O Consequencialismo e o STF

22/04/2022 às 11:10
Leia nesta página:

O Supremo Tribunal Federal tem usado argumentos utilitaristas em certas decisões pronunciadas em casos complexos, entrementes, toda teoria filosófica deve ser operada com justa medida.

O utilitarismo é uma doutrina consequencialista, que busca a maximização da felicidade, do bem comum.

A tendência geral de um ato é mais perniciosa ou menos perniciosa, de acordo com a soma total das suas consequências, isto é, conforme a diferença entre a soma das consequências boas e a soma das consequências funestas[1].

No artigo 20 da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro (LIDB), o consequencialismo se faz presente:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

O Supremo Tribunal Federal tem se utilizado fortemente do consequencialismo para pautar algumas de suas decisões. Temos como exemplo o Ag. Reg. nos Emb. Decl. na Ação Cautelar 3.637 de Rondônia, de relatoria do ministro Edson Fachin, que foi decidido com supedâneo no consequencialismo jurídico:

AGRAVO REGIMENTAL EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AÇÃO CAUTELAR. DIREITO FINANCEIRO. CALAMIDADE PÚBLICA. DESASTRE NATURAL. SUSPENSÃO DAS PARCELAS DE DÍVIDA PÚBLICA ESTADUAL. REVOGAÇÃO DA TUTELA DE URGÊNCIA. RESPONSABILIDADE PROCESSUAL OBJETIVA. FIXAÇÃO DE PRAZO E MODO DE PAGAMENTO FACTÍVEL. CONSEQUENCIALISMO JURÍDICO. DEVER GERAL DE EFETIVIDADE JURISDICIONAL. 1. O afastamento da aplicação automática da regra do art. 302 do CPC encontra-se suficientemente justificado, à luz do dever geral de efetividade jurisdicional, pois este deve levar em conta a noção de consequencialismo jurídico. Arts. 139, IV, do CPC, e 20 do Decreto-Lei 4.657/1942. Segurança jurídica e interesse social. Obiter dictum da AO 1.773, de relatoria do Ministro Luiz Fux, DJe 28.11.2018. 2. Após colheita de informações e subsídios técnicos pelo juízo, inclusive em sede de audiências de conciliação, mostra-se adequada a aplicação analógica ao caso concreto do art. 5º da LC 156/2016 quanto aos parâmetros temporal e de modo de pagamento relacionados a débito estadual decorrente de revogação da tutela de urgência anteriormente deferida. Razoabilidade do equacionamento dos efeitos financeiros suportados pelos entes federativos em razão do deferimento de tutelas provisórias por este Tribunal. 3. Não há potencial efeito multiplicador da decisão hostilizada, tampouco a criação de situação única e excessivamente benéfica ao Estado agravado. Não consta ao juízo a existência de outro estado da federação com parcelas de dívida pública mobiliárias temporariamente suspensas por força de tutela de urgência concedida por este Supremo Tribunal Federal, após decreto pela União de estado de calamidade pública decorrente de desastre natural. Singularidade do caso. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AC 3637 ED-AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 11/09/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-217 DIVULG 04-10-2019 PUBLIC 07-10-2019) (Grifos e negritos inexistentes no original)

Consubstanciava em ação cautelar, com pedido liminar, ajuizada pelo estado de Rondônia em face da União, de forma incidental à ACO 1.119, que pretendia a suspensão das retenções feitas no repasse do FPE (Fundo de Participação do Estado) ao estado de Rondônia, devido a ocorrência de desastre natural, consistente nas cheias do Rio Madeira e afluentes, afetando 42% da população rondoniense. Tal situação igualmente afetou bens públicos, tais como escolas, delegacias, além de habitações particulares.

Em trecho de sua decisão, o ministro Fachin alude o artigo 20 da LIDB:

A despeito disso, na qualidade de Estado-Juiz, impende apontar que art. 20 do Decreto-Lei 4.657/1942, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, consolidou, em algum grau, no ordenamento jurídico o dever de obediência a prescrições emanadas do consequencialismo jurídico como corolário necessário do princípio da segurança jurídica e do interesse social.

