas, não há que se entender o porque que isso não acontece quando estamos nos referindo aos crimes de sonegação fiscal.

O pobre que sonega imposto não é preso porque se aplica, no caso, o princípio da bagatela (ou da insignificância), o rico quando é preso trata de pagar um bom advogado para livrá-lo da prisão e manter ainda um bom dinheiro em sua posse e ainda tem a possibilidade de pagar o valor devido, ao perceber que irá ser condenado, extinguindo-se a sua punibilidade. E o que a sociedade faz quando ocorre isso? Manifestações? Pedidos de Justiça ou de paz? Não, nada disso. A sociedade se cala, parecendo consentir com algo que já é corriqueiro, com algo que afeta as mais altas classes do país, tanto no que se refere aos Poderes quanto às grandes ou médias empresas. Será mesmo que sem um caixa dois uma empresa não consegue sobreviver, como muitos dizem por ai?

O diferencial no crime de sonegação fiscal é que as pessoas ao praticarem esse crime, principalmente aquelas que desviam milhões e milhões de reais, é que não estão matando diretamente uma pessoa, estão matando indiretamente várias e tirando o futuro de milhares. Quantas pessoas já morreram dentro de um hospital público em razão da demora no atendimento ou da má prestação do serviço? Quantas crianças deixam de cursar a escola por falta de professores ou por falta de refeição? Será que o ensino público é eficiente o suficiente para capacitar seus alunos para competirem com os que cursaram uma escola particular? Será que o Estado consegue fornecer o mínimo existencial a toda sua população? Esse crime não tira apenas vidas, mas futuros. As crianças precisam ter uma educação melhor, sem educação não haverá mão-de-obra qualificada no futuro, o que dificultará o crescimento de todo um país, e aumentará ainda mais a desigualdade social.

Isso tudo sem contar que esse crime é praticado com um dos piores sentimentos possíveis ao ser humano: a ganância. Quem desvia milhões certamente já tem muito dinheiro, ou ao menos o suficiente para garantir muitos anos de uma vida tranqüila, tanto enquanto ainda trabalha, quanto após sua aposentadoria.

Diante de todo exposto, acredito que não há dúvidas de que este crime deve ser repreendido de uma forma mais gravosa, devendo ser revogados todos os artigos que determinam a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, que poderiam, a meu ver, servir, no máximo, de causa especial de diminuição de pena.


BIBLIOGRAFIA:

BARCELLOS, Ana Paula de. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, nº 221,julho/setembro 2000.

BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª Edição. São Paulo : Atlas. 2003.

MORAES, Guilherme Peña de. Direito constitucional: teoria do Estado. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª rev. e atual.. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.

TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro, Renovar, 1999.

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Sobre o autor
Carlos Côrtes Vieira Lopes

Procurador da Fazenda Nacional.<br>Ex-Procurador Federal.<br>Diversas especializações em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Carlos Côrtes Vieira. O problema social decorrente da sonegação fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1345, 8 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9572. Acesso em: 24 nov. 2024.

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