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Do crime continuado

Do crime continuado

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Crime continuado é uma ficção jurídica destinada a evitar o cúmulo material de penas.

Resumo: Forjada sob o influxo da equidade, a teoria da ficção jurídica do crime continuado arma ao fim de evitar a acumulação de penas ou exagero punitivo (art. 71 do Cód. Penal). É lance de alta política criminal saber temperar o rigor da lei com a moderação da clemência.


I. Crime continuado

Instituto nascido da equidade, é o crime continuado uma “fictio juris” destinada a evitar o cúmulo material de penas([1]); põe o fito, portanto, é favorecer o réu.

No crime continuado, mais do que a unidade de ideação, prevalecem os elementos objetivos referidos no art. 71 do Código Penal e a conveniência de remediar o exagero punitivo, que não corrige o infrator, senão que o revolta e embrutece, por frustrar-lhe a esperança de realizar, em tempo razoável e devido, o sonho de liberdade.

Em ponto de crime continuado, não deve o Juiz reduzir demasiado seu alcance, de arte que lhe impossibilite o reconhecimento; antes lhe importa, de par com a preocupação da ordem jurídica e social, atender à finalidade do instituto, convém a saber, evitar, sob o influxo da equidade, o excesso da punição, pois meta do Direito Penal é também a recuperação do infrator.

É certo que a reiteração criminosa e a habitualidade repugnam ao reconhecimento da continuidade delitiva e, destarte, à unificação das penas.

Com efeito:

“É preciso não confundir reiteração de crimes com crime continuado, pois a prevalecer a confusão, chegaríamos à negação da reincidência, e todo delinquente profissional, ao fim de sua vida, teria praticado um único crime continuado” (STF; Rev. Trim. Jurisp., vol. 84, p. 913; Min. Cordeiro Guerra).

Não esqueçam, porém, ao Magistrado aquelas palavras das Escrituras: “Noli esse justus multum” (Eccl., 7, 17), que o clássico Manuel Bernardes pôs em vernáculo neste feitio: “Não queiramos ser justos com nimiedade” (Nova Floresta, 1726, t. IV, p. 236).


II. Transcrição de Voto

Feriu o ponto do crime continuado o voto adiante reproduzido:

PODER JUDICIÁRIO

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Terceiro Grupo de Câmaras – Seção Criminal

Revisão Criminal nº 364.238-3/2-00

Comarca: Suzano

Peticionário: AA

Voto nº 6063

Relator

Sorteado

Declaração de Voto (vencido)

“Intimada a defesa da expedição da carta precatória, torna-se desnecessária intimação da data da audiência no juízo deprecado” (Súmula nº 273 do STJ).

– A confissão do réu, na Polícia, corroborada por outros valiosos elementos de convicção (v.g.: reconhecimento pela vítima, depoimento de testemunha presencial, etc.), autoriza a edição de decreto condenatório. Com efeito, exceto se comprovado ter sido obra de violência, a confissão do réu passa por prova excelente, “pois que é contrário à natureza alguém afirmar contra si fato que não seja verdadeiro” (Mário Guimarães, O Juiz e a Função Jurisdicional, 1958, p. 309).

“Instituto jurídico nascido da equidade”, na frase de José Frederico Marques, “é o crime continuado uma fictio juris destinada a evitar o cúmulo material de penas” (Curso de Direito Penal, 1956, vol. II, p. 354).

– Segundo a jurisprudência do STF, o art. 71 do Cód. Penal admite a aplicação da teoria da ficção jurídica (ou continuidade delitiva) aos crimes dolosos contra a vida; pelo que, homicídios praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e “modus operandi”, impõem a pena de um só deles, aumentada até o triplo (cf. Rev. Tribs., vol. 788, p. 515; 813/535 e 763/549).

“Ao mesmo Demônio se deve fazer justiça, quando ele a tiver” (Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. III, p. 329).

