Sumário: 1 Introdução. 2 Aspectos gerais da responsabilidade civil do
Estado; 2.1 Breve retrospecto histórico; 2.1.1 Teoria da irresponsabilidade;
2.1.2 Teorias civilistas; 2.1.2.1 Teoria dos atos de império e atos de gestão;
2.1.2.2 Teoria da culpa civil; 2.1.3 Teorias publicistas; 2.1.3.1 Teoria da
falta do serviço; 2.1.3.2 Teoria do risco administrativo; 2.1.3.3 Teoria do
risco integral; 2.2 Princípios fundamentais da responsabilidade civil do
Estado; 2.3 Responsabilidade civil do Estado no direito comparado: o sistema
francês; 2.4 A responsabilidade civil do Estado à luz da Constituição
Federal de 1988; 2.5 Excludentes e atenuantes da responsabilidade civil estatal;
2.5.1 Culpa da vítima; 2.5.2 Culpa de terceiro; 2.5.3 Força maior; 2.5.4
Estado de necessidade; 2.6 Ação regressiva e denunciação da lide; 3.
Responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais; 3.1.
Contextualização da função jurisdicional e sua caracterização como um
serviço público; 3.2. Principais argumentos contrários à responsabilidade
civil do Estado por atos jurisdicionais e sua respectiva refutação; 3.2.1
Soberania do Poder Judiciário; 3.2.2 Incontrastabilidade da coisa julgada;
3.2.3 Demais argumentos: teor e inconsistência; 3.3 Atividades judiciárias
danosas; 3.3.1 A questão do tempo no processo; 3.3.2. Demora na prestação da
tutela jurisdicional; 4 Conclusão; Referências bibliográficas
Resumo: O presente trabalho consiste num estudo a respeito da responsabilidade civil do Estado pela demora na prestação jurisdicional, procurando analisar seus principais aspectos, num esforço direcionado a identificar as linhas mestras que definem os contornos do instituto na atualidade. Para tanto, o ponto de partida da pesquisa será a responsabilidade civil do Estado, oportunidade em que foram feitas considerações gerais acerca da matéria, percorreu-se, a passos largos, o seu respectivo histórico e enfocado seu tratamento legal no ordenamento jurídico brasileiro, além de ser tecidas algumas considerações sobre o disciplinamento da questão no sistema francês. Referida etapa, por sua vez, abriu o caminho para que se fosse possível adentrar, de um modo específico, no tema da pesquisa, que mereceu, num primeiro momento, considerações sobre a função jurisdicional, que foi devidamente contextualizada perante a sistemática constitucional vigente. A seguir, os argumentos contrários à responsabilização do Estado por atos jurisdicionais foram devidamente expostos e rebatidos, sendo o trabalho finalizado pelo tratamento específico da demora na entrega da prestação jurisdicional, após uma breve análise da questão do tempo no processo, tendo por escopo demonstrar que a resistência à admissão da responsabilidade civil estatal por essa falha no serviço judicial não merece acolhimento perante a realidade brasileira.
Abstract: The present work consists of a study about the civil responsibility of the State for delay on the jurisdictional rendering, looking for to analyze its main aspects, in a directed effort to identify to the lines masters that define the contours of the institute in the present time. For in such a way, the starting point of the research was civil responsibility of the State, chance where were done general considerations about the subject, covered, in wide steps, its historic, and tackled its legal treatment at the Brazilian legal system, farther had been done some considerations about the treatment of the question in the French system. Related stage, in turn, opened the way so that it was possible to go inside, in a specific way, in the subject of the research, that deserved, at a first moment, considerations about the jurisdictional function, that duly had been contextualizated according to the constitutional systematic. To follow, the main arguments raised in favor of the irresponsibility of the State for jurisdictional acts had been displayed and struck, being the work finished with an exposition of the specific treatment of the delay on the jurisdictional rendering, having for target to demonstrate that the resistance to the admission of the state civil responsibility for this fault in the judiciary service doesn’t deserve refuge in the Brazilian reality.
Palavras-chave: Responsabilidade civil, Estado, demora, prestação jurisdicional.
Key-words: Civil responsibility, State, delay, jurisdictional rendering.
1. I
ntroduçãoO tema da responsabilidade civil do Estado vem sofrendo, na produção jurídico-doutrinária, um elastecimento de suas fronteiras, justificado, principalmente, pelo aumento da intervenção estatal na esfera privada dos jurisdicionados. Com a solidificação do denominado Estado Social e a crescente busca pelos ideais de justiça social, pela minimização das desigualdades e garantia de acesso à Justiça, o instituto da responsabilidade civil do Estado sofreu uma das mais notáveis evoluções já verificadas na ciência jurídica, tudo para acompanhar essa transição do Estado Liberal para o Estado Social, abandonando a noção inicial de completa irresponsabilidade e chegando a admitir-se uma responsabilização apurada segundo critérios objetivos.
Nessa nova conjuntura, a função jurisdicional assume importância ímpar na concretização dos objetivos sociais, razão pela qual seu exercício deve ser pautado pela busca de qualidade, eficiência e agilidade.
É certo que alternativas como a arbitragem, instituída pela Lei n.º 9.307/96, e a recente desjudicialização de procedimentos como inventário, separação e divórcio consensual trazida pela Lei n.º 11.441/07 constituem caminhos conducentes a uma menor dependência da máquina jurisdicional. Contudo, por razões de diversas ordens, dentre as quais podem ser destacadas as de cunho econômico e até mesmo culturais, a realidade demonstra que a procura pelo Poder Judiciário, que pode ser considerado uma espécie de "muro das lamentações" da sociedade, sofreu – e vem sofrendo – considerável recrudescimento, o que vem a ratificar sua singular importância para a pacificação social.
Contudo, por mais cristalizada que se apresente a importância da missão do Poder Judiciário de fazer reinar a Justiça, não se pode olvidar que um dos maiores obstáculos à realização dessa nobre destinação consiste no atraso na entrega da prestação jurisdicional, decorrentes, dentre outros motivos, da insuficiência da magistrados e servidores para fazer frente ao excesso de demandas, bem como dos inúmeros artifícios processuais à disposição dos litigantes, de tal sorte que a análise em torno da obrigação de indenizar os danos decorrentes da atividade jurisdicional morosa mostra-se tarefa de inegável relevância, mormente à luz da disposição contida no art. LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, que consagrou como direito fundamental a razoável duração do processo.
Em conseqüência, o tema é inspirador de acirradas divergências, tanto entre estudiosos do Direito, como também no âmbito jurisprudencial, no qual a caminhada rumo ao rompimento da resistência em admitir a responsabilização do Estado por atos jurisdicionais prossegue lentamente, revelando um descompasso entre a evolução teórica do instituto e a realidade fática da reparabilidade de danos decorrentes da atividade jurisdicional.
Destarte, a relevância da problemática circunscrita ao assunto, sucintamente exposta linhas acima, aliada a sua atualidade mostram-se como fatores de inegável estímulo ao presente estudo, o qual, entretanto, não tem – e nem poderia ter – a pretensão de resolver todos os problemas afetos à responsabilidade civil do Estado pelo atraso na entrega da prestação jurisdicional, muito menos apresentar conclusões que sejam pacificamente aceitas.
Feitas essas considerações, o trabalho principiará por um estudo do instituto da responsabilidade civil do Estado, onde se indagará a respeito de sua evolução histórica, disciplinamento legal, fundamentos, cuidando-se, ainda que superficialmente, de se proceder a uma análise em torno das excludentes e atenuantes da responsabilidade civil estatal, da denunciação da lide do agente público e da ação de regresso, como forma de preparação ao enfrentamento do tema propriamente dito.
Na referida etapa, por sua vez, primeiramente tratou-se de contextualizar a função jurisdicional e a figura do magistrado, procedendo-se, a seguir, a uma verificação da consistência dos argumentos erigidos em prol da irresponsabilidade estatal por atos do magistrado, para que, por derradeiro, fosse examinada a hipótese de reparação por conta da demora na prestação jurisdicional, que foi devidamente precedida de considerações acerca da problemática tempo versus processo.
Eis, em linhas gerais, os contornos da presente monografia, que se desenvolve nos tópicos seguintes.
