É perfeitamente possível a incidência do Art. 42, IV, da LCP por conta de latidos de cães, mesmo porque é previsão expressa da lei. O que se exige é que haja pluralidade de “vítimas” (leia-se: ofendidos).
Ademais, ainda que a conduta, por qualquer razão, não se subsuma ao tipo em comento, restam intactas as repercussões civis, visto que as instâncias penal e cível são autônomas e independente.
Há que se entender que o direito de um encontra limite no direito do outro.
PERTURBAÇÃO DO TRABALHO E DO SOSSEGO ALHEIOS - Art. 42, IV, da LCP - Ruídos produzidos por cachorro durante a noite - Inexistência de queixas generalizadas - Configuração - Impossibilidade:
- Para que os latidos de cachorro durante a noite configurem o delito previsto no art. 42, IV, da LCP, é necessário fazer prova de que várias pessoas se sintam especialmente perturbadas pelos ruídos produzidos pelo animal, ou seja, que as queixas sejam generalizadas, e não lastreadas na susceptibilidade, na intolerância ou na irritabilidade do ofendido, pois a Lei não se refere a pessoa determinada, mas sim pessoas in genere.
* Apelação nº 1.162.671/9 - São Paulo - 2ª Câmara - Relator: Rulli Júnior - 18/11/99 - V.U. (Voto nº 7.837)
Latidos de cães
Vistos. Fernando Quesada Morales e sua mulher Eunice Fachine Quesada ajuizaram ação cominatória, processada pelo rito sumário, contra Elyzeu Carlos Sylvestre, a quem imputam a indevida conduta de manter no imóvel vizinho ao de sua propriedade, e com isso causando-lhes incômodo e desassossego em níveis intoleráveis, vários cães que latem, provocando excessivo ruído, a qualquer barulho que ouvem, inclusive à noite, razão de se ter postulado, com a procedência, a sua retirada, inclusive sob cominação de multa diária (fls. 02/06). Instruíram a inicial com os documentos de fls. 13/26.
Designada audiência de justificação, em razão da liminar pleiteada, deferiu-se-a, na ocasião (fls. 25/26), depois da oitiva de duas testemunhas (fls. 37/38).
O réu, citado, fez-se ausente do ato, comparecendo em nova audiência designada, oportunidade em que ofereceu defesa, preliminarmente argüindo a carência, dada a alegada inexistência de cães no local. Ainda em sede preliminar impugnou as fotografias juntadas à inicial, pela ausência dos negativos. No mérito, além de reiterar a asserção de ausência de cães no local, acrescentou que os animais que lá existiram nunca foram de sua propriedade, mas sim de um antigo locatário do prédio. Disse, mais, que o imóvel dos autores se situa em zona eminentemente comercial, em meio a ruídos de aviões, faculdade, hospital, bares, sem que, por isso, se possa dizer que a simples presença de cães pudesse representar incômodo intolerável aos demandantes (fls. 54/61). Com esta peça de defesa vieram aos autos os documentos de fls. 64/138.
Examinada a matéria prejudicial articulada (fls. 52/53), designou-se audiência de instrução, que se realizou com a oitiva de três testemunhas arroladas pelo réu (fls. 204/209).
Nos debates, as partes reiteraram as razões já deduzidas no curso do feito, cada qual entendendo ter-lhe sido favorável o conjunto probatório erigido (fls. 166/167).
É o relatório. DECIDO.
Impõe-se, em primeiro lugar, seja analisada a questão fática, propriamente, debatida pelas partes.
E, neste sentido, dúvida não pode haver de que existiram, quando menos, cães, e mais de um, no imóvel vizinho ao edifício em que residem os autores.
A par de o demonstrarem as fotografias de fls. 7/13, o próprio réu, em sua defesa, não chega, de forma específica, a controverter o fato.
Na contestação, ao contrário, afirma o réu que cachorro algum lhe pertencia, mas sim a um dos ocupantes dos fundos do imóvel vizinho dos autores. Especificamente referiu-se a Roberto Xavier da Silva, locatário conforme recibo de aluguel acostado a fls. 64.