1. AA, condenado pelo MM. Juízo de Direito da 2a. Vara da Comarca de Suzano à pena de 25 anos de reclusão, no regime integralmente fechado, por infração dos arts. 121, § 2º, ns. I e IV, e 155, “caput”, conjugados com o art. 69 do Código Penal, reformada parcialmente em grau de recurso pelo ven. acórdão de fls. 74/78 (apenas para modificar o regime prisional imposto ao delito de furto, para inicialmente fechado), requer a este Egrégio Tribunal, assistido de competente e dedicado Procurador do Estado, Revisão de seu processo.

Afirma, em extensa e esmerada petição, que o processo estava eivado de nulidade, por cerceamento de defesa, porque ouvida testemunha por precatória, sem a sua presença.

No ponto do mérito, alega que, praticados em continuação seus crimes, era forçoso unificar-lhes as penas, na forma do art. 71 do Código Penal.

Pleiteia, em suma, à colenda Câmara tenha a bem deferir-lhe a unificação das penas, ou declarar nulo o processo, desde a audiência de fl. 257.

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em firme e escorreito parecer do Dr. Luiz Cláudio Pastina, opina pelo indeferimento do pedido (fls. 110/113).

É o relatório.

2. Foi condenado o peticionário porque, no dia 20.3.1995, pelas 7h10, por motivo torpe e valendo-se de recurso que dificultou a defesa dos ofendidos, matou, mediante golpes de faca, as vítimas Deuvalino Januário de Pina e Neide Aparecida dos Santos.

Consta ainda da denúncia juntada aos autos (fls. 4/7) que, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, após a prática dos homicídios, o peticionário subtraiu para si coisa alheia móvel: uma bicicleta pertencente a Everton Santos de Pina.

Foi o caso que o peticionário, frequentador do estabelecimento comercial das vítimas, aí contraíra dívida. Instado a satisfazê-la, encolerizou-se e as partes romperam em hostilidades.

No dia dos fatos, porém, o peticionário dirigiu-se à residência das vítimas (visto que o estabelecimento comercial já estava fechado), com o pretexto de que lhe servissem bebida alcoólica.

Tanto que vieram à porta da residência atendê-lo, o réu acometeu-as, vibrando-lhes golpes mortais de faca. Ato contínuo, por dissimular a enormidade de seu ato, pôs os corpos sobre uma cama, e amarrou-os com pedaços de fio.

A seguir, dirigiu-se ao bar, enfrascou-se em cerveja e subtraiu do menor Everton Santos de Pina sua bicicleta.

Instaurada a “persecutio criminis in judicio”, transcorreu o processo em forma legal; ao cabo, foi o peticionário condenado.

Agora, pela via revisional, pretende o reconhecimento da continuidade delitiva, nos termos do art. 71 do Código Penal, ou a declaração da nulidade do processo.

3. A arguição de nulidade do feito, embora suscitada em exuberante arrazoado — que muito acredita e recomenda o nome do patrono do réu (Dr. Murilo Schieri Costa Neves) —, não procede, “data venia”.

Estaria trincado de nulidade o processo, argumenta a Defesa, porque nem o réu nem seu procurador foram intimados da audiência, realizada no Juízo deprecado, para a inquirição de testemunha.

Semelhante alegação, porém, carece de fomento de bom direito.

Em verdade, do r. despacho que determinou a expedição de carta precatória (fl. 116) foi intimado o defensor do réu, Dr. Gil Tanoeiro (fl. 121 v.).

Por outra parte, isto de não ter sido requisitado o réu para assistir à inquirição de testemunha fora da terra não implica nulidade do processo. A diretriz não é menos que do Excelso Pretório:

“Assim, é desnecessária a requisição de réu preso para a audiência em que deve ser ouvida, por precatória, testemunha arrolada pela acusação” (STF, HC nº 56.880; DJU 8.6.79, p. 4.534; apud Damásio E. de Jesus, Código de Processo Penal Anotado, 21a. ed., p. 191).

Ao demais, na conformidade da Súmula nº 273 do Colendo Superior Tribunal de Justiça, “intimada a defesa da expedição da carta precatória, torna-se desnecessária intimação da data da audiência no juízo deprecado”.