2 Aspectos gerais da responsabilidade civil do Estado
Fachin (2001, p. 7-9), ao tecer seus primeiros apontamentos sobre a responsabilidade civil do Estado, relembra que
"O Estado, realidade complexa, está presente na vida de cada um. Pode representar a salvaguarda dos valores mais caros da pessoa humana, mas, ao reverso, pode se constituir também no ‘carrasco’que suprime ideais, sonhos e até mesmo a própria vida humana [...] o Estado desempenha uma complexa gama de atividades [...] que pode interferir, sob as mais variadas formas, na vida de cada pessoa."
Dessa forma, o atuar estatal traz implícito o problema da responsabilidade pelos danos dele decorrentes, vez que o Poder Público, como qualquer outro sujeito de direitos, nos dizeres de Bandeira de Mello (1980, p. 252) "pode vir a se encontrar na situação de quem causou prejuízos a outrem, do que lhe resulta a obrigação de recompor os agravos patrimoniais oriundos da ação ou abstenção lesiva." Aliás, ainda de acordo com o escólio do referido autor (1980, p. 253) "Um dos pilares do moderno direito constitucional é, exatamente, a sujeição de todas as pessoas, públicas ou privadas, ao quadro da ordem jurídica, de tal sorte que a lesão aos bens jurídicos de terceiros engendra para o autor do dano a obrigação de repará-la."
Cumpre, porém, antes de se avançar no tema, fazer menção à seguinte advertência, trazida por Serrano Júnior (1996, p. 47): "[...] diferentemente do que ocorre com as pessoas físicas ou jurídicas de natureza privada não prestadoras de serviço público, a responsabilidade do Estado é regida por princípios e normas próprios, cuja natureza é de direito público."
Desse modo "a responsabilidade civil estatal não está somente disciplinada pelo direito civil, mas, principalmente, pelo direito público, ou seja, direito constitucional, direito administrativo e direito internacional público" (DINIZ, 2002, p 542), em que pese tenha no direito civil o manancial de inúmeros conceitos e elementos indispensáveis à sua estruturação.
Comporta, ainda, o tema ora enfrentado, delimitações de três ordens, quais sejam, o campo de incidência da responsabilidade estatal, o tipo de responsabilidade, bem como os atos que lhe dão ensejo.
No que tange à primeira, Dergint (1994, p. 30) observa que "relativamente ao Estado, apenas existe a responsabilidade civil", excluindo a responsabilização criminal nos seguintes termos (1996, p. 31):
"Ainda que através de lei em sentido estrito, não se pode, todavia, logicamente conceber, no âmbito do Direito Interno, a responsabilização criminal do Estado (notadamente da União), justamente a quem compete, com seu poder soberano, segundo regras por ele mesmo prescritas, prevenir e reprimir os crimes, mediante penas cominadas a seus autores, para que se mantenham invioláveis os valores elementares da vida em sociedade."
Além disso,
"[...] o Direito Positivo pátrio não contempla e certamente não contemplará, no que se refere ao Estado (pessoa jurídica de Direito Público), senão a responsabilidade civil [...] e, embora teoricamente possível, muito difícil aceitar-se-ia a responsabilidade criminal de um Estado-membro." (DERGINT, 1994, p. 32)
Num segundo momento, ressalte-se que o presente estudo cinge-se à chamada responsabilidade extracontratual do Estado, ficando excluída a responsabilidade contratual, regida por princípios próprios, afetos aos contratos administrativos. Essa responsabilidade extracontratual do Estado, por sua vez, de acordo com a lição de Bandeira de Mello (1980, p. 252) consiste na "obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos causados a terceiros e que lhes sejam imputáveis em decorrência de comportamentos comissivos e omissivos, materiais e jurídicos."
Por derradeiro, registre-se que a responsabilidade estatal pode ser desencadeada não só por atos ditos ilícitos, como também por atos os quais, a princípio, não importam em ofensa à lei. Consoante Di Pietro (2002, p. 523),
"Ao contrário do direito privado, em que a responsabilidade exige sempre um ato ilícito (contrário à lei), no direito administrativo ela pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade." (grifo da autora)
Em análise mais profunda sobre o assunto, Trujillo (1996, p. 100-101) assevera que "surge a responsabilidade do Estado quando, embora praticando atos nos limites previstos na legislação e visando atender sua própria finalidade, motiva danos a terceiros."
Entretanto, a reparabilidade do dano, nesta hipótese, condiciona-se à satisfação de dois requisitos, quais sejam, a especialidade e a anormalidade:
"Será indenizável o ato se, embora lícito, motivado pelo interesse público, causar um prejuízo especial e anormal, isto é, ato impositivo de sacrifício e não, simplesmente, restritivo de direito.
Essa imposição, todavia, para motivar o reconhecimento da responsabilidade do Estado, exigirá a combinação desses dois requisitos mencionados: especialidade e anormalidade, posto que, ausentes essas condições, o ato será considerado restritivo de direitos sendo abrangente de toda a coletividade ficando, portanto, dentro da esfera de atuação no mundo social." (TRUJILLO, 1996, p. 100-101)
A respeito desses elementos condicionadores da responsabilidade civil do Estado decorrente de atos lícitos, diga-se que a especialidade refere-se a um prejuízo particular ou a um certo número de vítimas determinadas, vale dizer, o ato considerado lesivo não deve espraiar seus efeitos sobre toda a sociedade, caso contrário, configuraria um ônus comum à convivência social; a anormalidade, por sua vez, implica num transbordo dos incômodos e inconvenientes ordinários e que são inerentes à própria vida em sociedade, frutos inafastáveis do convívio societário. (BANDEIRA DE MELLO, 1980, p. 259)
Tais atributos, entretanto, por si só, não são capazes de supedanear a pretensão reparatória do lesado por ato lícito do Estado, sendo necessário, outrossim, o preenchimento dos demais requisitos que dão azo à responsabilidade civil, conforme se queira sustentá-la com base na Teoria do Risco Administrativo ou na Teoria da Falta do Serviço.
Não se pode olvidar, por fim, consoante muito bem alerta Diniz (2002, p. 541-542) que a relação entre o Estado e seus agentes é orgânica, de tal sorte que, sendo este uma pessoa jurídica, não possui vontade nem ações próprias, manifestando-se através de pessoas físicas, é dizer, seus agentes, regularmente investidos nessa qualidade, cujas atitudes são atribuídas ao ente estatal por uma relação de imputação direta.
2.1 Breve retrospecto histórico
Segundo Dergint (1994, p. 35), a evolução da noção de responsabilidade estatal "perpetrou-se sobretudo como exigência de justiça social", de forma que o dever estatal de indenizar os danos oriundos de atividades de seus agentes não foi concebido como se apresenta atualmente, mas foi lentamente aperfeiçoado, em atenção à evolução da sociedade, principalmente por labor doutrinário e jurisprudencial, até que se obtivesse o seu reconhecimento através de texto legal.
Não se observa uma uniformidade na divisão das etapas históricas que compreendem a evolução da responsabilidade estatal, existindo, inclusive, divergências terminológicas a respeito [1]. De qualquer forma, adotar-se-á, no presente estudo, a divisão tríplice de Dergint (1994, p. 35-36), para quem, o tema contempla três fases, "caracterizadas pelo regime político dominante em cada qual, quais sejam: 1.ª) fase da irresponsabilidade; 2.ª) fase civilística; e 3.ª) fase do Direito Público, em que se encontra a doutrina contemporânea", considerando-se, ainda, as subdivisões que comportam essas duas últimas fases.[2]
2.1.1 Teoria da irresponsabilidade
Nessa primeira fase, que teve seu ápice no período absolutista da história, o princípio fundamental era o da negativa da pretensão reparatória àqueles que viessem a sofrer algum dano decorrente de atividades desempenhadas por agentes estatais, de tal sorte que o Estado não poderia ser compelido a indenizar prejuízos oriundos de atividades que lhe fossem atribuídas. A soberania e a noção pela qual o Estado não poderia causar males ou danos a quem quer que fosse justificava a impossibilidade de se buscar a reparação por danos causados por seus agentes quando atuavam em nome do Poder Público. Nesse sentido, Dergint (1994, p. 36) assevera que:
"Sob o domínio de governos absolutistas, regia a doutrina da irresponsabilidade do Estado, como corolário da idéia de soberania. Entendia-se que este não podia praticar atos contrários ao Direito. Daí os princípios regalengos de que ‘o rei não pode errar’ (the king can do no wrong, como se afirmava na Inglaterra; le roi ne peut mal faire, na França) ou de que "aquilo que agrada ao príncipe tem força de lei (quod principi placuit legis habet vigorem)."
