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Tribunal do júri e privilégio de foro

Tribunal do júri e privilégio de foro

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Foro privilegiado na Constituição Federal

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso XXXVIII, alínea d, concedeu ao tribunal do júri a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Entendem-se estes como os previstos nos arts. 121, §§1º e 2º, 122, parágrafo único, 123 a 127 do Código Penal, conforme o art. 74, §1º do Código de Processo Penal.

Contudo, a própria Carta Magna tratou de excepcionar algumas hipóteses em que certas pessoas, em razão das funções que ocupam, têm direito a julgamento em foro privilegiado nos crimes comuns e/ou de responsabilidade. São normas de aplicabilidade imediata, "não apenas por sua natureza constitucional e processual, mas também por contemplar não o ocupante do cargo, mas a dignidade da função" (1).

No art. 102, inciso I, alíneas b e c, foi atribuído ao Supremo Tribunal Federal a competência para processo e julgamento, nas infrações penais comuns, do Presidente da República, do Vice-Presidente, dos membros do Congresso Nacional, dos Ministros de Estado e do Procurador-Geral da República, bem como, nas infrações penais comuns e nas de responsabilidade, dos membros dos Tribunais Superiores, do Tribunal de Contas da União e dos chefes de missão diplomática de caráter permanente.

No art. 105, inciso I, alínea a, ficou o Superior Tribunal de Justiça competente para processar e julgar, nos crimes comuns, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, bem como, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores de Tribunais de Justiça, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, dos Tribunais Regionais Federais, Eleitorais e do Trabalho, dos Conselhos e Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais.

O art. 108, inciso I, alínea a, atribui competência aos Tribunais Regionais Federais para processo e julgamento, nos crimes comuns e de responsabilidade, dos juízes federais, incluídos os da Justiça Militar e do Trabalho, bem como os membros do Ministério Público da União.

E o art. 96, inciso III, dá ao Tribunal de Justiça a competência para julgar os juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns.

Por fim, o art. 29, inciso VIII, estabelece que o Prefeito será julgado pelo Tribunal de Justiça. Como, neste caso, não é feita distinção entre crimes comuns e de responsabilidade, a jurisprudência tem entendido que abrange ambos, desde que sejam delitos submetidos à Justiça Estadual.

Na fórmula constitucional de "crimes comuns", compreendem-se todas as modalidades de delitos, desde que não se capitulem entre os "crimes de responsabilidade" (2). Portanto, deve prevalecer o foro privilegiado previsto na Constituição Federal também para os crimes dolosos contra a vida.

Em todos os casos elencados acima, há conflito aparente de normas de idêntica hierarquia, pois ambas provenientes da Constituição: uma, regra geral, que atribui a competência dos crimes dolosos contra a vida ao Tribunal do Júri; outra, específica, que concede foro privilegiado por prerrogativa de função a algumas autoridades. Resolve-se o conflito com a prevalência da regra especial sobre a geral.

São estas, e apenas estas, as hipóteses de afastamento da competência do Tribunal do Júri previstas na Constituição Federal (3).


Foro privilegiado na ordem infraconstitucional

É pacífico que os Estados-membros podem, no exercício de seu poder constituinte decorrente, estabelecer privilégios de foro para seus agentes políticos em suas Constituições Estaduais, em correspondência com os casos previstos na Constituição Federal.

A Constituição Federal estabeleceu, em seu art. 125, §1º, que "a competência dos tribunais [estaduais] será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça".

O Supremo Tribunal Federal tem considerado constitucional os dispositivos estaduais que atribuem ao Tribunal de Justiça o processo e julgamento de ações criminais contra certas autoridades locais (tais como deputados estaduais, secretários de Estado e vereadores).

Vide o seguinte julgado do STF:

"A Constituição do Estado do Piauí – à vista do que lhe concede a Carta da República (art. 125, §1º) – é expressa no dizer que compete ao Tribunal de Justiça processar e julgar, originalmente, nos crimes comuns e de responsabilidade, os vereadores (art. 123, III, d, 4). Julgamento em primeira instância ofende a garantia do juiz competente (art. 5º, LIII). A decisão em grau de recurso não suprime o vício." (4)

Contudo, discute-se a possibilidade de este privilégio de foro abranger também os crimes dolosos contra a vida, tendo em vista a norma da Constituição Federal que os atribui ao Tribunal do Júri.