À derradeira, é princípio inscrito no art. 563 do Código de Processo Penal que “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”.

Também não há que dizer contra a r. decisão que, acertadamente, indeferiu pedido formulado pelo patrono do réu, de adiamento da sessão do júri, sob color de que o Cartório não providenciara cópia de peças dos autos para que pudesse melhor desempenhar-se da defesa (fl. 463). É que ditas cópias, segundo o observou o r. despacho verberado, já estavam à disposição do requerente, havia coisa de “um mês” (fl. 472); demais disso, ao patrono do réu, já que regularmente intimado (fl. 472), cumpria comparecer à plenária para promover-lhe a defesa.

Outro tanto no que respeita à irresignação da Defesa ao despacho que lhe indeferiu requerimento de diligência, i.e., elaboração de esboço gráfico do local dos fatos (fl. 103).

Obrou com aviso o douto Magistrado, ao indeferir-lhe o pedido de diligências, que o douto parecer de fl. 112 reputou, com assaz de razão, de todo escusadas: “absolutamente desnecessárias” para a “busca da verdade”.

Com efeito, embora o escopo do procedimento criminal seja “obter a certeza judicial, segundo o critério da verdade” (Bento de Faria, Código de Processo Penal, 1960, vol. II, p. 210), a liberdade de requerer “não deve degenerar em abuso, por forma a paralisar a marcha do processo, com o propósito de retardar a administração da justiça ou tumultuar a ordem processual” (Idem, ibidem).

Enfim, por empregar a expressão vivaz de Francisco Campos na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, a lei “não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades” (nº XVII).

Afasto, assim, a alegação de nulidade do processo, que tenho por desarrazoada.

4. A responsabilidade do peticionário pelo duplo homicídio e pelo furto é superior a toda a dúvida sensata.

A testemunha Éverton Santos de Pina relatou, com grande rigor descritivo, a cena lutuosa do trucidamento de seus pais pelo réu. À distinta Juíza que lhe tomou o depoimento (Dra. Maria Isabel Caponero Cogan) esclareceu que o pai era dono de um bar e residia no imóvel que lhe era contíguo, onde, no dia dos fatos, apareceu o réu. Aos brados, pediu lhe servissem pinga. O comerciante, conforme as palavras da testemunha, negou-se a atendê-lo, porque aparentemente embriagado e por não haver saldado ainda débito anterior. Então o réu empurrou-o, e esse, após dar com a cabeça na porta, desfaleceu. O réu neste ínterim, amarrou-o à cama, o que fez também em relação à mulher; em seguida, coseu-os de facadas.

Após selar-se com o sangue das vítimas, deitou a mão a uma bicicleta que aí havia, de propriedade de um dos filhos das vítimas, e abalou (fl. 25).

Fatos foram esses que o réu tentou negar, em seu interrogatório no plenário do Júri (fl. 519). Fê-lo, entretanto, debalde, não só porque a mencionada testemunha o conhecia bem — e até lhe declinara a alcunha: “Bambu” (fl. 258) —, senão porque o réu, na fase policial, confessara, amplamente, a autoria dos crimes (fl. 83).

Não estranha, pois, que os jurados, por implacável unanimidade de sufrágios, lhe afirmassem a autoria dos crimes nas três séries de quesitos (fls. 520/522).

As sentenças condenatórias do Júri, ainda que seja possível rescindi-las na instância revisional, por amor da “prevalência do interesse social do status libertatis” (Rev. Tribs., vol. 594, p. 372), toca à Defesa demonstrar-lhes o erro ou injustiça.

A propósito:

“Em se tratando de revisão, inverte-se o ônus da prova, cabendo ao requerente mostrar o desacerto da decisão que o condenou, que ela foi contrária à evidência dos autos, não lhe aproveitando o estado de dúvida que acaso consiga criar no espírito dos julgadores” (Rev. Forense, vol. 188, p. 349).