Entretanto, conforme expõe Bandeira de Mello (1980, p. 256),
"Essas assertivas, contudo, não representavam completa desproteção dos administrados perante comportamentos unilaterais do Estado. Isto porque [...] admitia-se responsabilização quando lei específicas a previssem explicitamente [...].
Demais disso, o princípio da irresponsabilidade do Estado era temperado em suas conseqüências gravosas para os particulares pela admissão da responsabilidade do funcionário, quando o ato lesivo pudesse ser diretamente relacionado a um comportamento pessoal, seu." [3] (grifo do autor)
Assim, em que pese as portas da reparabilidade estarem fechadas ao lesado perante o Estado, o caminho para a busca de uma indenização frente ao funcionário apresentava-se como uma alternativa a ser explorada, bem como em certas hipóteses eram contempladas legalmente em diplomas que admitiam a indenização.
Essa concepção, entretanto, passou a ser fortemente combatida, haja vista a sua não adequação à nova realidade moldada pela evolução dos tempos. A responsabilidade civil do Estado [4], então, passou a merecer um novo enfoque, surgindo teorias que procuravam justificá-la, as quais foram sendo lentamente lapidadas até que se chegasse à atual visão do instituto, pela qual a responsabilidade estatal encontra-se firmemente consolidada nas leis, na doutrina e na jurisprudência dos povos civilizados, de modo que a teoria da irresponsabilidade merece reporte meramente histórico. [5]
Essas teorias representaram uma tentativa, inspirada pelo individualismo liberal do século XIX, de se transportar, para a seara da responsabilidade do Poder Público, preceitos que a norteiam no Direito Privado, qual seja, a noção de culpa, representando, assim, uma reação à irresponsabilidade do Estado, que não mais se harmonizava com o Direito, podendo ser dividida em duas etapas. Na primeira, essa mudança de panorama deu-se de um modo mais acanhado, distinguindo-se os atos estatais em atos de império e atos de gestão, sendo admitida a responsabilização somente por estes últimos, prevalecendo, quanto aos primeiros, a vetusta idéia de irresponsabilidade; na segunda fase dessa transição, abandonou-se essa distinção, passando a culpa a ser a questão nuclear.
2.1.2.1 Teoria dos atos de império e atos de gestão
Nessa etapa evolutiva, Dergint (1994, p. 37) assinala que:
"Em uma segunda fase, marcada pelo individualismo liberal do século passado [século XIX], procurou-se resolver o problema da responsabilidade do Estado através de princípios de Direito Civil. Distinguia-se entre atos de gestão e atos de império do Poder Público."
Nos termos dessa teoria, concebia-se o Estado como um ente dotado de dupla personalidade e, por via reflexa, os atos estatais poderiam apresentar-se por meio de duas modalidades, assim diferenciadas por Di Pietro (2002, p. 525-526):
"Os primeiros [atos de império] seriam praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes; os segundos [atos de gestão] seriam praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão dos serviços; como não difere a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum."
Como forma de abrandar a tese da irresponsabilidade do monarca, essa teoria foi o primeiro passo para o reconhecimento da responsabilidade estatal, ainda que de forma superficial e tímida, cuja configuração, admitida tão somente nos atos de gestão, norteava-se pelos princípios do Direito Privado, pelos quais competia ao lesado demonstrar, dentre os outros pressupostos da responsabilidade civil, a culpa do agente público.
Como já é possível de se antecipar, essa teoria não logrou subsistir, por críticas de duas ordens. Primeiramente, é de se salientar que seu traço principal, é dizer, a divisão entre atos de império e atos de gestão, pelos quais o Estado, respectivamente, eximir-se-ia ou então deveria arcar com a responsabilidade, caso não fosse impossível de ser feita, não poderia ser fixada com o rigor e precisão devidos, além do fato pelo qual o Estado não possui duas personalidades distintas, "mas apenas uma, que é, a um só tempo, titular da soberania e dos direitos e deveres relativos à gestão do seu patrimônio e de seus serviços." (ARAUJO, 1981, p. 28)
Assim, cedeu a teoria dos atos de império e de gestão frente a uma nova teoria que, por sua vez, dilatou um pouco mais o campo de admissão da responsabilidade estatal.
Por essa doutrina, o Estado poderia ser obrigado a indenizar os danos que seus agentes, nessa qualidade, causassem a terceiro, desde que este se desincumbisse do ônus de provar a culpa daqueles, razão pela qual a afirmação da responsabilidade condicionava-se à demonstração do referido elemento anímico. A responsabilidade estatal, portanto, passou a ser norteada pelos princípios de Direito Privado, cuja aplicação era feita em sua integralidade. Indivíduo e Estado eram colocados num mesmo plano e em igualdade de condições.
Como leciona Gasparini (2001, p. 822-823):
"Por esse artifício o Estado tornava-se responsável e, como tal, obrigado a indenizar sempre que seus agentes houvesse agido com culpa ou dolo. [...] O Estado e o indivíduo eram, assim, tratados de forma igual. Ambos, em termos de responsabilidade patrimonial, respondiam conforme o Direito Privado, isto é, se houvesse se comportado com culpa ou dolo. Caso contrário não respondiam."
Nesse contexto, não mais se distinguiam os atos estatais, como na teoria precedente, devendo o Estado indenizar desde que presentes os pressupostos da responsabilidade civil. Tal solução, entretanto, não se coaduna com a realidade fática e se mostra inegavelmente injusta. Realmente, é de Aguiar Dias (1983, p. 621) a seguinte observação:
"Como o mau funcionamento do serviço público nem sempre se identifica com a falta de determinado funcionário, a aplicação de tal doutrina resulta em negação de responsabilidade sempre que não seja possível estabelecer a culpa do funcionário, muito embora se defronte a caso autêntico de defeito do serviço."
Dessa forma, essa doutrina, apesar de representar mais um passo na trilha evolutiva da responsabilidade civil do Estado, ainda não se mostrava plenamente adequada no disciplinamento das relações entre o Poder Público e o particular, vez que era incompatível com as exigências de justiça social, por exigir demais deste último, obrigando-o a demonstrar, além do dano, a atuação culposa do agente público. Com muita sensibilidade, nota Meirelles (2003, p. 622) que
"Realmente, não se pode equiparar o Estado, com seu poder e seus privilégios administrativos, ao particular, despido de autoridade e de prerrogativas públicas. Tornaram-se, por isso, inaplicáveis em sua pureza os princípios subjetivos da culpa civil para a responsabilização da Administração pelos danos causados ao administrados. Princípios de Direito Público é que devem nortear a fixação dessa responsabilidade."
Ficam, assim, enunciadas as diretrizes que nortearão a próxima fase da evolução da responsabilidade estatal, na qual à culpa civil serão amalgamados princípios de Direito Público até que se chegue num estágio tal que referido elemento subjetivo perderá seu papel de protagonista na imputação de responsabilidade ao Estado pelos danos causados por seus agentes que atuarem nessa qualidade.
No século XX, teve início a terceira fase da evolução teórica do instituto da responsabilidade civil estatal, coincidindo, pois, com a consagração do Estado Social (DERGINT, 1994, p. 38). Nessa fase, a responsabilidade civil do Estado passou a ser elaborada a partir de princípios de Direito Público, visão esta que teve origem no famoso caso Blanco, na França. [6] Nela, podem ser identificadas a teoria da falta do serviço ou da culpa administrativa e a teoria do risco, que se bifurca em risco administrativo e risco integral. [7]
2.1.3.1 Teoria da falta do serviço
Também denominada teoria da culpa administrativa, essa concepção consagra a falta de adequação dos princípios da culpa, nos moldes em que é concebida no Direito Civil, ao campo da responsabilidade civil do Estado, demandando o desenvolvimento de um mecanismo de adaptação, consistente na desvinculação da responsabilidade do Estado da idéia de culpa individual do funcionário, deslocando-a para a culpa do serviço público. Dergint (1994, p. 39-40) ensina que essa teoria "leva em conta a irregularidade no funcionamento do serviço para dele inferir a responsabilidade estatal. O fato gerador desta é, pois, a faute du service, isto é, o ‘funcionamento defeituoso do serviço’, que independe da culpa do agente público."
