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Suspensão condicional do processo: direito subjetivo do acusado?

Suspensão condicional do processo: direito subjetivo do acusado?

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1. INTRODUÇÃO

Com a edição da Lei n. 9099/95, o legislador deu cumprimento ao art. 98, inciso I, da Constituição Federal, que previu a criação, no âmbito do Poder Judiciário, de "juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menos complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau".

Essa lei inaugurou uma nova fase no sistema processual penal brasileiro, a da justiça pactuada ou consensual, e vem causando perplexidade a juízes, advogados, membros do Ministério Público, defensores e demais operadores jurídicos.

Tal incerteza dogmática e jurisprudencial deve-se em grande monta à dificuldade de assimilação da transação penal e da suspensão condicional do processo, institutos inseridos no ordenamento brasileiro, respectivamente, pelos arts. 76 e 89 da Lei Federal n. 9099/95, que modificaram as noções sobre a indisponibilidade da ação penal pública e refletem uma inspiração despenalizadora.

O sursis processual, como vem sendo chamada a suspensão condicional, é direito subjetivo do acusado ou poder discricionário do Ministério Público? Abordar o cerne dessa polêmica é aquilo a que nos propomos, deixando claro, desde já, que preferimos que a solução do conflito exegético e valorativo acerca da aplicação concreta dos novos institutos se dê pela via do controle hierárquico da discricionariedade ministerial, tudo ocorrendo interna corporis.



2. UMA NOVA ERA: A JUSTIÇA CRIMINAL CONSENSUAL

LUIZ FLÁVIO GOMES (in Suspensão condicional do processo. São Paulo: RT, 1995, p. 124), um dos mais ilustres estudiosos do assunto, explica que a polêmica instalada no meio forense acerca da interpretação da nova lei decorre, em parte, do laconismo do legislador, que "cuidou de um dos mais revolucionários institutos no mundo atual em apenas um artigo (art. 89)", deixando margem a uma série de indagações.

Com efeito, o tratamento legislativo dado aos dois novos institutos merece essa crítica, pelo acanhamento na especificação dos seus mecanismos e omissão no aclaramento de certas conseqüências jurídicas, o que certamente deixou lacunas a serem preenchidas pela praxis e pelos aportes da doutrina e dos tribunais.

No entanto, é fora de dúvida que a Lei n. 9099/95 implantou no Brasil um novo sistema de justiça pactual, não conflitiva, tendente a estabelecer o consenso para a composição dos litígios, sempre mediante o efetivo acordo entre as partes processuais, com mediação judicial. A nova lei visou, também, a estabelecer uma política criminal individualizante, que permite de logo a exclusão do processo e de suas agruras, em benefício do acusado, adotando também uma lógica de responsabilização e reintegração do agente do fato delituoso, aproximando-o da mesa do juiz, onde se dará a composição civil ou a transação penal lato sensu (a expressão aqui empregada, abrange os dois institutos).

O que nos traz ao campo da discussão é, especificamente, a natureza jurídica do instituto previsto no art. 89 da Lei n. 9099/95. Trata-se realmente de um direito subjetivo do acusado ou de uma via alternativa à persecução penal posta à disposição do Ministério Público? As considerações a serem expendidas aplicam-se mutatis mutandi à transação penal stricto sensu, prevista no art. 76 da lei especial, que, ao nosso sentir, é legítima manifestação do direito de ação penal, em nova roupagem.

Eis o texto da lei:

"Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer denúncia, poderá propor a suspensão condicional do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)".

Como se disse, a Lei n. 9099/95 é fruto do art. 98, inciso I, da Constituição Federal, que, prevendo um procedimento oral e sumariísimo, mitigou o princípio da obrigatoriedade da ação penal ao determinar a criação de juizados especiais competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de infrações penais de menor potencial ofensivo, permitindo a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

Transação nada mais é que um acordo, ajuste ou pacto que dirime um litígio, mediante concessões recíprocas das partes interessadas, de forma a obter a autocomposição dos interesses em conflito. É negócio bilateral por excelência. No sistema preconizado, está sempre sujeita ao controle judicial. O magistrado assume a função de mediador da avença. A mediação é a nova tarefa do juiz no sistema de justiça pactual, que tende a facilitar a consecução da paz social, pois são as partes que se compõem espontaneamente, fazendo prevalecer o bom senso. Portanto, não se trata mais de impor uma decisão que sujeite os interesses de uma parte aos da outra, como acontecia e ainda acontece no modelo de justiça conflitiva.

O Ministério Público, por sua vez, "aderirá à justiça consensual, agindo dentro da lei e apresentando, sempre que possível, suas propostas de transação penal, disposto a discuti-las com o juiz, os conciliadores e a parte contrária" (in Juizados especiais criminais. Ada Pellegrini Grinover et alli. São Paulo: RT, 1996, p. 22). Por isso, é necessário que os membros do Parquet, como de resto todos os demais operadores do Direito, assumam uma nova postura processual e abandonem a mentalidade meramente repressiva, para que, sempre que possível, se busque o consenso.

Sem dúvida, a Lei n. 9099/95 quebrou a rigidez do princípio da obrigatoriedade, permitindo que o Ministério Público possa dispor da ação penal pública em determinadas hipóteses, taxativamente previstas em lei, por exemplo quando faz proposta penal alternativa (art. 76), agindo com exclusividade.

No entanto, apesar dos termos claros da lei e da certeza de seu propósito consensual, têm sido vistos julgados e textos doutrinários contrários ao espírito conciliatório da lei, na medida em que admitem propostas transacionais ex officio ou mediante a iniciativa do autor do fato, excluindo-se o Ministério Público do desejado consensus.

Segundo ALBERTO ZACHARIAS TORON, "Em face dos termos claros da lei, a melhor intelecção, ainda que não represente a melhor solução, é de se manter a faculdade de propor a suspensão nas mãos do Promotor de Justiça" (in Drogas: novas perspectivas com a lei 9099/95", Boletim IBCCrim, novembro/95, p. 6). Discordamos do ilustre jurista no periférico, mas com ele concordamos no substancial. A proposta de suspensão é uma opção institucional do Ministério Público, e, como tal, a solução alvitrada por parte da comunidade jurídica, delimitando seu conteúdo de facultatividade, é a melhor solução, pois valoriza o sistema acusatório e acaba por fortalecer a posição do juiz-garantidor, ao afastá-lo da condição de parte processual.

Assim, de início, deve-se fixar noção de que as propostas dos arts. 76 e 89 da Lei 9099/95 são faculdades cuja legitimidade ativa cabe, com exclusividade, ao Ministério Público, situando-se ambas dentro do espaço de discricionariedade administrativa conferido à instituição, como adiante se examinará.

No artigo A lei 9099/95 e a proposta de suspensão (in Justiça Penal 4. São Paulo: RT, 1997, p. 204), IRAHY BAPTISTA DE ABREU registra dois acórdãos de tribunais paulistas que sufragam o entendimento da exclusividade do Ministério Público no manejo da proposta do art. 89 da lei comentada:

"Caso o parquet não entenda preenchidos os requisitos retromencionados, não há como impingir-lhe a proposta, eis que, como já dito anteriormente, cuidando-se de ato consensual, indispensável a manifestação de vontade de ambas as partes, não podendo o Estado-juiz substituir-se ao Estado-Administração, para o fim de propor a suspensão condicional da ação" (TJ-SP, HC 204.579-3/0, 4ª Câm. Criminal, Rel. Des. Sinésio de Souza, j. 19.03.96)"

"(..) Não vejo como permitir ao Juiz que decida ex officio. O espírito da Lei 9099/95, no caso, é o da transação. Acordo entre acusador (que faz a proposta) e o acusado (que a aceita)" (TACrim-SP, Correição parcial n. 1.012.835-9, 12ª Câmara, v. u., j. 17.06.96).

Tais decisões seguem a mens legis e não merecem reparo. Os autores do projeto de lei n. 1480/89, que deu origem à parte criminal da Lei n. 9099/95 (essa parte criminal foi encampada pelo Dep. MICHEL TEMER, a partir do anteprojeto de uma comissão de juristas; a parte cível é de autoria de NELSON JOBIM e o substitutivo, englobando as duas, foi elaborado pelo Dep. IBRAHIM ABI-ACKEL), deixaram bem claro na exposição de motivos que se estava adotando o princípio da "discricionariedade controlada", com a proposta de suspensão partindo do Ministério Público e ficando sujeita à aceitação do acusado e à homologação do juiz.

O juiz ANTÔNIO CARLOS DOS SANTOS BITENCOURT, no seu Justiça Penal Pactuada (Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1997, p. 25/26 e 50), diz que a Lei n. 9099/95 "inaugura um novo modelo de justiça consensuada para as infrações de pequeno potencial ofensivo e para as de média lesividade (estas para as quais reservou a suspensão condicional do processo), permanecendo a indisponibilidade da ação penal pública para os crimes de grave ofensa à ordem jurídica. (...) Derruba-se, enfim, o mito da indisponibilidade absoluta da ação penal pública cujos postulados são uma hipocrisia legal".

E tem razão o insigne magistrado, pois o art. 2º da Lei n. 9099/95 estatui, como princípio geral, que o processo sumariíssimo nela previsto deve buscar "sempre que possível, a conciliação ou a transação".

A contrario sensu, deve-se entender que a conciliação e a transação nem sempre são possíveis. Daí dizer-se que não se poderá jamais impor uma transação ao Parquet, a pretexto de assegurar suposto direito subjetivo do acusado, pois a própria lei admite a hipótese de a transação não ocorrer, dando mostras de sua afeição à disponibilidade e ao consenso.

O mesmo se diga a respeito do art. 62 da lei especial, que objetiva "sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade". Novamente a locução "sempre que possível", a revelar que, quando não for possível resolver o litígio pela composição, pela transação ou pela suspensão condicional, é evidente que não poderá o juiz obrigar as partes a isso, uma vez que a norma prevê a hipótese negativa, ou seja, prevê a possibilidade de não se obter de logo a composição civil e a aplicação de pena não privativa de liberdade. É a lógica do razoável, de que fala Recasén-Siches.

Confirma essa lógica o art. 72 da lei, que determina que, na audiência preliminar, "o juiz esclarecerá sobre a possibilidade de composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade". Mais uma vez realça-se a possibilidade, a faculdade, a não-obrigatoriedade da composição e da transação, informando todo o sistema da Lei n. 9099/95.

Reforçada fica, com tudo isso, a idéia de harmonização trazida pela nova lei despenalizadora, que busca, por vocação, a conciliação, a composição e a transação, e introduz no sistema um novo fator: o da discricionariedade da ação penal, já que a proposta de pena e a de suspensão são atos dispositivos de conteúdo volitivo, cujo conteúdo e mérito são estipulados pelos interessados, para homologação judicial, evidenciando a bilateralidade.

Por depender do acordo de vontades de partes adversas que convergem (e aí está sua natureza bilateral), não se podem ver, nos arts. 76 e 89 da Lei de Juizados Especiais - LJE, direitos subjetivos do acusado. Na lição de LUIZ FLÁVIO GOMES, no primeiro instituto, há uma conformidade penal, e no segundo uma conformidade processual. Tornar conforme é conciliar; ser conforme é ajustar-se, é resignar-se com as concessões parciais.

Em suma, neles há sempre transação, porque o acusado e o Ministério Público cedem, tendo em conta a incerteza quanto ao resultado do processo, e "conformam-se" com as limitações que se impõem.



3. DIREITO SUBJETIVO versus EXPECTATIVA DE DIREITO

Os que sustentam a existência de um direito subjetivo entendem que a suspensão condicional do processo pode levar à extinção da punibilidade, e argumentam que aí estaria um dos fundamentos desse suposto direito.

O ponto de vista é frágil e não resiste a uma singela comparação. Ora, sempre, em qualquer processo, há a expectativa da extinção da punibilidade. Desde que se consuma o fato, passa a correr a prescrição e pode surgir ensejo a uma das outras modalidades extintivas do jus puniendi estatal previstas art. 107 do Código Penal.

Conseqüentemente, não se pode confundir expectativa de direito com direito subjetivo. Exemplifica-se. No âmbito do Direito Administrativo, é ponto pacífico que a mera aprovação em concurso público não gera direito à nomeação. Trata-se de uma simples expectativa, que não tem proteção por ação constitucional. HELY LOPES MEIRELLES ensina que "Ainda mesmo a aprovação no concurso não gera direito absoluto à nomeação, pois que continua o aprovado com simples expectativa de direito à investidura no cargo ou emprego disputado" (in Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 17ª edição, p. 376), tudo porque o provimento do cargo fica à inteira discrição da Administração Pública, segundo os seus critérios de conveniência e oportunidade.

Da mesma forma, só porque a suspensão do processo gera uma expectativa de direito à extinção da punibilidade, não se pode dizer que ali surgiu um direito subjetivo, que reclame proteção judicial imediata ou antecipada. É que mesmo essa expectativa é remota e incerta. O direito à extinção da punibilidade apenas se configurará se as condições da suspensão processual forem inteiramente cumpridas pelo réu, o que já cria uma ponderável incerteza e desnatura a decantada liquidez desse "direito".

O estranho raciocínio, acima exposto, pode levar o réu a alegar hipotético direito subjetivo à prescrição, antes que seu termo ocorra, legitimando, por exemplo, qualquer resistência ao andamento normal de ações penais, como se dá com os famosos "recursos de gaveta", prática bem usual no foro e já consuetudinária.

Ou por outra, a elucubração ora criticada pode levar à defesa de um improvável direito subjetivo que obrigue a vítima a não representar contra o indiciado ou suspeito, já que o acusado teria direito subjetivo à decadência, antes de sua real implementação, que se dá justamente com o desinteresse voluntário do ofendido.

Aceitar a tese da existência de um direito concreto e incondicional contraria o sistema da lei e a própria tradição do direito penal, que sempre previu em prol do réu certos favores do Príncipe, como a graça e o indulto. Jamais se defendeu que tais institutos constituem direitos subjetivos, embora também levem à extinção da punibilidade. "O indulto e a graça no sentido estrito são providências de ordem administrativa, deixadas a relativo poder discricionário do Presidente da República, para extinguir ou comutar penas" (JOSÉ FREDERICO MARQUES, Tratado, vol. 3/425. São, assim, meras expectativas de direito, não sendo autoexecutável o decreto presidencial que os concede.

É por essas e outras razões que se deve afastar a idéia de que a suspensão é um direito subjetivo do acusado. É mais um "favor administrativo", manejado com exclusividade por órgão do Estado-Administração, dentro dos limites da discricionariedade, mas sob controle de legalidade pela autoridade judiciária.



4. A DESCABIDA POLÊMICA VERNACULAR

CHARLES BERLITZ (in Línguas do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 153), relata-nos um incidente lingüístico ocorrido na Organização das Nações Unidas - ONU, durante as discussões do processo de descolonização da África, em decorrência de uma tradução simultânea mal realizada. E tudo por causa de uma singela palavra:

"Um representante do minguante Império Britânico lia um relatório de atividades de uma região sob custódia do Reino Unido durante a Assembléia. Quando falava das tentativas do pessoal do lugar (...) para combater as pragas de besouros-rinocerontes, o intérprete de russo compreendeu a palavra ‘rinoceronte’, mas não ‘besouro’. O delegado soviético, portanto, interrompeu para perguntar como os nativos podiam equipar-se para resistir à invasão de inumeráveis rinocerontes. Recebeu a resposta de que o pessoal do lugar recebia vassouras e baldes de produtos químicos. Isso pareceu ao representante soviético não só armamento insuficiente para combater o ataque de hordas de rinocerontes, mas também prova da má vontade colonialista em distribuir armas de fogo aos africanos para proteção contra o ataque de animais ferozes. ‘Ao mesmo tempo’, contrapôs o delegado soviético, ‘restam apenas algumas centenas de rinocerontes na África; por que deveriam ser exterminados?’ A isso replicou o delegado britânico: ‘Ah, não! Há muitos milhões deles. Todas as primaveras eles voam do norte em grandes enxames e comem as cascas das árvores’. A essa altura a discussão já havia se complicado tanto que a sessão precisou ser suspensa até que a palavra besouro foi localizada e - finalmente - aposta a rinoceronte".