5. A decisão revidenda fundou-se em prova obtida com estrita observância dos preceitos legais.

Diferentemente do que asseverou o peticionário, portanto, não afrontou a evidência.

Tão só a decisão que se aparte rudemente das provas sofre a pecha de contrária à evidência dos autos; não está nesse número, bem se vê, a que faz objeto do presente pedido.

Ora:

“Decisão contrária à prova dos autos é aquela que se choca, de modo claro, manifesto e inequívoco, com os elementos probatórios dos autos e não a que lhes empresta o justo valor” (Rev. Forense, vol. 187, p. 387).

A condenação do réu, sobre ter sido necessária, foi justa.

6. A despeito de ter praticado atos atrocíssimos — próprios somente de quem desceu todos os círculos da maldade humana —, acho razão ao réu quando, por seu digno e esforçado patrono, pleiteia o reconhecimento da continuidade delitiva entre os crimes dolosos contra a vida, visto que cometidos nas circunstâncias do art. 71 do Código Penal, isto é, de forma continuada.

De feito, “instituto jurídico nascido da equidade”, na frase de José Frederico Marques, “é o crime continuado uma fictio juris destinada a evitar o cúmulo material de penas” (Curso de Direito Penal, 1956, vol. II, p. 354).

Beneficiar o réu, portanto, é o alvo a que atira.

Cai a lanço o ven. acórdão, abaixo reproduzido por sua ementa:

“Segundo a disciplina do Código Penal Brasileiro, é despicienda a unidade de ideação ou o nexo psicológico para o reconhecimento do crime continuado. Relevância maior assumem os elementos objetivos, decorrendo da sua homogeneidade e da conveniência de favorecimento, ou não, na aplicação da pena mais branda ao condenado, o reconhecimento, ou não, da continuação” (Rev. Tribs., vol. 380, p. 220; rel. Manoel Pedro).

Faz ao caso, à derradeira, transcrever o escólio de Julio Fabbrini Mirabete:

“Em que pese aos entendimentos em sentido contrário, prevalece em flagrante maioria a ideia concernente à admissão da teoria objetiva pura ou realístico-objetiva, consoante a qual o crime continuado é uma realidade apurável objetivamente através da apreciação dos elementos constitutivos exteriores, independentemente da unidade de desígnio” (Manual de Direito Penal, 1999, pp. 316/317).

Nisto de crime continuado, mais do que a unidade de ideação, importam os elementos objetivos referidos no art. 71 do Código Penal e a conveniência de evitar o exagero punitivo, que não corrige o infrator, antes o revolta, com retirar-lhe a esperança do retorno breve à comunhão social.

Ainda:

“Entendemos que a reforma penal de 84 tornou prejudicada essa súmula, que enunciava: Não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida. Nesse sentido: STF, RJTJSP 121/665; TJSP, RJTJSP 165/315” (Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 6a. ed., p. 145).

7. De que nossas Cortes de Justiça têm admitido a continuidade delitiva, mesmo em se tratando de homicídios, estão a demonstrá‑lo os julgados a seguir reproduzidos por suas ementas:

a) “Ante os pressupostos objetivos do art. 71 do Cód. Penal — prática de dois ou mais crimes da mesma espécie, condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras circunstâncias próximas —, impõe-se a unificação das penas mediante o instituto da continuidade delitiva. Repercussão do crime no meio social — de que é exemplo o caso da denominada Chacina de Vigário Geral — não compõe o arcabouço normativo regedor da matéria, muito menos a ponto de obstaculizar a aplicação do preceito pertinente” (STF; rel. Min. Marco Aurélio; Rev. Tribs., vol. 788, p. 515);

b) “Crime continuado é aquele no qual o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, os quais, pelas semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução, podem ser tidos como continuação de outros (art. 71 do Cód. Penal). O modus operandi, em tais delitos, dever ser o mesmo, sendo necessária a homogeneidade das condutas.