Eis o teor do dispositivo supracitado:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.[2]

A decisão proferida pelo ministro Fachin determinou o parcelamento judicial em 24 parcelas do valor devido pelo estado de Rondônia à União com referência ao período de julho de 2016 e julho de 2018, bem como acolheu o pleito de devolução dos valores bloqueados das contas do Fundo de Participação do Estado e do Tesouro Estadual referentes à execução de garantias contratuais da dívida mobiliária do estado de Rondônia perante a União na importância de R$ 13.524.697,43 e R$ 31.988.622,25 nas datas de 20 e 22 de agosto de 2019.

O julgamento foi pautado em consequencialismo jurídico, bem-estar social, recorrendo ao entendimento do ministro Luiz Fux no âmbito da AO 1.773, ao sustentar que:

Cortes constitucionais têm adotado explicitamente o discurso consequencial para resolver conflitos, especialmente em contextos de crise política e econômica. Antes um ideário distante, o pragmatismo tornou-se common place na prática adjudicativa. Compreendido como estimativa de resultados ou juízo prognóstico, o consequencialismo não se confunde com o utilitarismo nem menoscaba reflexões de ordem moral ou positivista. Pressupõe, apenas, que o juiz considere os estados de coisas consequencialmente decorrentes de cada exegese que a norma contemple. Na síntese do juiz norte-americano Frank Easterbrook, as decisões judiciais não se despirão do risco de enviarem sinais errados a menos que os juízes apreciem as consequências das regras legais para o comportamento futuro (EASTERBROOK, Frank. The Supreme Court 1983 Term. Harvard Law Review, Cambridge, n. 4, p. 10-11, 1984-1985).

Dentro do marco do consequencialismo, a decisão mais adequada a determinado caso concreto é aquela que, dentro dos limites semânticos da norma, promova os corretos e necessários incentivos ao aperfeiçoamento das instituições democráticas, e que se importe com a repercussão dos impactos da decisão judicial no mundo social. Sob essa perspectiva, há espaço para algum pragmatismo jurídico, com espeque no abalizado magistério de Richard Posner, impondo, bem por isso, ao magistrado o dever de examinar as consequências imediatas e sistêmicas que o seu pronunciamento irá produzir na realidade social (POSNER, Richard. Law, Pragmatism and Democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 60-64). Com efeito, parte-se de uma premissa de que, ao exercer seu poder de decisão nos casos concretos com os quais se depara, as Cortes Constitucionais alocam recursos escassos, já que em razão do juízo consequencialista, juízes são comprometidos com os resultados de suas ações (MAGALHÃES, Andréa. Jurisprudência da crise: uma perspectiva pragmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 190). Nesse mesmo sentido e com as mesmas preocupações, a recente Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, que alterou profundamente a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, predica que as decisões da Administração Pública, dos Tribunais de Contas e as do Poder Judiciário devem considerar as suas consequências práticas.[3]

A bem da verdade, sem sombra de dúvidas, um dos casos mais impactantes, de relatoria igualmente do ministro Fachin foi a ADI 5543, que declarou a inconstitucionalidade do inciso IV do art. 64 da Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde e da alínea d do inciso XXX do art. 25 da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC n. 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que dispunha sobre a inaptidão temporária para indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo realizarem doação sanguínea nos 12 (doze) meses subsequentes a tal prática.