Alexandre de Morais defende que "desde que expressamente previsto na Constituição Estadual, os deputados estaduais e Secretários de Estado serão processados e julgados nos crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal de Justiça de seu respectivo Estado" (5).

O STF tem se manifestado neste sentido. Em 1981, o Plenário decidiu que "pode a Constituição do Estado-membro, com base no poder implícito que reconhece a este de atribuir a seus agentes políticos as mesmas prerrogativas de função de natureza processual penal que a Constituição Federal outorga aos seus que lhes são correspondentes, estabelecer que o foro por prerrogativa de função de deputado estadual é o Tribunal de Justiça do Estado, para todos os crimes de competência da Justiça desse Estado-membro, inclusive os dolosos contra a vida" (6).

Do voto do relator, Min. Moreira Alves, extrai-se o seguinte trecho:

"Essa extensão aos crimes dolosos contra a vida se impõe pela própria natureza do poder implícito que se reconhece ao Estado-membro de atribuir aos seus agentes políticos as mesmas prerrogativas de função de natureza processual penal que a Constituição Federal outorga aos seus que lhe são correspondentes, não obstante não tenha o Estado-membro competência para legislar sobre processo penal. E se – como sucede no caso – a prerrogativa de função estabelecida na Constituição Federal se sobrepõe à garantia individual do julgamento pelo Júri, o mesmo tem que ocorrer na esfera estadual que se adstringe ao modelo federal de modo integral, desde que circunscrito no âmbito dos poderes estaduais constituídos." (7)

Em seu voto, o Min. Cordeiro Guerra resumiu bem a posição da Corte:

"A questão que se apresenta é saber se a Constituição Estadual, ao dar o foro do Tribunal de Justiça, é incompatível com o foro privativo do júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida. O Relator, seguido pelos demais Ministros, entende que é perfeitamente compatível, e deve prevalecer a competência do Tribunal de Justiça, atendendo a que, como disse Pimenta Bueno, o foro especial visa proteger a própria instituição parlamentar ou funções exercidas pelo titular do cargo. Acompanho S. Exa., mesmo porque o foro privativo do júri é uma garantia instituída no interesse individual, e, no caso, é o próprio deputado quem abre mão das garantias, para postular foro especial em defesa de suas prerrogativas, por considerá-lo mais isento e tranqüilo para julgamento do crime que lhe é imputado." (8)

O STF foi mais além em 1987, ao julgar habeas corpus impetrado em favor de secretário de segurança pública do Distrito Federal que estava sendo processado por homicídio. Na ocasião, chegou a afastar norma local que, ao enunciar a competência originária do Tribunal de Justiça, ressalvava a do tribunal do júri. O Plenário do STF decidiu, no caso, que "deve prevalecer, como foro especial decorrente de prerrogativa de função, a competência originária do Tribunal de Justiça, em correspondência com o disposto na Constituição Federal relativamente aos Ministros de Estado." (9)

O relator, Min. Octávio Gallotti, transcreveu longo parecer do então Subprocurador-Geral da República, Aristides Junqueira, alegando que, se os Ministros de Estado são processados e julgados pelo STF, os secretários de Estado-membro o devem ser pelo Tribunal de Justiça. "E é o que se constata, atualmente, no texto constitucional de todos os Estados-membros, sem exceção, devendo ser salientado que nenhum deles ressalva o processo ou o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Aliás, como se viu, a ressalva refugiria do parâmetro constitucional federal" (10). Destarte, a referida norma da Lei federal de Organização Judiciária do Distrito Federal (que não possuía Constituição) foi tida por inconstitucional, justamente por fazer tal exceção aos crimes dolosos contra a vida, sem correspondência na CF.

No entanto, esta posição é questionada por Júlio Fabbrini Mirabete: "Gozando o autor de crime doloso contra a vida de foro por prerrogativa de função estabelecido na Constituição Federal, a competência para processá-lo e julgá-lo será deste foro especial e não do júri, já que a própria Carta Magna estabelece a exceção à competência do Tribunal Popular. Entretanto, se foro especial for estabelecido pela Constituição Estadual, por lei processual ou de organização judiciária, o autor de crime doloso contra a vida deve ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, uma vez que tais preceitos jurídicos não podem excluir a competência instituída pela Carta Magna" (11). Nesse sentido, cita julgados antigos (anteriores a 1975) do STF: RTJ 14/63, 66/818, 67/579.

Mas, definitivamente, não parece ser esta a posição hodierna do STF.

Em decisão recente, relativa a dispositivo da Constituição da Paraíba que atribui foro privilegiado a Procurador do Estado, o STF decidiu que:

"Embora seja permitido à Constituição de Estado-membro instituir foro especial por prerrogativa de função (CF, art. 125, §1º), ela não pode excluir a competência constitucional do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (CF, art. 5º, XXXVIII, d), a não ser em relação aos agentes políticos correspondentes àqueles que a Constituição Federal outorga tal privilégio. Com esse fundamento, o Tribunal, em face de habeas corpus impetrado em favor de procurador do Estado da Paraíba que fora condenado por crime de homicídio perante o Tribunal de Justiça Estadual em virtude de privilégio de foro, deferiu o pedido para anular o acórdão condenatório e o processo penal em que ele foi proferido, ab initio, determinando a devolução dos autos da ação penal à comarca de origem, por entender inaplicável aos crimes dolosos contra a vida atribuídos aos Procuradores do Estado a regra inscrita no art. 136, XII, da Constituição do Estado da Paraíba ("São assegurados ao Procurador do Estado: ... XII – ser processado e julgado, originalmente, pelo Tribunal de Justiça do Estado, nos crimes comuns ou de responsabilidade")" (12).

Ressalte-se, da primeira oração do trecho supra transcrito, que o STF continua admitindo a exclusão do Tribunal do Júri quando se tratar de agentes políticos correspondentes àqueles que a Constituição Federal outorga privilégio semelhante. No caso acima, só foi admitida a competência do Tribunal do Júri por não ser o caso do Procurador de Estado reprodução de norma análoga da Constituição Federal, uma vez que os advogados da União não dispõem de privilégio de foro.

No mesmo sentido, decisão mais recente do STF, também referente ao Estado da Paraíba, mas desta vez a um membro do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado:

"Considerando que a competência do Tribunal do Júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida não é absoluta, já que a própria CF concede foro especial por prerrogativa de função a determinados agentes políticos (CF, art. 125, §1º), a Turma, por unanimidade, manteve acórdão proferido pelo STJ, que entendera pela competência do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba para julgar Procurador aposentado do Tribunal de Contas do Estado acusado da prática de crime de homicídio. Entendeu-se que a competência do tribunal do júri fora afastada em razão de a Constituição Estadual ter reconhecido aos membros do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado prerrogativa idêntica àquela adotada pela CF em relação aos membros do Ministério Público junto ao TCU (CF, art. 105, I, a, e art. 130)..." (13)

Em resumo: o STF entende que tanto nos privilégios de foro instituídos pela Constituição Federal, quanto nos baseados em norma da Constituição Estadual que reproduza em seu âmbito norma da Constituição Federal, não há ressalva implícita da competência do Tribunal do Júri.

Assim, se a Constituição Estadual conceder foro privilegiado ao Vice-Governador, aos deputados estaduais ou aos secretários de Estado, estes não se sujeitarão à ressalva da competência do Tribunal do Júri, por analogia com o art. 102 da Constituição Federal. Da mesma forma, as correspondentes autoridades municipais, se forem igualmente referidas na Constituição Estadual: o Vice-Prefeito, os vereadores e os secretários municipais.

Portanto, não obrou com o costumeiro acerto a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (14) que, a pretexto de seguir a jurisprudência do STF, determinou o julgamento por crime doloso contra a vida de um vereador pelo Tribunal do Júri, embora este possua foro privilegiado em virtude de dispositivo da Constituição Estadual (art. 123, III, d, 4). O TJ havia aceitado a denúncia do Ministério Público, mas, em virtude de exceção de incompetência impetrada pelo próprio Parquet, remeteu os autos para o júri.

No julgamento, foi feita alusão ao citado habeas corpus em benefício do Procurador da Paraíba; porém, como visto, o caso deste é diferente daquele do vereador. Como a norma da Carta Estadual do Piauí que concede privilégio de foro ao vereador reproduz dispositivo semelhante da Constituição Federal referente aos membros do Congresso Nacional, que por sua vez não ressalva a competência do Tribunal do Júri, a posição do STF é que para este também não deve haver ressalva. Ou seja, o vereador com privilégio de foro deve ser sempre processado e julgado pelo Tribunal de Justiça.

Nossa opinião pessoal, contudo, é que a razão está mesmo com Júlio Fabbrini Mirabete. Ora, a Constituição Federal ressalvou o foro privilegiado para certas autoridades estaduais e municipais. Assim, o STJ julgará os Governadores, os desembargadores de Tribunais de Justiça, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal e dos Conselhos e Tribunais de Contas dos Municípios (art. 102, CF); o Tribunal de Justiça julgará os juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, bem como os respectivos membros do Ministério Público (art. 96, CF), bem como o Prefeito Municipal (art. 29, CF). Para estes, não há dúvida de que, como a Constituição não ressalva a competência do júri para os crimes dolosos contra a vida, também neles haverá privilégio de foro. Contudo, se a Constituição Federal quisesse fazer o mesmo para outras autoridades estaduais e municipais, teria assim feito expressamente.

No mais, sendo a norma do Tribunal do Júri norma da Lei Maior da Nação, pode ser afastada somente por norma de igual hierarquia que a excepcione, jamais por norma de hierarquia inferior, seja de Constituição Estadual, de lei federal ou estadual. O Tribunal do Júri não é um direito subjetivo do acusado, renunciável: é um direito de cada membro da sociedade, de julgar diretamente os acusados de crimes dolosos contra a vida. Somos que constitui burla à Carta Magna qualquer tentativa de excepcionar sua competência além do já previsto na Constituição Federal.


NOTA DE ATUALIZAÇÃO

Em 24/09/2003, o STF editou a Súmula 721, com o seguinte teor: "A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição estadual."


NOTAS

  1. STF, HC 71654/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 18.10.1994, DJ 30.08.1996.
  2. STF, HC 69344/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 22.09.1992, DJ 18.06.1993.
  3. STF, HC 70581/AL, 2ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 21.09.1993, DJ 29.10.1993; HC 69344/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 22.09.1992, DJ 18.06.1993; HC 69325/GO, Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 17.06.1992, DJ 04.12.1992.
  4. STF, HC 74125/PI, 2ª Turma, Rel. Min. Francisco Rezek, j. 03.09.1996, DJ 11.04.1997.
  5. Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo, Atlas, 1999. pp. 102-3.
  6. STF, HC 58410/RJ, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, j. 18.03.1981, DJ 15.05.1981.
  7. Idem.
  8. Idem.
  9. STF, HC 65132/DF, Pleno, Rel. Min. Octávio Gallotti, j. 12.08.1987, DJ 04.09.1987.
  10. Idem.
  11. Processo Penal.
  12. 7. ed. São Paulo, Atlas, 1997. p. 189-90.
  13. HC 78168/PB, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 18.11.1998. Cf. Informativo STF 132.
  14. HC 79212/PB, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.06.1999. Cf. Informativo STF 155.
  15. TJPI, EI 98.001325-9, Rel. Des. Raimundo Nonato da Costa Alencar, j. 13.04.1999.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Paulo Gustavo Sampaio. Tribunal do júri e privilégio de foro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -1096, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1075. Acesso em: 16 abr. 2024.