No caso sub judice, a peça vestibular, bem como o libelo, apontam a ocorrência de um homicídio qualificado e em seguida a tentativa de cometimento de outro homicídio, pelas mesmas autoras e em circunstâncias objetivas homogêneas. Destarte, configura-se a continuidade delitiva, e não o concurso material” (STJ; rel. Min. Jorge Scartezzini; Rev. Tribs., vol. 813, p. 535);

c) “O art. 71, parág. único, do Cód. Penal admite o reconhecimento da continuidade delitiva nos crimes dolosos contra vítimas diferentes, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa; assim, no duplo homicídio, o ignóbil motivo dos delitos e a dificuldade de defesa imposta aos ofendidos, circunstâncias já mensuradas quando da aplicação das qualificadoras, não podem ser consideradas como causas para a exclusão do favor legal da continuidade delitiva, sob pena de bis in idem(TJSP; rel. Walter Guilherme; Rev. Tribs., vol. 763, p. 549).

8. A circunstância de ter-se utilizado o peticionário da via revisional não lhe obsta ao atendimento da súplica.

A uma, porque somente agora acertou que a Defesa discorresse a propósito da questão, isto é, do cúmulo material de penas.

A outra, porque, ao pretender o reconhecimento do crime continuado, intenta a reclassificação da infração penal, o que o
art. 626 do Código Processo Penal prevê e autoriza (cf. RJDTACrimSP, vol. 22, p. 500).

À derradeira, “o instituto da revisão criminal visa, como última garantia do direito de defesa assegurado indistintamente a todos os condenados, ao reexame da sentença condenatória suscetível de emenda ou reforma nos casos previstos em lei” (Rev. Forense, vol. 141, p. 381).

Ainda que autor de crimes repugnantes e gravíssimos, tem direito o peticionário à aplicação da teoria da ficção jurídica. Ao mesmo Demônio — sentenciou o profundo Antônio Vieira — “ao mesmo Demônio se deve fazer justiça, quando ele a tiver” (Sermões, 1959, t. III, p. 329).

Assim, adotado o estalão dosimétrico da r. sentença, que fixou a pena do réu no mínimo legal, imponho-lhe a sanção de um dos homicídios e aumento-a de 1/2 (6 anos) — pois que o mínimo do acréscimo é 1/6, segundo a jurisprudência do Colendo Supremo Tribunal Federal (cf. Rev. Tribs., vol. 617, p. 410) —, de que resultam 18 anos de reclusão, para cumprimento sob o regime integralmente fechado, mantida a pena de 1 ano para o crime conexo (furto), no regime fechado, no início.

Em suma: defiro em parte o pedido de revisão criminal para, reconhecida a continuidade delitiva quanto ao duplo homicídio, impor ao peticionário a pena de 18 anos de reclusão, mantida no mais a r. sentença de Primeiro Grau.

9. Pelo exposto, defiro em parte a revisão criminal para, reconhecida a continuidade delitiva entre os dois homicídios, reduzir a 18 anos de reclusão a pena do peticionário a esse respeito, mantida no mais a r. sentença de Primeiro Grau.

São Paulo, 4 de agosto de 2005

Des. Carlos Biasotti

Relator Sorteado


III. A Lição da Doutrina e o Magistério dos Tribunais. Ementas.

1. “O crime continuado, instituto nascido da equidade, é uma fictio juris destinada a evitar o cúmulo material de penas” (José Frederico Marques, Curso de Direito Penal, 1956, vol. II, p. 354).

2. “O réu tem direito ao crime continuado, agindo ou não com unidade de desígnio, pois essa foi a vontade do legislador” (Guilherme de Souza Nucci, Código Penal Comentado, 2000, p. 216).

3. Não haverá continuidade, mas simples reiteração criminosa, se os delitos não foram praticados pelo sujeito “mediante o aproveitamento das mesmas relações e oportunidades ou com a utilização de ocasiões nascidas da primitiva situação” (Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 5a. ed., p. 198).

4. A figura da continuidade delitiva, prevista no art. 71 do Cód. Penal, pressupõe as “mesmas relações e oportunidades ou com a utilização de ocasiões nascidas da primitiva situação”, sua pedra de toque (cf. Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 5a. ed., p. 198).

5. “Inadmissível é a outorga do benefício quando se trata de casos em que estão patentes a perseveratio in crimine ou a consuetudo delinquendi, sobretudo porque tais circunstâncias constituem motivo não do abrandamento da pena, mas sim de seu agravamento, como indícios de periculosidade e da incapacidade de adaptação à ordem legal” (Damásio E. de Jesus, Direito Penal Anotado, 1988, p. 527).

6. “Por mais graves que tenham sido os crimes praticados, tem o acusado o direito à esperança de um dia voltar ao convívio social e de sua família” (João Baptista Herkenhoff, Uma Porta para o Homem no Direito Criminal, 2a. ed., p. 166).

7. “Criação destinada a evitar o excesso de punição decorrente do tratamento rígido conferido ao concurso real de infrações”, como o definiu Manoel Pedro Pimentel (Do Crime Continuado, 2a. ed., p. 114), o crime continuado não deve ser estímulo nem acoroçoamento à prática de ações delitivas, o que se dá sempre que medido por craveira demasiado generosa (art. 71 do Cód. Penal).

8. “Viola o art. 71 do Código Penal o acórdão que, embora reconhecendo a concorrência dos elementos da caracterização objetiva do crime continuado, que nele se adotou, nega, porém, a unificação das penas, à base de circunstâncias subjetivas, quais os antecedentes do acusado ou a ausência da unidade de desígnio” (STF; Rev. Trim. Jurisp., vol. 137, p. 772; rel. Min. Sepúlveda Pertence).

9. “É preciso não confundir reiteração de crimes com crime continuado, pois a prevalecer a confusão, chegaríamos à negação da reincidência, e todo delinquente profissional, ao fim de sua vida, teria praticado um único crime continuado” (STF; Rev. Trim. Jurisp., vol. 84, p. 913; Min. Cordeiro Guerra).

10. Segundo a jurisprudência do STF, o art. 71 do Cód. Penal admite a aplicação da teoria da ficção jurídica (ou continuidade delitiva) aos crimes dolosos contra a vida; pelo que, homicídios praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e “modus operndi”, impõem a pena de um só deles, aumentada até o triplo (cf. Rev. Tribs., vol. 788, p. 515; 813/535 e 763/549).

11. Crimes da mesma espécie, o roubo e a extorsão, quando praticados nas circunstâncias do art. 71 do Cód. Penal, configuram continuidade delitiva, não concurso material de infrações. É desse número, portanto, o caso de delinquentes que, após consumar o roubo, “forçam a vítima a acompanhá-los à caixa eletrônica para sacar o dinheiro” (cf. Rev. Tribs., vol. 765, p. 572; rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro).

12. “Aplica-se a regra do crime continuado quando da aplicação da pena pelo delito de atentado violento ao pudor, se este foi praticado, embora contra várias vítimas, pelo mesmo modus operandi” (Rev. Tribs., vol. 807, p. 592; rel. Celso Limongi).

13. Segundo a Jurisprudência, a mera possibilidade de serem considerados continuados os delitos atribuídos ao réu não importa a junção dos processos (cf. Rev. Tribs., vol. 445, p. 442).

14. “A simples habitualidade delituosa descaracteriza a noção legal do chamado crime continuado” (STF; HC nº 68.626; rel. Min. Célio Borja; DJU 1.11.91, p. 15.569).

15. “Quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação” (Súmula nº 497 do STF).

16. Segundo a comum doutrina de graves autores, não há continuidade delitiva (art. 71 do Cód. Penal), mas simples reiteração criminosa, se os crimes subsequentes não estão ligados aos anteriores por vínculo psicológico.

17. No crime continuado, mais do que a unidade de ideação, prevalecem os elementos objetivos referidos no art 71 do Cód. Penal e a conveniência de remediar o exagero punitivo, que não corrige o infrator, senão que o revolta e embrutece, por frustrar-lhe a esperança de realizar, em tempo razoável e justo, o sonho da liberdade.