Segue a ementa:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL. ART. 64, IV, DA PORTARIA N. 158/2016 DO MINISTÉRIO DA SAÚDE E ART. 25, XXX, D, DA RESOLUÇÃO DA DIRETORIA COLEGIADA RDC N. 34/2014 DA ANVISA. RESTRIÇÃO DE DOAÇÃO DE SANGUE A GRUPOS E NÃO CONDUTAS DE RISCO. DISCRIMINAÇÃO POR ORIENTAÇÃO SEXUAL. INCONSTITUCIONALIDADE. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE. 1. A responsabilidade com o Outro demanda realizar uma desconstrução do Direito posto para tornar a Justiça possível e incutir, na interpretação do Direito, o compromisso com um tratamento igual e digno a essas pessoas que desejam exercer a alteridade e doar sangue. 2. O estabelecimento de grupos e não de condutas de risco incorre em discriminação e viola a dignidade humana e o direito à igualdade, pois lança mão de uma interpretação consequencialista desmedida que concebe especialmente que homens homossexuais ou bissexuais são, apenas em razão da orientação sexual que vivenciam, possíveis vetores de transmissão de variadas enfermidades. Orientação sexual não contamina ninguém, condutas de risco sim. 2. O princípio da dignidade da pessoa humana busca proteger de forma integral o sujeito na qualidade de pessoa vivente em sua existência concreta. A restrição à doação de sangue por homossexuais afronta a sua autonomia privada, pois se impede que elas exerçam plenamente suas escolhas de vida, com quem se relacionar, com que frequência, ainda que de maneira sexualmente segura e saudável; e a sua autonomia pública, pois se veda a possibilidade de auxiliarem àqueles que necessitam, por qualquer razão, de transfusão de sangue. 3. A política restritiva prevista na Portaria e na Resolução da Diretoria Colegiada, ainda que de forma desintencional, viola a igualdade, pois impacta desproporcionalmente sobre os homens homossexuais e bissexuais e/ou seus parceiros ou parceiras ao injungir-lhes a proibição da fruição livre e segura da própria sexualidade para exercício do ato empático de doar sangue. Trata-se de discriminação injustificável, tanto do ponto de vista do direito interno, quanto do ponto de vista da proteção internacional dos direitos humanos, à medida que pressupõem serem os homens homossexuais e bissexuais, por si só, um grupo de risco, sem se debruçar sobre as condutas que verdadeiramente os expõem a uma maior probabilidade de contágio de AIDS ou outras enfermidades a impossibilitar a doação de sangue. 4. Não se pode tratar os homens que fazem sexo com outros homens e/ou suas parceiras como sujeitos perigosos, inferiores, restringido deles a possibilidade de serem como são, de serem solidários, de participarem de sua comunidade política. Não se pode deixar de reconhecê-los como membros e partícipes de sua própria comunidade. 5. Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do inciso IV do art. 64 da Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde e da alínea d do inciso XXX do art. 25 da Resolução da Diretoria Colegiada RDC n. 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. (ADI 5543, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 11/05/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-211 DIVULG 25-08-2020 PUBLIC 26-08-2020) (Negritos  inexistentes no original)

"No mérito, contextualiza o surgimento histórico da proibição de doação de sangue por homossexuais a partir do final da década de 1980, notadamente pelo desconhecimento a respeito da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida SIDA/AIDS e pela preocupação da janela imunológica, período imediatamente posterior à infecção no qual os exames laboratoriais não seriam aptos a detectar o vírus no material sanguíneo coletado.

Aduz que esse quadro não se mantém, quer diante da evolução tecnológica e da medicina (controle da epidemia de AIDS e do avanço do tratamento da imunodeficiência), quer do reconhecimento das relações afetivas homossexuais, surgindo forte debate mundial, a partir dos anos 2000, sobre o fim da proibição"[4].

O STF tem realizado com brilhantismo o ativismo judicial, em temas cáusticos, que o Parlamento não pautava, seja por falta de interesse, seja para satisfazer interesses de determinados grupos em detrimento de outros, ou quando o fazia, não era da forma que a sociedade esperava, principalmente as minorias mais afetadas.

E na ADI 5543 não só visualizamos o ativismo judicial do STF, de maneira a proteger a dignidade da pessoa humana, impedir discriminação de minorias, mas também a visão antagônica ao próprio consequencialismo, do mesmo relator, que ancorou sua decisão proferida na AG.REG. NOS EMB.DECL. NA AÇÃO CAUTELAR 3.637 valendo-se do consequencialismo jurídico:

Os dispositivos impugnados (art. 64, inciso IV, da Portaria n.158/2016 do Ministério da Saúde e o art. 25, inciso XXX, alínea d, da Resolução da Diretoria Colegiada RDC n. 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária), no entanto, partem da concepção de que a exposição a um suposto maior contágio de enfermidades é algo inerente a homens que se relacionam sexualmente com outros homens e, por consequência, igualmente inerente às eventuais parceiras destes. Não é. Não pode o Direito incorrer em uma interpretação utilitarista, recaindo em um cálculo de custo e benefício que desdiferencia o Direito para as esferas da Política e da Economia. Não cabe, pois, valer-se da violação de direitos fundamentais de grupos minoritários para maximizar os interesses de uma maioria, valendo-se, para tanto, de preconceito e discriminação.[5] (Grifos e Negritos nossos)