Serrano Júnior (1996, p. 56), por seu turno, esclarece que:
"[...] os danos decorrentes do mau funcionamento de um serviço público serão atribuídos como de responsabilidade da pessoa jurídica que o explora. A ‘faute du service’ se caracteriza quando o serviço público: a) funciona mal; b) não funciona; ou c) funciona tardiamente."
Meirelles (2003, p. 622-623) identifica essa teoria como pertencente ao tronco comum da responsabilidade estatal dita objetiva, juntamente com as teorias do risco administrativo e do risco integral, representando o primeiro estágio na transição entre a doutrina subjetiva da culpa civil e a teoria objetivista da responsabilidade do Estado.
Entretanto, não se deve perder de vista que esta teoria tem por fundamento a noção de culpa, ainda que revestida de um verniz especial, haja vista as peculiaridades do organismo estatal. Nesse sentido, é a lição de Cretella Júnior (2000, p. 614):
"As exigências e a situação toda especial do Estado atraíram a atenção dos publicistas, que reelaboraram a teoria da culpa dentro do quadro sui generis do direito público.
A culpa no direito público, se não se opõem à culpa do direito privado, apresenta-se com matiz mais rico e todo peculiar [...]
No âmbito da responsabilidade administrativa, a culpa é compreendida de maneira ampla. É a culpa publicística que, positivada, obrigará o Estado a indenizar." (grifo do autor)
Destarte, a culpa, para essa teoria, embora não tenha sua essência desnaturada de um modo absoluto, mostra-se desvinculada da idéia de culpa civil, "ora baseada na culpa "in eligendo" ou na "in vigilando" da pessoa jurídica sobre seus funcionários, ora por equiparação à responsabilidade do patrão ou comitente por atos ilícitos dos seus funcionários ou prepostos." (SERRANO JÚNIOR, 1996, p. 57, grifo do autor)
A caracterização da responsabilidade civil do Estado, pelo prisma da teoria da falta do serviço, demanda, portanto, a chamada culpa impessoal ou anônima do serviço público, traduzida no descumprimento, diretamente imputado ao Estado, dos atos e omissões de seus agentes, no desempenho de seus misteres de garantir a prestação e o oferecimento satisfatórios dos serviços públicos. Não se discute a culpa individual do agente, tendo relevância apenas a circunstância pela qual houve ou não falha no serviço desempenhado pelo Estado através de seus agentes. (SERRANO JÚNIOR, 1996, p. 57)
Dergint (1994, p. 40), citando Paul Duez e Guy Debeyre, enumera os seguintes traços gerais da responsabilidade, segundo a teoria ora em análise:
"1.º) caráter autônomo (rege-se pelo Direito Público, independendo do Direito Civil); 2.º) caráter primário (o lesado pode acionar diretamente o Estado, que é declarado imediatamente responsável); 3.º) caráter anônimo (não se vincula necessariamente à idéia de culpa de um agente identificado, bastando estabelecer o defeito no funcionamento do serviço – on juge le service et non l’agent); 4.º) caráter ‘nuançado’ ou graduado (a falta de serviço público não engendra automaticamente a responsabilidade estatal: deve existir um certo grau de ‘defeituosidade’, isto é, de ‘gravidade’ da culpa, que varia conforme o tipo de serviço, circunstâncias de tempo, lugar, condicionamento do serviço etc. – o que deve ser apreciado em cada caso concreto); 5.º) caráter geral (aplica-se a todas as pessoas administrativas, sendo a teoria de base, embora alguns avanços da teoria do risco)"
Ante o exposto, a teoria da falta do serviço deve ser concebida como uma modalidade intermediária entre as teorias civilistas, calcadas na noção de culpa preconizada pelo Direito Civil, e a teoria do risco, em suas duas modalidades, que secundariza a aferição de qualquer elemento subjetivo para a fixação da responsabilidade estatal, salientando-se, contudo, seu enquadramento entre as teorias ditas subjetivistas, tudo porque não abandonou completamente o conceito de culpa, recebendo este tempero publicístico em razão da especial condição do Estado.
2.1.3.2 Teoria do risco administrativo
Na teoria do risco administrativo, a responsabilidade civil estatal prescinde da aferição de qualquer elemento subjetivo, sendo bastante, para sua configuração, a relação de causalidade entre o dano suportado pelo lesado e a conduta do agente público, restando ausente qualquer causa excludente ou atenuante da responsabilidade civil do Estado.
Se na teoria da falta do serviço ou culpa administrativa, exigia-se a falta do serviço, na teoria do risco administrativo exige-se simplesmente o fato do serviço (MEIRELLES, 2003, p. 653), secundarizando-se qualquer perquirição em torno da culpa do Estado ou de seus agentes, patente o fato de que a imputação da responsabilidade civil é feita por critérios objetivos. Assim, "a idéia de culpa é substituída pela de nexo de causalidade entre o funcionamento do serviço público e o prejuízo sofrido pelo administrado. É indiferente que o serviço público tenha funcionado bem ou mal, de forma regular ou irregular." (DI PIETRO, 2002, p. 527, grifo da autora)
São, portanto, pressupostos da responsabilidade estatal, nos moldes da teoria ora exposta: "a) o fato do serviço; b) lesão ao direito de outrem; c) relação de causalidade entre aquele e esta." (FACHIN, 2001, p. 87)
Merece destaque, nesta concepção, a admissibilidade de invocação, pelo Estado, de causa excludente ou atenuante da responsabilidade civil, na tentativa de descaracterizá-la ou mesmo mitigá-la. Consoante a lição de Rosa (2003, p. 168), a teoria do risco administrativo "Não autoriza o reconhecimento inexorável da responsabilidade civil do Estado, admitindo formas de exclusão (culpa da vítima, ausência de nexo de causalidade, força maior), ao contrário da teoria do risco integral."
Ressalte-se ainda que, segundo Fachin (2001, p. 88) e Meirelles (2003, p. 623-624), foi esta a teoria adotada pelo constituinte brasileiro de 1988, seguindo a trilha da Carta Magna de 1946, questão esta que será abordada mais amiudemente em tópico próprio do presente capítulo.
2.1.3.3 Teoria do risco integral
A teoria do risco integral representa uma concepção da teoria do risco administrativo levada às suas últimas conseqüências, representando o ápice da responsabilidade objetiva do Estado. Segundo Meirelles (2003, p. 624), por essa fórmula radical,
"[...] a Administração ficaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima. Daí porque foi acoimada de ‘brutal’, pelas graves conseqüências que haveria de produzir se aplicada na sua inteireza."
Essa teoria extrapola os limites do risco administrativo, vez que impõe ao Estado o dever de indenizar todo e qualquer prejuízo. "Tendo o Estado se envolvido no evento danoso, não se permite que produza a prova de que a vítima agiu com culpa ou que esteve presente qualquer outra causa de exclusão de responsabilidade." (FACHIN, 2001, p. 89)
Em que pese existirem vozes em sentido contrário, essa teoria não foi acolhida pelo direito brasileiro, tudo porque, como é de fácil percepção, conduziria ao abuso e à iniqüidade social. Com efeito, impor ao Estado a obrigação de arcar com um prejuízo que ocorrer tão apenas por culpa exclusiva da vítima ou qualquer outra causa excludente, não lhe permitindo sua respectiva invocação, mostra-se incontestavelmente desarrazoado, tendo sido essa teoria rejeitada pela maioria da doutrina [8] e pela jurisprudência.
Eis, em linhas gerais, um retrospecto histórico da responsabilidade civil estatal e das respectivas teorias que, inicialmente a excluíam, para, ao depois, darem-lhe suporte. Verifica-se, nesse panorama, que o instituto, ao longo da história, desabrochou lentamente, conforme as exigências sociais, partindo da completa irresponsabilidade, passando por fases de transição nas quais foi ganhando volume e identidade própria do Direito Público, nas concepções civilistas (etapas da teoria dos atos de império e de gestão e da culpa civil) e publicistas (falta do serviço ou culpa administrativa e teorias do risco) culminando, por derradeiro, numa responsabilização irrestrita e absoluta do Estado, preconizada pelo risco integral, sabiamente afastada.
É interessante notar, com Gasparini (2002, p. 825), que,
"[...] se tais teorias obedeceram a essa cronologia, não quer isso dizer que hoje só vigore a última a aparecer no cenário jurídico dos Estados, isto é, a teoria da responsabilidade patrimonial objetiva do Estado ou teoria do risco administrativo. Ao contrário, em todos os Estados acontecem ou estão presentes as teorias da culpa administrativa e do risco administrativo, desprezadas as da irresponsabilidade e do risco integral. Aquela (culpa administrativa) se aplica, por exemplo, para responsabilizar o Estado por danos decorrentes de casos fortuitos e de força maior, em que o Estado indeniza se tiver se omitido em comportamentos impostos por lei. Esta (risco administrativo), nos demais casos." (grifo do autor)
Destarte, no entendimento atual, duas teorias podem ser invocadas para se configurar a responsabilidade civil do Estado, é dizer, a teoria da falta do serviço ou culpa administrativa, bem como a teoria do risco, admitidas, nessa hipótese, a invocação de excludentes e atenuantes da responsabilidade estatal, ou seja, a modalidade risco administrativo.
2.2 Princípios fundamentais da responsabilidade civil do Estado
Ao longo de sua evolução, o instituto da responsabilidade civil do Estado foi embasado por diversos princípios e teorias, o que denota uma preocupação perene de seus estudiosos, nas mais diversas épocas, em identificar-lhe um fundamento próprio e, embora haja uma constante, qual seja, a noção de eqüidade, no pensamento de todos os autores, o certo é que os limites precisos dessa tão procurada fundamentação ainda não foram fixados.
Trujillo (1996, p. 57-58) arrola três teorias que visam dar suporte à responsabilidade civil do Estado. São elas a teoria do sacrifício especial, a teoria da igualdade dos encargos públicos e a teoria do seguro social.
Pela primeira, desenvolvida por Otto Mayer a partir do princípio da eqüidade, a obrigação estatal de indenizar surge quando o particular é submetido a um prejuízo desigual em relação ao demais membros da coletividade, por força de uma atividade pública, lícita ou não, de forma a impor-lhe uma privação patrimonial.
A segunda, por sua vez, tem como expoentes Tiraud, Teissier e Duez e preconiza a garantia constitucional da igualdade de todos na repartição dos encargos públicos, de forma que um cidadão não pode ser onerado mais gravosamente por uma atividade pública levada a efeito em proveito de todos, devendo os danos anormais decorrentes do interesse comum serem suportados por todos os beneficiários do serviço.
A terceira corrente, vale dizer, a teoria do seguro social, sustentada por Duguit, considera a responsabilidade civil do Estado embasada na idéia de um seguro social a cargo do erário público em benefício de todos os eventualmente lesados por atividades públicas, vez que são elas exercidas no interesse de toda a coletividade.
Referidas teorizações indicam a necessidade de maiores estudos na tentativa de se chegar a um consenso. Verifica-se, contudo, uma tendência preponderante de se considerar, como princípios fundamentais da responsabilidade civil do Estado, o princípio da legalidade e da igualdade, conforme se trate de atos ilícitos ou lícitos, respectivamente.
Essa concepção bipartida é atribuída a Bandeira de Mello (1980, p. 260), que a expõe nos seguintes termos:
"Ao nosso ver, o fundamento se biparte. No caso de comportamentos ilícitos, comissivos ou omissivos, o dever de reparar o dano é a contrapartida da violação da legalidade. No caso de atos lícitos, parece-nos que o fundamento da responsabilidade estatal é a idéia de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos. O que se pretende neste caso, através da responsabilidade do Estado é garantir uma repartição dos ônus provenientes dos atos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião do exercício de atividade desempenhada no interesse de todos."
Diniz (2002, p. 540) [9], partindo dessa noção, e dando especial destaque à necessidade de restabelecimento do equilíbrio, complementa as idéias do administrativista acrescentando que:
"Funda-se a responsabilidade estatal, portanto, no princípio da isonomia, logo, deve haver igual repartição dos encargos públicos entre os cidadãos, pois, se em razão de atividade administrativa somente alguns particulares sofrerem danos especiais e anormais, isto é, não comuns da vida social, haveria um desequilíbrio na distribuição dos ônus públicos se somente eles suportassem o peso daquela atividade. Daí a imprescindibilidade de se restabelecer o equilíbrio, ressarcindo os lesado à custa dos cofres públicos. Conseqüentemente, ficará a cargo do Estado a obrigação de indenizar dano acarretado pelo funcionamento do Poder Público, evitando-se que se onerem alguns cidadãos mais que os outros." (grifo nosso)
Considerando-se, portanto, que a responsabilidade estatal pode derivar tanto de atos lícitos como de atividades desprovidas de licitude, a bipartição dos princípios que a fundamentam ora exposta deve ser reconhecida como procedente. Tal solução, com raízes no Direito Público, compatibiliza-se perfeitamente com as nuanças próprias da responsabilidade estatal, elegendo os princípios da legalidade e da igualdade, os quais gozam de dignidade constitucional, para dar sustentáculo ao instituto, conforme se esteja diante de um ato ilícito ou lícito, respectivamente.
Dessa forma, perante a violação de uma norma jurídica, o Estado deverá responder por força do princípio da legalidade; tratando-se, porém, de imposição ao particular de danos especiais e anormais, que ultrapassam os limites do tolerável na vida em sociedade, a responsabilização tem esteio no princípio da igualdade, cumprindo salientar que, em última análise, em ambas as situações a idéia de manutenção do equilíbrio sócio-jurídico.
2.3 Responsabilidade civil do Estado no direito comparado: o sistema francês
Ainda que por meio de uma abordagem bastante perfunctória, interessante se mostra, ao presente estudo, adentrar em sistema jurídico estrangeiro, no concernente ao modo pelo qual a responsabilidade civil do Estado é neles regulada, para que se possa traçar um comparativo entre esses disciplinamentos alienígenas e o brasileiro, bem como constatar que a responsabilização do Estado é uma tendência que goza de robustez em termos internacionais.
Nesse passo, oportuna se mostra a advertência de Serrano Júnior (1996, p. 88), segundo a qual a responsabilidade do Estado adquire, em cada país, uma conotação própria, que varia segundo o poder de disposição das partes em relação ao processo, o grau de prestígio e criatividade do Poder Judiciário, o caráter público ou secreto de seus procedimentos e, principalmente, do valores sociais vigentes a cada época e em cada país.
Em França, a adoção do sistema denominado contencioso administrativo, pelo qual as funções administrativas são separadas das judiciárias, sendo vedado ao Judiciário decidir questões pertinentes aos atos jurídicos praticados por entes da Administração, conferiu um traço peculiar à responsabilidade estatal nesse país consistente na possibilidade de formação de duas jurisprudências, às vezes conflitantes.
Assim é que, no Direito francês, tem-se que, no concernente à organização do serviço judiciário francês, por força de sua dependência exclusiva do Poder Executivo, os danos daí provenientes serão regulados pelo direito comum da responsabilidade administrativa, estando sujeitos à apreciação pelo Conselho de Estado (SERRANO JÚNIOR, 1996, p. 93).
Contudo, como nota Jean Rivero (1981, p. 342), questão de maior complexidade surge quando se está diante de danos provocados pelo funcionamento da justiça, porque se verifica uma cisão no tratamento da questão da responsabilidade estatal decorrente dos serviços judiciários, conforme se trate de atividade danosa praticada pela justiça administrativa, sujeita à apreciação do "juiz administrativo", ou de dano advindo de conduta levada a efeito pela justiça judiciária, cuja competência toca ao "juiz judiciário." Isso é dito porque, por conta desse desdobramento, há a formação de duas jurisprudências sobre a matéria, por vezes conflitantes.
Face tal constatação, Réné Chapus (1985, p. 845) tece crítica no sentido de que essa distinção não se sustenta, vez que a atividade da justiça judiciária está sob gestão pública, o que justifica a aplicação, também nesta seara, dos princípios da responsabilidade do Poder Público.
Assim como se deu no Brasil, em França o instituto da responsabilidade civil do Estado sofreu evolução ao longo do tempo, partindo da noção da irresponsabilidade até que restasse finalmente admitida a responsabilização estatal. Nesse percurso, merece destaque o advento da Lei n.º 72-620, em 1972, que, promovendo reformas no art. 11, do Code de procédure civile, inverteu o posicionamento então vigente, consagrando o princípio da responsabilidade estatal por dano causado no funcionamento do serviço judiciário.
Acerca dessa alteração legislativa, André de Laubadère afirma que foi instituído um
"(...) regime de responsabilidades inspirado no direito administrativo: distinção da responsabilidade do Estado por falta de serviço público e da responsabilidade do juiz por falta pessoal e sistema do cúmulo (e não mais da substituição) de responsabilidade." [10]
Dessa forma, o acolhimento do princípio da responsabilidade estatal pela referida lei teve abrangência na jurisdição judiciária, com aplicabilidade tanto aos atos jurisdicionais propriamente ditos, como também aos atos jurídicos ou materiais de execução do serviço público da justiça. Além disso, muito embora tenha sido, a princípio, aplicável somente aos tribunais judiciais, essa lei levou o Conselho de Estado francês a modificar seu entendimento, passando a adotar a tese da responsabilidade por atos danosos oriundos das atividades jurisdicionais administrativas. (DERGINT, 1994, p. 86-87).
Verifica-se, pois, essa tendência a responsabilizar o Estado por atos danosos, num sinal de atendimento aos anseios sociais e avanços da doutrina e da jurisprudência para que o ente estatal, por conta de sua significativa ingerência na vida do integrante do corpo social, responda pelos danos que porventura advenham dessa atividade.
2.4. A responsabilidade civil do Estado à luz da Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988, cognominada de "Constituição Cidadã", por restabelecer os valores democráticos que foram eclipsados ao longo do período ditatorial, em linhas gerais, conservou a responsabilidade do Estado apurada mediante critérios objetivos, é dizer, independentemente de culpa do agente causador do dano, seguindo a tendência inaugurada em 1946, bem como o direito de regresso contra este último, oportunidade na qual a discussão ao redor do elemento subjetivo tem lugar.
Merece destaque, nesse texto, uma alteração terminológica que colocou termo às divergências quanto à abrangência do vocábulo "funcionários" empregado no texto anterior, sendo o mesmo substituído pela expressão "agentes", conforme se constata por meio da leitura do art. 37, § 6.º, da Lei Maior [11]. Traz ainda referido dispositivo importante inovação ao estender a responsabilidade estatal às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços de natureza pública. A esse respeito, é de Di Pietro (2002, p. 529-530) o seguinte comentário:
"A regra da responsabilidade objetiva exige, segundo o art. 37, § 6.º, da Constituição:
1. que se trate de pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviços públicos; a norma constitucional veio pôr fim às divergências doutrinárias quanto à incidência de responsabilidade objetiva quanto se tratasse de entidades de direito privado prestadoras de serviços públicos (fundações governamentais de direito privado, empresas públicas, sociedades de economia mista, empresas permissionáris e concessionárias de serviços públicos), já que mencionadas, no art. 107 da Constituição de 1967, apenas as pessoas jurídicas de direito público (União, Estados, Municípios e Distrito Federal, Territórios e autarquias);
2. que essas entidades prestem serviços públicos, o que exclui as entidades da administração indireta que executem atividade econômica de natureza privada; assim é que, em relação às sociedades de economia mista e empresas públicas, não se aplicará a regra constitucional, mas a responsabilidade disciplinada pelo direito privado, quando não desempenharem serviço público;" (grifo da autora)
O termo "agente", por seu turno, é de ser compreendido de uma forma ampla, abrangendo todas as categorias através das quais pode uma pessoa vincular-se ao serviço público, tanto em caráter permanente ou transitório. A respeito de sua adoção pelo constituinte de 1988, Meirelles (2003, p. 627) esclarece que:
"A Constituição atual usou acertadamente o vocábulo agente, no sentido genérico de servidor público, abrangendo, para fins de responsabilidade civil, toda as pessoas incumbidas da realização de algum serviço público, em caráter permanente ou transitório. O essencial é que o agente da Administração haja praticado o ato ou omissão administrativa no exercício de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las. Para a vítima é indiferente o título pelo qual o causador direto do dano esteja vinculado à Administração; o que é necessário é que se encontre a serviço do Poder Público, embora atue fora ou além de sua competência administrativa." (grifo do autor)
Assim delimitada a abrangência subjetiva do dispositivo constitucional, pode-se concluir, com Fachin (2001, p. 107), que o preceito não tolera exceções, abarcando a responsabilidade civil do Estado em todas as suas dimensões, não se incluindo apenas as atividades administrativas, mas também as legislativas e jurisdicionais. [12]
Conforme mencionado linhas acima, a Constituição Federal acolheu a responsabilidade objetiva do Estado, de tal sorte que, para sua caracterização deve ser verificado, primeiramente, a ocorrência de um dano, uma conduta, comissiva ou omissiva, do Poder Público, a existência de um nexo causal entre esta e aquele, além da ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. (MORAES, 2004, p. 911)
Acolheu-se, portanto, a teoria do risco administrativo, patente a possibilidade de invocação de causa excludente ou atenuante da responsabilidade, vedada qualquer possibilidade de previsão normativa de outras teorias, inclusive a do risco integral (MORAES, 2004, p. 911). O reconhecimento da adoção da teoria do risco administrativo também é verificável no plano jurisprudencial, sendo inclusive este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. [13]
José Afonso da Silva (2001, p. 658), estabelecendo uma aproximação entre o princípio da impessoalidade e a teoria do risco administrativo, assevera que:
"A obrigação de indenizar é da pessoa jurídica a que pertencer o agente. O prejudicado há que mover a ação de indenização contra a Fazenda Pública respectiva ou contra a pessoa jurídica privada prestadora de serviço público, não contra o agente causador do dano."
E prossegue o constitucionalista (2001, p. 658), esclarecendo que, nessa teoria, o lesado
"[...] não tem que provar que o agente procedeu com culpa ou dolo, para lhe correr o direito ao ressarcimento dos danos sofridos. A doutrina do risco administrativo isenta-o do ônus de tal prova, basta comprove o dano e que este tenha sido causado por agente da entidade imputada."
Bandeira de Mello (1980, p. 266), endossando essa visão, argúi ainda interessante questão doutrinária, consistente na indagação pela qual a Constituição de 1967, vigente à época de sua obra, "apenas agasalha a responsabilidade objetiva, tornando-a suscetível de ser aplicada em alguns casos, de par com a responsabilidade subjetiva, cabível em outros tantos, ou se a responsabilidade objetiva tornou-se regra irrecusável na generalidade dos casos." (grifo do autor), questionamento este que, segundo Dergint (1994, p. 57), também é cabível em face do texto constitucional de 1988.
Nesse debate, há defensores de ambas as posições, ressaltando-se, todavia, que a maioria da doutrina segue a segunda posição, é dizer, de acordo com termos do art. 37, § 6.º, da Constituição Federal, a regra, no Direito brasileiro, é a responsabilidade objetiva (MEIRELLES, 2003, p. 626). Contudo, é procedente a advertência de Dergint (1994, p. 59), afeta ao plano jurisprudencial, pela qual
"Por vezes, na jurisprudência brasileira, encontram-se decisões que referem como seu fundamento a responsabilidade objetiva (afirmando ser adotada pela Constituição). Entretanto, nelas, aplica-se em verdade a responsabilidade subjetiva, com base na ‘falta do serviço’ [...]"
Segundo Bandeira de Mello (1980, p. 267-268), a responsabilidade do Estado pode ser imputada tanto por critérios objetivos como também por parâmetros subjetivos, conforme a situação que se apresente. Com efeito, argumenta referido administrativista que no caso de atos lícitos causadores de prejuízo especial e anormal ao particular e de atos ilícitos por comissão, a responsabilidade estatal deve ser apurada objetivamente, estendida também aos danos causados pelo "fato das coisas", é dizer, o dano procede de acidentes ocorridos com coisas próprias da administração ou sob sua custódia; nos atos omissivos, por seu turno, a responsabilidade deve ser determinada pela teoria da culpa administrativa ou da falta do serviço, seja porque não funcionou, funcionou mal ou então tardiamente.
Essa diferenciação, contudo, além de não encontrar respaldo nos Tribunais, também é combatida doutrinariamente. Realmente, Fachin (2001, p. 115) afirma categoricamente que a responsabilidade do Estado sempre será objetiva, não sendo relevante se o dano decorreu de um comportamento positivo ou negativo do agente.
De qualquer forma, é importante que se ressalte a inquestionabilidade do dever indenizatório do Estado toda vez que o particular seja prejudicado por conta de ação ou omissão, vez que tanto o agir quanto a inércia tem o condão de lesionar bens jurídicos, obrigação esta que nasce de responsabilização apurada por critérios objetivos, nas linhas ditadas pela teoria do risco administrativo, não sendo de se desprezar, contudo, a responsabilização estatal nos termos da teoria da falta do serviço ou da culpa administrativa.
O art. 37, § 6.º, da Constituição de 1988 merece, por fim, uma última consideração, relativa à dupla relação de responsabilidade que estabelece, assim descrita por Medauar [14] (1998, p. 387):
"[...] o preceito estabelece duas relações de responsabilidade: a) a do poder público e seus delegados na prestação de serviços públicos perante a vítima do dano, de caráter objetivo, baseada no nexo causal; b) a do agente causador do dano, perante a Administração ou empregador, de caráter subjetivo, calcada no dolo ou na culpa." (grifo da autora)
Dessa feita, na relação Estado-vítima, deverá ser observado o critério objetivo de imputação de responsabilidade, nos termos da teoria do risco administrativo, acatada pelo texto da Lei Maior; já a relação Estado-agente, porventura formada por ocasião do exercício do direito de regresso, terá como princípio norteador a teoria subjetiva, com vistas a se apurar o dolo ou a culpa strictu sensu do causador do dano.
À guisa de remate, convém fazer menção ao advento do Novo Código Civil, cuja vigência teve início sob a égide da Constituição Federal de 1988, mais precisamente em 11 de janeiro de 2003. Trata o referido dispositivo legal do assunto responsabilidade civil do Estado em seu art. 43 [15] que seguiu as linhas traçadas pelo texto constitucional, omitindo, contudo a referência às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, o que, entretanto, não as exime de responsabilidade, face a previsão constitucional expressa nesse sentido. (MEIRELLES, 2003, p. 626)
2.5 Excludentes e atenuantes da responsabilidade civil estatal
O ordenamento jurídico brasileiro acolheu a teoria do risco administrativo, no que concerne à responsabilidade civil do Estado, que põe em relevo três elementos, vale dizer, a conduta lesiva, o dano sofrido e o nexo causal, possuindo este último importância capital na configuração do dever indenizatório por parte do Poder Público, de tal sorte que, como pondera Di Pietro (2002, p. 30), este "[...] deixará de incidir ou incidirá de forma atenuada quando o serviço público não for a causa do dano ou quando tiver aliado a outras circunstâncias, ou seja, quando não for a causa única. (grifo da autora)
Assim é que, admitidas causas excludentes ou atenuantes da responsabilidade civil do Estado, colheu-se junto às lições de Araujo (1981, p. 35) o seguinte rol, igualmente trazido pela doutrina em geral: culpa da vítima, culpa de terceiro, força maior e estado de necessidade, sendo que, consoante Dergint (1994, p. 50), em nenhum deles, com exceção do estado de necessidade
"[...] existe ato ou omissão do agente público no evento danoso. A equação da causalidade responsabilizante não chega a se formar, de modo que não são propriamente ‘excludentes’ da responsabilidade estatal. A análise de cada caso concreto, por outro lado, será necessária à determinação da exclusão ou não da obrigatoriedade indenizatória estatal."
Feita essa ressalva, as causas excludentes supra indicadas serão analisadas em pormenor nos sub-tópicos adiante.
Como bem esclarece Araujo (1981, p. 36), em certas oportunidades,
"[...] mesmo utilizando-se de um serviço público, ou estando em algum edifício ou repartição públicos, pode ocorrer que um particular, mediante ação própria sua, cause um acidente em que o mesmo venha a se lesionar ou ter algum bem seu atingido, causando a si próprio, com isso, algum prejuízo, físico ou patrimonial."
Desse modo, podem ocorrer certos danos nos quais o Poder Público não teve participação alguma em sua ocorrência, de tal sorte que sua causa não se mostra idônea para dar ensejo à responsabilidade do Estado. Na realidade, nessas hipóteses, o Estado não é responsável porque falta o nexo causal que ligue sua atividade ao dano.
Registre-se, contudo que, quando ocorrer culpa da vítima, deve-se fazer uma distinção pela qual referido elemento subjetivo pode ser imputado com exclusividade à vítima ou houve concorrência com a atividade estatal; "no primeiro caso, o Estado não responde; no segundo, atenua-se sua responsabilidade, que se reparte com a da vítima." (DI PIETRO, 2002, p. 531). Destarte, a análise do caso concreto tem importância decisiva para a verificação da ocorrência ou não dessa excludente, bem como de seu desdobramento.
Nos termos da lição de Fachin, o fundamento desta excludente "é o mesmo invocado para o caso de culpa da vítima, eis que, também aqui, se está a focalizar o elemento culpa [...]." Em mais esta oportunidade, o Estado não deve responder pelos danos causados à vítima, vez que não se forma o nexo causal entre sua conduta e o prejuízo sofrido.
Entretanto, no que tange à ação lesiva do terceiro, deve-se observar que a mesma não pode estar contida na esfera de acontecimentos que ao Estado competia evitar, sob pena de restar caracterizada a omissão estatal. Nesse sentido, Araujo (1981, p. 38) afirma que "havendo a ação direta de terceiro, que não possa ter sido objeto de neutralização pelo Estado, em termos razoáveis, dentro dos cuidados usuais exigíveis, não há como negar a hipótese excludente". Referido comportamento, portanto, há de ser inevitável para que se configure a excludente em apreço.
Por força maior, entende-se o "acontecimento imprevisível, inevitável e estranho à vontade das partes, como uma tempestade, um terremoto, um raio." (DI PIETRO, 2002, p. 530). Assim, como bem ensina Araujo (1981, p. 39), tratando-se de força maior, "o fato é estranho ao Estado, comprovadamente irresistível, inevitável e imprevisível. Por isso, o Poder Público não será sujeito da relação jurídica da responsabilidade, que, na verdade, não se forma, não se completa."
Desse modo, a força maior tem o condão de impedir a responsabilidade do Estado pelo fato segundo o qual o dano provocado ao particular não é possível de ser atribuído a qualquer conduta estatal. Todavia, mostra-se oportuna a advertência de Moraes (2004, p. 919), pela qual a força maior, via de regra, exclui a responsabilidade civil do Estado, "salvo porém se a essa ocorrência de força maior somar-se a omissão do Estado [...]. Nesses casos, haverá responsabilidade pela omissão estatal, consagrada pelo § 6.º, do art. 37 da Constituição Federal."
A análise da plausibilidade ou não de invocação dessa excludente passa necessariamente pela indagação acerca do dever do Poder Público de tomar providências no sentido de se evitar o evento danoso, de tal sorte que apenas a resposta negativa é capaz de supedanear sua alegação como excludente da responsabilidade estatal.
Tema que desperta polêmica na doutrina é a distinção entre força maior e caso fortuito, entendendo Araujo (1981, p. 39) que, neste último, "a causa do acidente danoso permanece desconhecida, ignorando-se como foi produzido o evento." Transportando-se essa noção para o Estado, verifica-se que a falha ocorrida atrela-se ao próprio funcionamento da máquina estatal, pelo que se infere não ser o caso fortuito excludente da responsabilidade civil do Estado.
De qualquer forma, segundo Fachin (2001, p. 128), essa doutrina não mereceu o acolhimento da jurisprudência, que aceita tanto o caso fortuito como a força maior como eximentes da responsabilidade estatal, desde que o dano, em nenhuma hipótese, pudesse ser evitado por meio de atividade estatal. A isenção do Estado, portanto, condiciona-se à impossibilidade de o dano poder ser evitado.
Em Direito Administrativo, o estado de necessidade como excludente da responsabilidade estatal tem o mesmo fundamento daquele que lhe é atribuído no Direito Penal como excludente de ilicitude, qual seja, a necessidade de se fazer prevalecer o interesse coletivo sobre interesses pessoais.
Assim como, no crime, não comete ilícito aquele que pratica conduta típica e antijurídica sob o manto do estado de necessidade, também o Estado não deve arcar com os prejuízos oriundos de determinada atividade pública se esta foi levada a efeito visando a "predominância de interesses gerais, públicos, sobre conveniências, interesses, bens ou direitos particulares." (ARAUJO, 1981, p. 40)
Desse modo, é o estado de necessidade causa hábil a afastar a responsabilização, em que pese nas hipóteses de sua invocação estarem presentes todos os pressupostos ensejadores da responsabilidade do Poder Público, vale dizer, uma conduta que produziu um dano, havendo entre ambos o nexo causal.
2.6 Ação regressiva e denunciação da lide
Estabelecida a responsabilidade do Estado em indenizar algum dano decorrente de atividades públicas e sendo referido ressarcimento levado a efeito, nasce a possibilidade de o Poder Público voltar-se contra o agente causador do dano, por meio do exercício do direito de regresso, na tentativa de reaver deste último a importância que fora desembolsada dos cofres públicos na composição do quantum indenizatório pago ao lesado.
Segundo Meirelles (2003, p. 632-633), o êxito dessa ação condiciona-se a dois requisitos: "primeiro, que a Administração já tenha sido condenada a indenizar a vítima do dano sofrido; segundo, que se comprove a culpa do funcionário no evento dano."
A respeito do direito de regresso, anota Rosa (2003, p. 174) que se trata de um direito
"[...] submisso aos rigores do regime jurídico-administrativo, não assistindo ao administrador nenhuma possibilidade de deixar de buscar a responsabilização, salvo se inexistente a culpa do servidor. O direito tem característica de dever (vige a indisponibilidade do interesse público) e não está sujeito a prazo prescricional (CF, art. 37, § 5.º)."
Desse modo, reunidas provas da culpa do agente, é dever do Estado o ajuizamento da ação regressiva, com o fito de reaver tudo o quanto efetivamente foi pago ao particular pelo dano suportado, ressaltando-se que "o falecimento, a demissão, a exoneração, a disponibilidade ou a aposentadoria do agente não obstam a ação regressiva, que pode ser ajuizada em face de herdeiros e sucessores." (ROSA, 2003, p. 174)
Urge ressaltar, por ocasião da presente explanação acerca da ação regressiva, que ela é a sede própria para a discussão em torno da ocorrência de dolo ou culpa na conduta do agente causador do dano, de tal sorte que, o lesado, na ação indenizatória movida em face do Estado, não carece demonstrar qualquer elemento anímico do agente público, tudo conforme a teoria do risco administrativo. As perquirições a respeito do dolo e da culpa do agente fogem de sua esfera de abordagem, como esclarece Silva (2001, p. 658-659):
"A culpa ou dolo do agente, caso haja, é problema das relações funcionais que escapa à indagação do prejudicado. Cabe à pessoa jurídica acionada verificar se seu agente operou culposa ou dolosamente para o fim de mover-lhe ação regressiva assegurada no dispositivo constitucional, visando a cobrar as importâncias despendidas com o pagamento da indenização. Se o agente não se houve com culpa ou dolo, não comportará ação regressiva contra ele, pois nada tem de pagar."
Questão tormentosa e fonte de infindáveis divergências doutrinárias e jurisprudenciais é a possibilidade de o Poder Público, sendo acionado em demanda indenizatória movida por particular, e já identificado o agente causador do dano, lançar mão do instituto da denunciação da lide, em face do disposto no art. 70, inciso III, do Código de Processo Civil, que prevê ser obrigatória a denunciação da lide na hipótese de o denunciado estar obrigado, por lei ou contratualmente a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda, sabendo-se que o art. 37, § 6.º, da Constituição Federal, estatui o direito de regresso em favor do Estado.
Nesse embate, duas posições podem ser delineadas. Pela primeira, a denunciação da lide não deve ser levada a efeito, conforme argumenta Moraes (2004, p. 921):
"Entendemos não haver obrigatoriedade da denunciação da lide nessa hipótese, pois a Teoria do Risco Administrativo, adotada constitucionalmente, não exige demonstração do dolo ou culpa por parte do agente, sendo incabível e processualmente inadequado – em face da celeridade processual – discutir-se sua responsabilidade subjetiva que, repita-se não excluirá a responsabilidade do Estado.
Essa exclusão da obrigatoriedade da denunciação da lide decorre da diferença de responsabilidade existentes entre prejudicado – Estado – agente público causador do dano."
A mesma linha de raciocínio é seguida por Trujillo (1996, p. 124) ao afirmar que no instituto da responsabilidade do Estado, "não cabe a denunciação da lide", vez que somente acarretará maior demora no dever do Estado de indenizar os lesados por suas condutas.
Argumenta-se ainda que na relação entre a o Estado e vítima, regida por critérios objetivos, compete a esta a demonstração do nexo causal entre a conduta estatal e o dano, sem a necessidade do aprofundamento nas questões pertinentes à ocorrência de dolo ou culpa do agente, a ser levado a efeito na ação regressiva, na qual este litigará contra o Estado, cujas relações são orientadas por critérios subjetivos. (MORAES, 2004, p. 921)
Além disso, Medauar (1998, p. 391) acrescenta que a ausência de denunciação da lide não redunda na exclusão da discussão sobre o dolo ou culpa do agente, que deve ser realizado em sede própria, qual seja, a ação de regresso, proposta com o fito de obter o ressarcimento do erário.
Por outro lado, Theodoro Júnior (1993, p. 127), embora admita a não obrigatoriedade da denunciação, firma posição pela qual não pode ser ela rejeitada caso o Estado faça uso do instrumento. São estas suas palavras: "A denunciação, na hipótese, para que o Estado exercite a ação regressiva contra o funcionário faltoso, realmente não é obrigatória. Mas, uma vez exercitada, não pode ser recusada pelo juiz."
O fundamento da diferença de critérios de imputação da responsabilidade, porém, não convence o autor, vez que, na denunciação da lide "há sempre uma diversidade de natureza jurídica entre o vínculo disputado entre as partes e aquele outro disputado entre e denunciante e o denunciado" (1993, p. 127), não havendo como vedar ao Poder Público o recurso, pela combinação do art. 37, § 6.º, da Constituição Federal de 1988, com o art. 70, inciso III, do Código de Processo Civil.
Em sede jurisprudencial, verifica-se, de igual forma, que não há uniformidade de tratamento da matéria, o que evidencia a necessidade de maiores estudos acerca do tema, no sentido de que se possa estabelecer um consenso. Registrada a riqueza da problemática, faz-se mister a tomada de posição, que é feita com esteio nas lições de Di Pietro (2002, p.537), que assim se manifesta:
"[...] quando se trata de ação fundada na culpa anônima do serviço ou apenas na responsabilidade objetiva decorrente do risco, a denunciação não cabe, porque o denunciante estaria incluindo novo fundamento na ação: a culpa ou dolo do funcionário, não argüida pelo autor; [...]"
Assim, se o requerente não suscita, em sua formulação inicial, o questionamento acerca do dolo ou culpa do agente, a denunciação não merece prosperar, tudo porque, optando o lesado em calcar sua pretensão em elementos outros que não o agir doloso ou culposo causador do prejuízo, esta indagação deverá ser realizada e apurada na sede própria, é dizer, a ação regressiva.
Por outro lado, se a ação, mesmo fundada na responsabilidade objetiva, invocar aspectos relativos à culpa ou dolo do agente público, a denunciação tem lugar, vez que houve a antecipação, por opção do próprio lesado, da discussão a redor da culpa latu sensu do causador do dano, trazida para o bojo dos autos já por ocasião da peça exordial, razão pela qual a demanda regressiva perderia seu objeto. (DI PIETRO, 2002, p. 537) [16]