18. Para caracterizar a ficção de direito do art. 71 do Cód. Penal, é indispensável a comprovação, dentre outros, do requisito da identidade dos participantes dos crimes (“modus operandi”).

19. A pedra de toque do crime continuado, segundo o preceito do art. 71 do Cód. Penal, é tenham sido os delitos praticados pelo sujeito “mediante o aproveitamento das mesmas relações e oportunidades ou com a utilização de ocasiões nascidas da primeira situação” (Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 5a. ed., p. 198).

20. Não há aplicar com extremo rigor o instituto da unificação de penas, que isso importaria na deturpação de seu escopo: verdadeiro instrumento de individualização da pena, destina-se a evitar o excesso de punição.

21. Segundo a comum doutrina de graves autores, não há continuidade delitiva (art. 71 do Cód. Penal), mas simples reiteração criminosa, se os crimes subsequentes não estão ligados aos anteriores por vínculo ideológico.

22. Isto de unificação de penas reclama do Magistrado especial prudência e discernimento, não venha a premiar, com redução drástica e temerária, a duração de penas de criminosos empedernidos.

23. Conforme a lição de autores de primeira nota, para a configuração do crime continuado faz-se mister idêntico “modus operandi”, isto é, que “os delitos tenham sido praticados pelo sujeito aproveitando-se das mesmas relações e oportunidades ou com a utilização de ocasiões nascidas da primitiva situação” (Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 9a. ed., p. 228).

24. Os crimes subsequentes “devem ser havidos como continuação do primeiro”: este o traço mais conspícuo do crime continuado. Para tanto, além dos elementos de ordem objetiva, é mister concorra o de índole subjetiva, a saber: unidade de resolução. Sem essas características, não há continuidade delitiva, mas simples reiteração criminosa, que argui no agente a torpe malícia de quem faz do crime profissão.

25. Se até os crimes contra a vida admite a fictio jurisda continuidade, não há razão atendível para negá-la nas hipóteses de crimes contra os costumes praticados nas circunstâncias do art. 71 do Cód. Penal.

26. Entre furto e estelionato não há continuação porque, embora delitos da mesma natureza, pertencem a espécies diferentes. Crimes da mesma espécie, conforme Damásio E. de Jesus, “são os previstos no mesmo tipo penal, i.e., aqueles que possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas ou consumadas” (Código Penal Anotado, 9a. ed., p. 227).

27. Satisfeitos os requisitos do art. 71 do Cód. Penal, nada impede o reconhecimento da continuidade delitiva entre roubo e extorsão, pois se trata de crimes da mesma espécie: apenas se estremam na forma de entrega da coisa.

28. Sem atender ao requisito da pluralidade de crimes da mesma espécie, não há falar em continuidade delitiva (art. 71 do Cód. Penal).

29. Que é possível a continuação entre crimes praticados contra vítimas diferentes e bens personalíssimos está a persuadi-lo assim a lição de acreditados penalistas como a jurisprudência dos Tribunais.

Em sua prestantíssima obra Código Penal Comentado (5a. ed., p. 378), escreveu Guilherme de Souza Nucci:

“Atualmente, os acórdãos seguem tendência em sentido contrário, acolhendo o delito continuado mesmo contra vítimas diferentes e bens personalíssimos”.

Ao diante, na mesma página, remata:

“Aliás, outra não poderia ser a solução, pois a Reforma Penal de 1984 acrescentou o parágrafo único ao art. 71 do Código Penal, prevendo claramente essa possibilidade”.

30. “Ao mesmo Demônio se deve fazer justiça, quando ele a tiver” (Pe. Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. III, p. 329).


Nota

[1] Cf. José Frederico Marques, Curso de Direito Penal, 1956, vol. II, p. 354; Editora Saraiva; São Paulo.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Do crime continuado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7143, 21 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101890. Acesso em: 8 maio 2024.