Perceba que para um mesmo relator, ministro Edson Fachin, o consequencialismo de um lado, buscou o bem-estar da maioria (AG.REG. NOS EMB.DECL. NA AÇÃO CAUTELAR 3.637) e por outro lado, na ADI 5543, o ministro maneja o próprio consequencialismo para dizer não, não se suprime direito de minoria em detrimento da maioria.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Com esplendor, o ministro Fachin vai além:

Tal restrição, consistente praticamente em quase vedação, viola a forma de ser e existir desse grupo de pessoas; viola subjetivamente a todas e cada uma dessas pessoas; viola também o fundamento próprio de nossa comunidade a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB)[6]. (Negrito no original)

John Stuart Mill e Jeremy Bentham traz o papel da consciência, além das consequências, na formulação dos atos:

Os atos, juntamente com as suas consequências, constituem objeto da vontade bem como da inteligência, ao passo que as circunstâncias como tais são apenas objeto da inteligência. Em relação a elas a única coisa que podemos fazer é conhecê-las ou não conhecê-las; em outras palavras, ter consciência delas ou não tê-la. Ao item "consciência" pertence o que se pode e deve dizer acerca da qualidade boa ou má da intenção de uma pessoa, conforme resulta das consequências do ato; ao item "motivos" pertence o que se pode e deve dizer a respeito da sua intenção, conforme resulta do motivo[7].

Ocorre, contudo, um dilema no seguinte excerto de sua obra, na hipótese de você ser processado sem ter cometido crime algum, destacando-se a parte grifada:

Levada pela malícia, uma pessoa te move processo por um crime de que te considera réu, sem que na realidade tenhas cometido tal crime. Neste caso as consequências da sua conduta são perniciosas: com efeito, são perniciosas para ti em qualquer hipótese, em virtude da vergonha e da ansiedade que és obrigado a sofrer enquanto durar o processo; a isto deve-se acrescentar, em caso de perderes o processo, o mal da punição. Por conseguinte, para ti as consequências são prejudiciais, e para ninguém elas são benéficas. Também o motivo da pessoa, ao mover-te o processo, é mau, pois todos reconhecem que a malícia constitui um motivo mau. Todavia, as consequências da sua conduta, caso se tivessem demonstrado tais como ela as considerava, teriam sido boas, pois teriam incluído a punição de um criminoso, o que constitui um benefício para todos aqueles que estão expostos a sofrer por um crime de natureza semelhante. Consequentemente, a intenção poderia ser denominada boa. Ao contrário, o motivo não pode ser qualificado de bom, embora muito comumente se diga que sim (pois se confunde o motivo com a intenção)[8].

A partir dessa passagem, com arrimo no utilitarismo de Bentham e Mill, morticínios igualmente seriam justificados, porque a intenção seria boa, conquanto o motivo poderia não ser bom. E quem determina o que é bom ou mau? Você, o seu entender, o seu juízo de valor o que é extremamente perigoso quando se comanda um Estado e uma nação.

IX. - Pode-se afirmar que uma pessoa é partidária do princípio de utilidade quando a aprovação ou a desaprovação que dá a alguma ação, ou a alguma medida, for determinada pela tendência que, no seu entender, tal ação ou medida tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da comunidade; ou, em outras palavras, pela sua conformidade ou não-conformidade com as leis ou os ditames da utilidade.

X. - Em se tratando de uma ação que é conforme ao princípio da utilidade, podemos sempre afirmar ou que ela deve ser praticada, ou, no mínimo, que não é proibido praticá-la. Pode-se dizer, igualmente, que é reto praticá-la - ou, pelo menos, que não é errado praticá-la; ou então, que é· uma ação reta - ou, pelo menos, que não é uma ação errada. Se assim forem interpretadas, têm sentido as palavras deveria, reto, errado, o mesmo valendo de outros termos análogos. De outra forma, os mencionados termos carecem totalmente de significado[9].

Ou seja, matar pode ser ruim, mau, mas as minhas intenções, de proteger o meu país, o meu povo, minha nação são as melhores, com amparo no meu sentir isso lembra nazismo e genocídio!

Em Crime e Castigo, de Dostoiévski, o personagem Raskólnikov, estudante de direito, procura dar sentido de utilidade ao seu ato ao dizer: "Com essa tolice, eu queria apenas me colocar numa posição independente, dar o primeiro passo, conseguir recursos, e depois tudo seria reparado pela utilidade relativamente incomensurável do ato"[10].