Relevante notar, porém, e desde logo, que nunca se interessou o réu por que este suposto dono dos cães viesse depor em Juízo. Embora tenha o réu arrolado testemunhas, e embora tivesse em mãos recibo de aluguel deste terceiro, bem a denotar que não eram, ambos, pessoas distantes, sem nenhum contato, a dificultar ou obstar seu arrolamento, como testemunha, o fato é que não o arrolou o réu, como seu testigo.
Isto tudo sem contar a incontrovérsia sobre a alegação, constante de fls. 144, concernente à identidade da pessoa retratada a fls. 23 e 147, ao lado de um cão – da raça pastor, tal como especificado pela testemunha dos autores, ouvida a fls. 38 – ninguém menos, afinal, que o próprio réu.
Segue o réu sua defesa asseverando, em acréscimo, que no instante do ajuizamento já não havia mais cão algum no imóvel, levados de lá em março último, pelo suposto, e incomprovado, proprietário.
Ora, primeiro que as duas testemunhas dos autores, ouvidas em audiência de justificação, da qual foi o réu cientificado, atestaram a presença, ainda, no local, dos referidos cães.
De outra parte, as fotografias de fls. 147/154 revelam evidente alteração física efetivada nos fundos do imóvel em questão, particularmente erguendo-se ou aumentando-se muro divisório existente no local, a tornar crível que, realmente, tal como o afirmam os autores, tenha tratado o réu, tão somente, de alterar o lugar em que confinados os cães, ainda presentes, levados a lugar fora da vista dos moradores do edifício.
Aliás, a respeito a testemunha do próprio réu, ouvida a fls. 206, não se furtou reconhecer ter visto, recentemente, entrar material de construção no imóvel vizinho ao prédio dos autores, embora sem saber precisar se na parte por aquele ocupada.
O réu, em sua peça de resistência, cuidou ainda de juntar cópias, que supunha beneficiarem-no, de procedimento policial instaurado acerca do lançamento de objetos, do prédio dos autores, no imóvel vizinho, aquele que ele ocupa, tendo sido, em certa oportunidade, lesionada filha de um dos moradores dos fundos da casa.
Antes de mais nada, releva salientar que, sintomaticamente, e embora a lesão de sua filha já tivesse ocorrido mais de dois meses antes, o morador dos fundos do imóvel vizinho aos dos autores só procurou a polícia em 20 de junho de 1.998, frise-se, um dia depois de o réu, ocupante da mesma casa, ou de parte dela, ter sido citado dos termos desta ação e um dia depois de, nela, se ter realizado audiência de justificação, com deferimento da liminar pleiteada.
Aliás, em suas declarações, prestadas à autoridade policial, Geraldo Dumont, o pai da menor lesionada, menciona, colocando em xeque o que está na contestação, a fls. 56, sua condição de caseiro, e não de locatário, o que só depois, estranhamente, veio a corrigir, na Delegacia (fls. 74 e 87).
Pois bem. Não fosse isso e as peças juntadas, malgrado concernentes a ocorrência lamentável, que deve mesmo ser apurada, como está sendo, na esfera própria, acabam, de qualquer maneira, desfavorecendo o réu.
Isto porque todos os moradores do edifício, ouvidos no procedimento policial, aludiram aos cães que ficavam no imóvel vizinho e ao incômodo que eles causavam, aos moradores dos andares mais baixos, a tanto atribuindo a remessa de objetos, injustificável, repita-se, lançados na casa ocupada também pelo réu.
Mais ainda, nenhuma destas pessoas, sequer de passagem, comentou a eventual retirada dos cães no local, segundo o réu, sucedida muito antes.
Por fim, embora nenhuma obrigação, nesta esteira, realmente sobre ele pesasse, causa espécie, quando menos, que o réu, advogado, receba notificação (como de fato admite recebida – fls. 59/60), instando-o a fazer cessar transtornos causados por cães que, segundo sua versão, nunca lhe pertenceram, ademais, ainda conforme suas palavras, já retirados do local, e nada responda, preferindo o silêncio, mesmo ameaçado com medidas judiciais.
Enfim, entende-se que o quadro instrutório neste feito erigido autorize a admissão da propriedade e presença, contemporânea ao ajuizamento, dos cães no imóvel vizinho ao dos autores, o que não se infirma pelo contido nos depoimentos de fls. 204 e 206, inconclusivos e prestados por quem só há pouco ocupa o prédio também ocupado pelo réu.
Quanto ao incômodo causado pelos mesmos cães, já seria dado inferi-lo, quando mais não fosse, só ao se considerar que não era um só o animal, como já dito, ademais, todos, da raça pastor alemão, portanto de grande porte, bem assim não olvidada a percepção do local onde confinados, sua extensão e proximidade com o prédio vizinho, tal como retratado nas fotografias juntadas.
De qualquer maneira, porém, as testemunhas dos autores, bem como aquelas ouvidas no inquérito instaurado, atestaram o desassossego causado pelos cães do réu, em especial à noite, e particularmente aos moradores dos apartamentos mais baixos, de fundos, do edifício dos autores.
Trata-se, é bem de ver, de perturbação ou incômodo que ultrapassa os limites do tolerável, mesmo em cidade grande, se considerando o ruído que, especialmente de madrugada, produzem vários cães, confinados em pequeno espaço.
Tudo, enfim, a justificar a aplicação, à espécie, do artigo 554 do Código Civil, cuja incidência não depende do título da ocupação do prédio vizinho.
Aliás, nesta esteira a jurisprudência já teve oportunidade de reconhecer o incômodo, acima do razoável, representado por animais que produzem grande ruído, com está, por exemplo, in JTA-RT 117/43.
Como também já se assentou, nos Tribunais, que a perturbação ao sossego e saúde, se provindas de vizinhos, deve ser cerceada, independentemente da natureza da região, da vizinhança.
Em outras palavras, “indiferentemente localizar-se o prédio em zona comercial ou residencial, cuidando-se de excesso de ruído, configura-se o mau uso da propriedade”. (RT 743/402).
Na realidade, outras concomitantes fontes de poluição sonora não podem constituir verdadeira licença a que o réu cause, com seus cães, ruídos exacerbados, principalmente à noite.
Sem contar que, o quanto por ele discriminado, a título de poluição sonora na região, não chega a autorizar a admissão de que todo esse barulho se estenda por toda a noite, bem debaixo da janela dos autores.
Aviões não pousam em Congonhas de madrugada. Nos fundos do prédio há um misto de hospital, clínica, e casa de repouso, cujo movimento não pode querer ser comparado, por exemplo, ao de uma grande emergência, de um grande pronto-socorro. A faculdade existente no local não causa transtornos todo o tempo, toda a noite, todo o ano.
Enfim, nada disso se compara ao latido constante de vários pastores alemães bem abaixo da janela do imóvel vizinho.
Por fim, também não aproveita ao réu a alegação de que os cães permanecessem em canil em dimensões consonantes com as disposições da Municipalidade e da Sociedade Protetora dos Animais (fls. 57). Alegação e conhecimento, aliás, muito estranhos para quem diz não ser o proprietário dos animais.
Mas, de qualquer maneira, a conformidade com disposições administrativas não serve a impedir a caracterização do mau uso da propriedade vizinha. A regularidade ou a licitude da ocupação, ou de sua forma, não afetam a possibilidade da configuração do abuso, exatamente o esteio da disposição do artigo 554 do CC (v. g. RT 677/190).
De se acolher, então, a pretensão veiculada.
Isto posto, e pelo mais que dos autos consta, JULGO PROCE¬DENTE a presente ação para o fim de, tornada definitiva a liminar concedida, determinar se abstenha o réu de manter no imóvel que ocupa, ainda que em parte, cães que lá se encontravam, sob pena de pagamento da multa diária requerida na inicial, devidamente corrigida.
Em razão de sua sucumbência, arcará o réu com o pagamento das custas processuais, atualizadas desde o desembolso, e honorários advocatícios de R$ 2.000,00.
P.R.I. (Proc. 1270/98, 26ª Vara Cível do Fórum Central da Comarca da Capital/SP, j. 28.8.98, juiz Cláudio Luiz Bueno de Godoy). Esta sentença foi confirmada no acórdão que julgou a ap. c/rev. 562637-00/0, 10ª Câm. do 2º TACSP, j. 27/01/00, rel. Irineu Pedrotti, v. u.