A falácia do in dubio pro societate no processo penal brasileiro

26/01/2022 às 15:25
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O artigo traça uma breve crítica ao aforismo "in dubio pro societate", que alegadamente orientaria o processo penal brasileiro.

A famigerada locução latina in dubio pro societate consiste em um adágio, axioma, aforismo ou brocardo, vale dizer, uma sentença ou máxima doutrinal dotada de significação jurídica e exarada de forma breve e objetiva, que todavia é reputada por expressiva parcela da doutrina e da jurisprudência brasileiras um vero princípio norteador das etapas inicial e intermediária da persecução penal, isto é, que alegadamente vigora desde a fase investigativa até a ocasião do juízo de admissibilidade/viabilidade da acusação. Com efeito, assevera-se que, relativamente à investigação criminal e nos momentos da formação da opinio delicti pelo Ministério Público e da apreciação judicial preliminar da denúncia ou queixa ofertada, bem como ao final da fase do judicium accusationis no rito especial previsto para o processo e julgamento dos crimes de competência do Tribunal do Júri, qualquer dúvida na valoração dos elementos informativos ou de convicção produzidos há que ser resolvida em favor da sociedade.

Destarte, preleciona-se que, ainda que em dúvida sobre o envolvimento de um suspeito na infração penal sob apuração, pode a autoridade policial proceder ao seu indiciamento; estando em dúvida quanto ao conjunto indiciário coligido na investigação criminal, deve o Parquet oferecer a denúncia; estando em dúvida quanto aos elementos que amparam a peça acusatória, deve o juiz recebê-la; estando em dúvida quanto à autoria ou a participação do réu em relação a um delito doloso contra a vida e/ou conexo, deve o magistrado pronunciá-lo, a fim de submetê-lo a julgamento pelo Tribunal do Júri.

Se é certo que o in dubio pro societate tem sua utilidade no curso da fase investigativa da persecução penal, posto que ela se desenvolve estruturada sobre juízo de mera possibilidade[1], trata-se de verdadeira falácia no que se refere às etapas subsequentes. De fato, a irrefletida acolhida do adágio em tela vulnera não só as garantias constitucionais processuais do imputado como também o próprio interesse público à repressão penal eficaz.[2]

Na ótica das garantias do imputado, esclarece Antônio Alberto Machado que toda acusação e seu respectivo recebimento em juízo, bem como o indiciamento do indivíduo suspeito da prática de crime, devem ser feitos apenas e tão somente quando houver um lastro probatório mínimo e razoável. Nenhuma acusação, pelo menos nos Estados civilizados, será feita sem que haja um fumus razoável de sua plausibilidade. A ausência desse suporte mínimo para a acusação fulmina de morte o devido processo legal, impedindo que este último sequer se instale como processo válido e viável.[3]

Ao seu turno, Alberto M. Binder ressalta que os julgamentos devem ser convenientemente preparados e que se deve chegar a eles depois de uma atividade responsavelmente conduzida. O julgamento é público e isso significa que o acusado deverá se defender em um processo aberto, que pode ser do conhecimento de qualquer cidadão. Assim como a publicidade implica uma garantia na estruturação do processo penal condenatório, também tem um custo: mesmo que a pessoa seja absolvida e seja comprovada a sua inocência, o fato de ter sido submetida a julgamento sempre significará uma cota considerável de sofrimento, de gastos e de descrédito público. Por essas razões, um processo corretamente estruturado tem que garantir, também, que a decisão de submeter o acusado a julgamento não seja precipitada, superficial ou arbitrária.[4]

Na lição de Aury Lopes Jr., a acusação não pode, diante da inegável existência de penas processuais, ser leviana e despida de um suporte probatório suficiente para, à luz do cânone da proporcionalidade, justificar o imenso constrangimento que representa a assunção da condição de réu.[5]

Ainda de acordo com o jurista gaúcho, não somente inexiste no plano normativo a previsão do in dubio pro societate como, se existisse, seria inconstitucional, porque, ao afirmar que na dúvida se deve proceder contra uma pessoa, estaria sendo anulada a proteção constitucional da presunção de inocência, antes mesmo de iniciar o processo. Enfatiza o autor que não há amparo constitucional para o brocardo em nenhum momento e em nenhum procedimento, sequer no rito dos crimes submetidos ao Tribunal do Júri.[6]

Aliás, é neste âmbito que mais suscita preocupação a acrítica invocação do aforismo, ao final da primeira etapa do procedimento, a da instrução preliminar, também conhecida por judicium accusationis. Esta fase tem por finalidade precípua efetuar o controle da viabilidade da acusação, em acepção mais ampla que a da singela admissibilidade. Por viabilidade queremos significar sobretudo a fiscalização qualitativa da acusação quanto à probabilidade de procedência, visto que, estando o julgamento pelo Júri inserido na Lei Maior como um direito fundamental individual (art. 5º, inc. XXXVIII), seria absurdo contrassenso submeter o réu aos riscos de um veredito condenatório, proferido por íntima convicção pelos jurados, diante de acusação temerária ou pouco respaldada.[7]

Assim, parece-nos que a máxima in dubio pro societate impende, aqui e com muito mais razão, ser mais seriamente repensada, tomando por base a ideia dos modelos de constatação ou standards de prova.[8] Aquela expressão deve ser compreendida não no sentido de bastar, para o impulso à fase de julgamento em plenário, a verossimilhança da imputação, própria do juízo de recebimento da denúncia ou da queixa - pois desta forma a instrução preliminar seria de todo despicienda -, mas tampouco no sentido de exigir a prova além da dúvida razoável necessária para o juízo condenatório penal, ou mesmo a prova clara e convincente.

Por envolver atividade instrutória e cognitiva relevante e aprofundada, porém ainda não exauriente - dada a estrutura ritual bifásica e a possibilidade de continuidade e complementação da produção probatória -, o modelo de constatação mínimo adequado quanto à autoria ou a participação do increpado, para a conclusão do judicium accusationis com a sua pronúncia ou impronúncia, deve ser o de preponderância das provas.[9] Por conseguinte, o raciocínio a ser empregado é o de verificar se o conjunto probatório reunido aponta prevalentemente para a culpabilidade do acusado, tal como afirmada na denúncia ou na queixa. Neste molde merece ser interpretada - conforme a Constituição e as características teleológicas e processuais da fase instrutória prévia - a dicção "indícios suficientes de autoria ou participação", trazida nos arts. 413, caput, e 414, caput, ambos do CPP.[10] Resultando positiva aquela apreciação, terá lugar a decisão de pronúncia, que encaminhará o feito ao juiz natural, isto é, o Tribunal do Júri. Resultando negativa, terá lugar a sentença de impronúncia, que fará cessar o curso processual.

De outro lado, havendo prova clara e convincente sobre a inexistência do fato ou a desvinculação pessoal do acusado, bem assim sobre a presença de causa excludente da tipicidade, da ilicitude ou da culpabilidade, caberá ao magistrado absolver sumariamente o réu (art. 415 do CPP), ao passo que, também diante de prova clara e convincente e concluindo o julgador, na operação intelectiva de enquadramento típico, pela ocorrência de crime diverso do doloso contra a vida, deverá promover a desclassificação e encaminhar os autos ao órgão competente para prosseguir na análise do caso penal, se não o for (art. 419 do CPP).[11] É compreensível, no momento procedimental em apreço, que o standard probatório precise ser algo mais alto que o critério da preponderância para justificar a abreviação do processo e a imediata absolvição do imputado ou a desclassificação do delito, a fim de não excluir açodada e indevidamente do Tribunal do Júri o julgamento da causa, após o esgotamento das oportunidades instrutórias.

Agora sob o ângulo do interesse público à repressão penal eficaz, uma acurada e realista análise faz perceber que o in dubio pro societate, na verdade, culmina por operar em desfavor da própria sociedade que intenta beneficiar.

Com efeito, os operadores jurídicos que atuam na área criminal têm a noção de que o quadro probatório cristalizado na investigação criminal tende, na imensa maioria das vezes, a ser refletido ou até a sofrer algum enfraquecimento no decorrer da subsequente instrução processual. Apenas em raríssimos casos ele experimenta qualquer melhoria, podendo portanto servir ab initio para um seguro prognóstico acerca do resultado do processo penal de conhecimento condenatório.[12]

De fato, é sim possível, a partir do quadro probatório produzido na fase investigativa, antever quais são as chances de procedência e de improcedência de eventual acusação, até porque não se ignora que, no momento da sentença, o cânone do favor rei e a regra de julgamento consubstanciada na máxima in dubio pro reo impõem, frente a alguma dúvida razoável, a absolvição do imputado.

Logo, o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público, quando se vislumbre prospectivamente uma considerável margem probabilística de improcedência da pretensão processual, isto é, agindo "na dúvida, em favor da sociedade", mostra-se conduta sobremodo temerária e precipitada, uma vez que, transitado em julgado o decisum absolutório, nada mais poderá ser feito a respeito. Ainda que exsurgissem novas e bastantes provas indicativas da culpa do imputado, a oportunidade de processá-lo e buscar a sua devida responsabilização penal já terá sido irremediavelmente desperdiçada, o que evidencia o equívoco que carrega, na hipótese, o aforismo in dubio pro societate.

Diante de um quadro probatório despido de maior robustez, por conseguinte, recomenda a melhor cautela que o Parquet promova o arquivamento da investigação criminal ou das peças de informação, valendo-se da possibilidade de retomada da persecução penal se e quando conhecidos novos elementos de convicção, nos moldes do art. 18 do Estatuto Instrumental Criminal e da Súmula n. 524 do Supremo Tribunal Federal, no escopo de não prejudicar irreversivelmente o interesse público à repressão penal eficaz pelo qual é constitucionalmente incumbido de zelar.[13]-[14]


[1] Cf. LOPES JR., Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 106-107; e LIMA, Thadeu Augimeri de Goes; PRADO, Florestan Rodrigo do. Delação anônima, persecução criminal e Constituição: buscando o necessário equilíbrio entre os direitos fundamentais e a repressão penal eficaz. Argumenta (UENP), Jacarezinho, n. 20, jul./dez. 2014, p. 121-122.

[2] Que, no Estado Democrático de Direito, deve ser sempre compreendido em relação de mútua complementaridade, e não de exclusão, com o irrestrito respeito aos direitos fundamentais, cf. LIMA, Thadeu Augimeri de Goes; PRADO, Florestan Rodrigo do. Delação anônima, persecução criminal e Constituição, cit., p. 125.

[3] MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009, p. 168.

[4] BINDER, Alberto M.. Introdução ao direito processual penal. Tradução de Fernando Zani, com revisão e apresentação de Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 187.

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[5] LOPES JR., Aury. Direito processual penal: e sua conformidade constitucional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. v. 1, p. 370.

[6] LOPES JR., Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal, cit., p. 108.

[7] Cf. GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 416.

[8] Acerca do tema, v. TARUFFO, Michele. Tres observaciones sobre Por qué um estándar de prueba subjetivo y ambiguo no es um estándar, de Larry Laudan. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, n. 28, p. 115-126, 2005; e KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 15 ss.

[9] Observe-se que, no tocante à materialidade do fato criminoso, o próprio art. 413, caput, do CPP exige como standard probatório mínimo a prova clara e convincente, não impondo desde logo que a comprovação ocorra além da dúvida razoável.

[10] "Art. 413.  O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.

 [...]

 Art. 414. Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado.

 Parágrafo único. Enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia ou queixa se houver prova nova."

[11] "Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:

 I - provada a inexistência do fato;

 II - provado não ser ele autor ou partícipe do fato;

 III - o fato não constituir infração penal;

 IV - demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

 Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva.

 [...]

 Art. 419. Quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime diverso dos referidos no § 1º do art. 74 deste Código e não for competente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja.

 Parágrafo único. Remetidos os autos do processo a outro juiz, à disposição deste ficará o acusado preso."

[12] Apoiamos a afirmação trazida no texto em nossa experiência profissional de mais de dezoito anos no Ministério Público do Estado do Paraná.

[13] "Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia."

[14] Súmula 524 do Supremo Tribunal Federal: "Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas."

Sobre o autor
Thadeu Augimeri de Goes Lima

Pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Pesquisador, autor de livros, capítulos de livros e artigos científicos (publicados no Brasil e no exterior), professor e palestrante nas áreas do Direito Processual (Penal, Coletivo, Constitucional, Civil e Teoria Geral do Processo) e do Direito Penal. Professor convidado em atividades promovidas por Escolas Superiores/Centros de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional de Ministérios Públicos do Brasil e em cursos de pós-graduação "lato sensu" (especialização). Promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná, titular na Comarca da Região Metropolitana de Londrina.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O presente texto consiste em excerto adaptado do artigo de nossa autoria intitulado Obrigatoriedade da ação penal pública e in dubio pro societate no Processo Penal brasileiro: repensando antigos mitos, originalmente publicado em CAMBI, Eduardo; MARGRAF, Alencar Frederico (Org.). Direito e justiça: estudos em homenagem a Gilberto Giacoia. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná, 2016. p. 493-507, depois republicado.

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