Adiante, ele reflete sobre sua conduta, sem remorso, baseado em sua percepção do que é correto no seu sentir:

E por que o meu ato lhes parece tão vil? - dizia de si para si. - Por ter sido uma perversidade? O que quer dizer a palavra 'perversidade'? Minha consciência está tranquila. É claro que foi cometido um crime comum; é claro que foi violada a letra da lei e derramado sangue, mas tome a minha cabeça por letra da lei...e basta![11]

Em trecho anterior da obra, Raskólnikov sente-se envergonhado não por ter cometido o crime, mas por ser para ele um crime pequeno, cujas pessoas não tinham utilidade na sociedade e por isso mesmo, ele se arrepende de pensar em se entregar:

Crime? Que crime? - gritou ele subitamente, caindo em repentina fúria. - O fato de eu haver matado um piolho nojento, nocivo, uma velhota usurária, que não faz falta a ninguém? Quem mata esse ladrão tem cem anos de perdão! Que sugava a seiva dos pobres, isso lá é crime? Não penso nele nem em apagá-lo. E que história é essa de ficarem me apontando de todos os lados: Crime, crime!. Só agora vejo com clareza todo o absurdo da minha pusilanimidade, agora que me resolvi a assumir essa desnecessária vergonha![12]

Vemos, portanto, como a doutrina utilitarista, se mal-empregada, pode servir para sustentar situações indefensáveis.

Não foi por acaso trazer neste artigo esses dois usos do consequencialismo por parte do mesmo ministro do STF.

Todas as teorias filosóficas podem ser usadas tanto para o bem quanto para o mal e por isso mesmo, devemos ter em mente que não se pode crucificar Karl Marx porque suas concepções foram utilizadas para justificar hecatombes.

Jeremy Bentham e John Stuart Mill, na obra Uma introdução aos princípios da moral e da legislação vão dizer: "Com efeito, esta é a matéria de que é feito o homem: em princípio e na prática, na senda reta ou na errada, a qualidade humana mais rara é a coerência e a constância no modo de agir e pensar"[13].

Oscar Wilde em De Profundis argumenta que todas as grandes ideias são perigosas. Cabe, portanto, a cada um de nós, extrair o melhor de cada concepção filosófica e utilizá-la com parcimônia, procurando sopesar seus efeitos.

"Quando vi a cabeça separar-se do corpo e ouvi o barulho das duas partes batendo dentro de uma caixa, entendi - não com a razão, mas com todo o ser - que nenhuma teoria da racionalidade do que existe e do progresso é capaz de justificar aquela ação e que, mesmo que todas as pessoas do mundo, por força de quaisquer teorias, desde a criação do mundo, achem que isso é necessário, eu sei que não é necessário, sei que é ruim e que, portanto, ao meu avaliar o que é bom e necessário, não sigo o que as pessoas dizem e fazem, nem o progresso, mas meu coração"[1].


[1] TOLSTOI, Liev. Uma confissão. São Paulo: Ed. Mundo Cristão, 2016, p.24/25.

  1. BENTHAM, Jeremy; MILL, John Stuart. Introdução aos princípios da moral e da legislação: sistema de logica dedutiva e indutiva, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.25.

  2. STJ. AC 3637 ED-AgR. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751070142> Acesso em 5 de março de 2022, p.18/19.

  3. Ibidem, p.27/28.

  4. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5.543 DISTRITO FEDERAL. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753608126> Acesso em 30 de março de 2022, p.4.

  5. Ibidem, p.6/7.

  6. Ibidem, p.11.

  7. BENTHAM, Jeremy; MILL, John Stuart. Introdução aos princípios da moral e da legislação: sistema de logica dedutiva e indutiva, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.31.

  8. Ibidem, p.33

  9. Ibidem, p.11.

  10. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo, São Paulo: Ed. 34, 2009, 6ª Ed, p.677.

  11. Ibidem, p.706

  12. Ibidem, p.676.

  13. BENTHAM, Jeremy; MILL, John Stuart. Introdução aos princípios da moral e da legislação: sistema de logica dedutiva e indutiva, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.11.

Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos