1. Introdução:
O presente artigo tem por escopo discutir a possibilidade de interrupção do fornecimento de energia elétrica a pessoas jurídicas públicas inadimplentes.
A má administração de certos entes federados, em especial de diversos municípios brasileiros, tem levado a situações de difícil resolução na seara prática.
É o caso da suspensão do fornecimento de energia elétrica a órgãos públicos, notadamente prefeituras municipais inadimplentes.
Qual a solução a ser dada a casos tais? Deve prevalecer o Princípio da Continuidade do Serviço Público, ou há de ser prestigiado o Princípio do Pacta Sunt Servanda (do qual decorre a obrigação de cumprimento das obrigações contratuais)?
Caso se entenda por dar guarida ao Princípio do Pacta Sunt Servanda, a interrupção do fornecimento de energia elétrica pode atingir todos os serviços prestados pela pessoa jurídica de direito público interno, ou deve ser limitada aos considerados não-essenciais?
No presente artigo, pretende-se responder essas perguntas e propor possíveis soluções ao deslinde da questão, sem que se tenha, por óbvio, a pretensão de esgotar o estudo da matéria, a qual, aliás, não se encontra totalmente pacificada pelos tribunais pátrios.
Analisar-se-á, ainda, a natureza jurídica da relação entre as concessionárias de energia elétrica e as pessoas jurídicas de direito público, com enfoque na aplicação da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
2. Natureza jurídica do contrato de fornecimento de energia elétrica a pessoa jurídica de direito público:
Ab initio, faz-se necessário identificar a natureza jurídica da relação firmada entre a concessionária de energia elétrica e a pessoa jurídica de direito público inadimplente.
Os contratos de fornecimento de energia elétrica a entes públicos não podem ser considerados contratos de direito administrativo, uma vez que a Administração não ocupa, nos mesmos, posição privilegiada em detrimento dos demais contratantes.
Em outras palavras, os contratos administrativos são marcados pela prevalência do interesse público, com notáveis privilégios para a Administração, estando regidos pelo Direito Administrativo (Direito Público), o que não ocorre em se tratando de contratos de fornecimento de energia, por exemplo, os quais ficam adstritos, em regra, às normas do Direito Privado.
Veja-se, a propósito, o que leciona Celso Antônio Bandeira de Mello a respeito dos contratos administrativos:
"Nem todas as relações jurídicas travadas entre Administração e terceiros resultam de atos unilaterais. Muitas delas procedem de acordos de vontade entre o Poder Público e terceiros. A estas últimas costuma-se denominar "contratos".
Dentre eles distinguem-se, segundo a linguagem doutrinária corrente:
a) contratos de Direito Privado da Administração;
b) "contratos administrativos".
Os primeiros regem-se quanto ao conteúdo e efeitos pelo Direito Privado e os segundos reger-se-iam pelo Direito Administrativo (...)
Ditos contratos diferem entre si quanto à disciplina do vínculo. Isto é: enquanto os contratos de Direito Privado travados pela Administração regulam-se em seu conteúdo pelas normas desta província do Direito - ressalvados os aspectos supra-referidos-, os contratos administrativos assujeitam-se às regras e princípios auridos no Direito Público, admitida, tão só, a aplicação supletiva de normas privadas compatíveis com a índole pública do instituto."
Feitas tais colocações, constata-se que os contratos de fornecimento de energia elétrica são Contratos de Direito Privado celebrados pela Administração Pública, uma vez que lhes foge a presença de ente público dotado das prerrogativas inerentes à sua natureza jurídica, já que a Administração, em hipóteses tais, figura, em regra, como se pessoa jurídica de direito privado fosse, sem que lhe sejam deferidas as prerrogativas inerentes aos negócios jurídicos bilaterais de Direito Público.
Na verdade, os contratos de fornecimento de energia elétrica consubstanciam verdadeiras relações de consumo, estando regidos pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), já que, como visto, os entes públicos não figuram nos mesmos com os privilégios que caracterizam contratos administrativos.
Ademais, a Lei nº 8078/90, ao definir o conceito de consumidor, não afasta de seu campo de incidência as pessoas jurídicas de direito público, senão vejamos:
"Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo."
Não se olvide, ainda, que a remuneração a ser adimplida pelos entes de direito público que celebram contratos de prestação de serviços não se enquadra no conceito de taxa previsto no art. 145, II, da CF de 1988, sendo verdadeira hipótese de preço público (tarifa), já que o serviço prestado decorre da relação contratual de direito privado.
Corroborando o posicionamento supra, trago ao lume o seguinte precedente:
"ADMINISTRATIVO – SERVIÇO PÚBLICO – ENERGIA ELÉTRICA – TARIFAÇÃO – COBRANÇA POR FATOR DE DEMANDA DE POTÊNCIA – LEGITIMIDADE. 1. Os serviços públicos impróprios ou UTI SINGULI prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente, por delegação a concessionários, como previsto na CF (art. 175), são remunerados por tarifa, sendo aplicáveis aos respectivos contratos o Código de Defesa do Consumidor. 2. A prestação de serviço de energia elétrica é tarifado a partir de um binômio entre a demanda de potência disponibilizada e a energia efetivamente medida e consumida, conforme o Decreto 62.724/68 e Portaria DNAAE 466, de 12/11/1997. 3. A continuidade do serviço fornecido ou colocado à disposição do consumidor mediante altos custos e investimentos e, ainda, a responsabilidade objetiva por parte do concessionário, sem a efetiva contraposição do consumidor, quebra o princípio da igualdade das partes e ocasiona o enriquecimento sem causa, repudiado pelo Direito. 4. Recurso especial improvido.
Conclui-se, ante o exposto, que os contratos de fornecimento de energia elétrica celebrados pela Administração Pública não se submetem às normas de Direito Administrativo, mas às regras do Direito Privado, inclusive do próprio Direito do Consumidor.
3. Do Princípio da Continuidade do Serviço Público e serviços públicos essenciais:
Maria Sylvia Zanella di Pietro define da seguinte forma o Princípio da Continuidade do Serviço Público:
"Por esse princípio entende-se que o serviço público, sendo a forma pela qual o Estado desempenha funções essenciais ou necessárias à coletividade, não pode parar. Dele decorrem conseqüências importantes:
1. a proibição de greve nos serviços públicos (...);
2. necessidade de institutos como a suplência, a delegação e a substituição para preencher as funções públicas temporariamente vagas;
3. a impossibilidade, para quem contrata com a administração, de invocar a exceptio non adimleti contractus nos contratos que tenham por objeto a execução de serviço público;
4. a faculdade que se reconhece à Administração de utilizar os equipamentos e instalações da empresa que com ela contrata, para assegurar a continuidade do serviço;
5. com o mesmo objetivo, a possibilidade de encampação da concessão de serviço público."
Da definição supra, extrai-se que o Princípio da Continuidade do Serviço Público tem nítido contorno publicista, o que pode levar à falsa percepção de que sua aplicação limita-se às relações de Direito Público, em que a Administração detém primazia em detrimento dos particulares.
Destaque-se, por oportuno, que o mencionado princípio decorre não da essência do ente público, mas da necessidade de se resguardar o interesse público primário.
Sua função teleológica é proteger a coletividade e não a Administração Pública, não tendo sido imaginado para proteger administradores ímprobos ou ineficazes, mas a fim de que a coletividade não se visse malferida em suas necessidades básicas.
Seguindo essa linha de raciocínio, entende-se que o Princípio da Continuidade do Serviço Público, em que pese seu contorno publicista, em casos extraordinários e devidamente mitigado, pode ser aplicado nos contratos de Direito Privado firmados pela Administração Pública, desde que se destine a proteger as necessidades básicas da coletividade.
Tal aplicação, contudo, deve sofrer limitações, já que, conforme esclarecido alhures, quando a Administração celebra contrato de Direito Privado, renuncia às prerrogativas decorrentes de sua natureza jurídica, atuando como se ente de direito privado fosse.
É que a continuidade do serviço público é assegurada não por conta da natureza jurídica do respectivo ente, mas em favor do interesse da coletividade que não pode ser privada dos serviços essenciais ao bem comum (lembrando que assegurar o bem comum é finalidade maior do Direito).
O próprio artigo 22, da Lei nº 8078/90 assegura a continuidade dos serviços essenciais, senão vejamos:
"Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos."
Todavia, em que pese assegurar a continuidade dos serviços (art. 22), o Código de Defesa do Consumidor não delimitou quais misteres poderiam ser considerados essenciais, o que dificulta a aplicação do dispositivo supra mencionado.
A Constituição Federal de 1988 (art. 9º, §1º, o qual trata do direito de greve) também foi omissa no que tange à identificação dos serviços essenciais deixando ao alvedrio do legislador ordinário a função de defini-los.
Como, então, identificar os serviços essenciais?
Entendemos que deve ser aplicado, por analogia, o art. 10, da Lei nº 7.783/8 (trata do direito de greve) e que prevê, in verbis:
"Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
II - assistência médica e hospitalar;
III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV - funerários;
V - transporte coletivo;
VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;
VII - telecomunicações;
VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;
IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X - controle de tráfego aéreo;
XI compensação bancária."
Em suma, nos contratos de Direito Privado firmados pela Administração Pública, o Princípio da Continuidade do Serviço Público, alcança, para fins do art. 22, do CDC, tão somente os misteres essenciais constantes no rol do art. 10, da Lei nº 7783/89.
4. Da possibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica a entes públicos inadimplentes:
Devidamente delimitado o alcance do Princípio da Continuidade do Serviço Público, constata-se que, tratando-se de atividade não descrita no rol taxativo do art. 10, da Lei nº 7783/89, é possível autorizar-se a suspensão do fornecimento de energia elétrica (ou de qualquer outro serviço decorrente de contrato de Direito Privado firmado pela Administração Pública), quando a pessoa jurídica de direito público estiver inadimplente.
É que como em todo negócio jurídico de direito privado, o fornecimento de energia elétrica visa ao lucro, ou seja, é contra-prestação.
Não atuando a Administração Pública com as prerrogativas inerentes aos entes públicos, por se tratar de relação jurídica de Direito Privado, deve cumprir as obrigações contratuais negociadas e o pagamento do preço é justamente seu principal dever, não sendo justo exigir-se que a concessionária de energia elétrica continue a prestar serviços apesar da falta de pagamento, muitas vezes contumaz, do órgão público.
Nos contratos sinalagmáticos, o cumprimento das obrigações ajustadas é dever indisponível das partes e sua inadimplência autoriza a exceção do contrato não cumprido (lembre-se que estamos nos referindo a contratos de Direito Privado celebrados pela Administração Pública).
Negar-se a possibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica a pessoas jurídicas de direito público inadimplentes, à guisa de observância ao Princípio da Continuidade do Serviço Público, sem os devidos limites, é estimular o administrador ineficaz a não cumprir suas obrigações.
A mencionada possibilidade, todavia, deve sofrer as limitações mencionadas, não alcançando os serviços públicos essenciais, assim considerados aqueles constantes no rol do art. 10, da Lei nº 7.783/89.
Aliás, esse é o posicionamento do STJ, conforme se constata nas decisões que passo a citar:
"ADMINISTRATIVO - FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA - FALTA DE PAGAMENTO - CORTE - MUNICÍPIO COMO CONSUMIDOR. 1. A Primeira Seção já formulou entendimento uniforme, no sentido de que o não pagamento das contas de consumo de energia elétrica pode levar ao corte no fornecimento. 2. Quando o consumidor é pessoa jurídica de direito público, a mesma regra deve lhe ser estendida, com a preservação apenas das unidades públicas cuja paralisação é inadmissível. 3. Legalidade do corte para as praças, ruas, ginásios de esporte, etc. 4. Recurso especial provido."
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ARTIGO 535 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. VIOLAÇÃO. INOCORRÊNCIA. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. IMPOSSIBILIDADE. INADIMPLEMENTO. UNIDADES PÚBLICAS ESSENCIAIS. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DOS ARTS. 22 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E 6º, § 3º, II, DA LEI Nº 8.987/95. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL INDEMONSTRADA.
1. Não basta que o recorrente postule a nulidade do acórdão dos embargos de declaração, é necessário que indique precisamente sobre quais pontos o julgado tenha supostamente incorrido em omissão, contradição ou obscuridade, demonstrando os motivos de sua relevância, a fim de possibilitar o exame da preliminar de ofensa ao artigo 535 do Código de Processo Civil, sob pena de não conhecimento do recurso especial, ante o óbice da Súmula 284 da Suprema Corte. 2. O artigo 22 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), dispõe que: "os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos".
3. O princípio da continuidade do serviço público assegurado pelo art. 22 do Código de Defesa do Consumidor deve ser amenizado, ante a exegese do art. 6º, § 3º, II da Lei nº 8.987/95 que prevê a possibilidade de interrupção do fornecimento de energia elétrica quando, após aviso, permanecer inadimplente o usuário, considerado o interesse da coletividade.
4. Quando o consumidor é pessoa jurídica de direito público, prevalece nesta Turma a tese de que o corte de energia é possível, desde que não aconteça de forma indiscriminada, preservando-se as unidades públicas essenciais.
5. A interrupção de fornecimento de energia elétrica de Município inadimplente somente é considerada ilegítima quando atinge as unidades públicas provedoras das necessidades inadiáveis da comunidade, entendidas essas - por analogia à Lei de Greve – como "aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população", o que se perfaz na hipótese.
6. Não se conhece do recurso especial interposto pela alínea "c" do permissivo constitucional quando os casos trazidos pra confronto não possuem a mesma moldura fática do acórdão paradigma.
7. Recurso especial improvido." (STJ, RESP nº 791713-RN, Rel. Min. Castro Meira, DJ Data: 1/2/2006, grifei).
Observe-se, que o STJ, nos precedentes colacionados, assegura a continuidade dos serviços públicos considerados essenciais, sem impedir, todavia, de forma absoluta, a suspensão do fornecimento de energia elétrica, tendo em vista o inadimplemento da contra-prestação pelo Poder Público respectivo.
5. Conclusão:
Conclui-se, ante o exposto, que o Princípio da Continuidade do Serviço Público, nos contratos de Direito Privado celebrados pela Administração Pública, impede a interrupção do fornecimento de energia elétrica, por falta de pagamento, apenas quanto aos serviços públicos essenciais, assim entendidos, por analogia, aqueles constantes no rol, do art. 10, da Lei nº 7.783/89.
Notas
01
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. "Curso de Direito Administrativo". São Paulo: Ed. Malheiros Editores Ltda. P. 568, 17ª ed., revista e atualizada.02
PIETRO, Maria Sylvia Zanella de. "Direito Administrativo". São Paulo:Ed. Atlas, p. 74, 11ª Edição.