Percebemos acima a que incoerências nos leva uma palavra mal compreendida... É o que vem sendo visto no que pertine ao sentido do verbo "poder" na Lei n. 9099/95 e às conseqüências dessa opção para a compreensão dos institutos nela tratados.

Toda essa celeuma, que nos lembra a Babel da terra de Senaar, representa apenas uma formidável perda de tempo e de esforço, que poderiam ser melhor empregados na discussão de assuntos mais urgentes e mais relevantes do ponto de vista sócio-jurídico. No entanto, como se lançou o tema e para que as inovações da Lei de Juizados Especiais - LJE não sejam vãs, enfrenta-se a polêmica, na tentativa de contribuir para dissipa-la, porque, como certa feita disse o saudoso Ministro NELSON HUNGRIA HOFBAUER, é somente do entrechoque de idéias e opiniões contrárias, é que surge a hipótese feliz, a faísca que se torna chama e traz luz às controvérsias.

Mas para que isso ocorra, é preciso, antes, ficarmos em paz com o idioma (a "nossa língua portuguesa") e com a exegese das normas, recordando que, na interpretação, devemos sobretudo considerar o que está escrito, e não o que "deveria" estar escrito ou o que "gostaríamos" que estivesse.

O professor JOÃO JOSÉ CALDEIRA BASTOS (in Curso Crítico de Direito Penal, Florianópolis: Obra Jurídica, p. 19) explica que "os intérpretes, de seu turno, oficiais e oficiosos, não conseguem interpretar sem legislar (...). Não custa aduzir que as práticas sociais e políticas, os costumes da administração, os manuais de doutrina e os repertórios de jurisprudência retratam sérias divergências interpretativas e flagrantes decisões contra a lei, inclusive em matéria criminal".

Muito dessa realidade decorre, sem dúvida, da quizília dos juristas com a língua portuguesa.

PAULO SÉRGIO CORNACCHIONI (in Justiça criminal x verbo poder. Boletim IBCCrim n. 59 - out/97, p. 10), aduz, com muita propriedade, perspicácia e senso de humor, que é costumeira a queixa do jurista contra a "edição de tantas leis tecnicamente deficientes. Mas o legislador nada reclama do jurista, malgrado por vezes tenha motivos de sobra para fazê-lo. Com efeito, há décadas, quase toda vez que o legislador diz ‘pode’, o jurista teima em ler ‘deve’. (...) Cuida-se de antigo descompasso entre o que escreve o legislador e o que lê o jurista. O problema, de início, convida a cogitar de uma possível reforma lingüística, ainda pouco conhecida, que quiçá haja modificado a significação do verbo ‘poder’ (...) Mas a suposição não seria mesmo razoável, já que em outros tantos dispositivos o legislador diz ‘poderá’ (...) e para espanto geral o jurista interpreta o vocábulo como ‘poderá’ mesmo (...) A falha de comunicação entre a lei e o jurista precisa, contudo, ser entendida e resolvida. Afinal, como é que o legislador fará quando quiser realmente estabelecer uma faculdade (um ‘poder’) e não uma obrigação (um ‘dever’)?".

Ao dar à LJE a redação atual, quis o legislador conferir uma faculdade ao Parquet para fins de política criminal, ou impor um dever à Instituição Ministerial, ao qual corresponde um direito subjetivo do réu?

Assim visto o problema, parece-nos de fácil solução, pois, de logo, a letra da lei nos remete à busca do sentido do verbo "poder". Basta uma consulta ao Aurélio, que apresenta as seguintes acepções para "poder": ter a faculdade de; ter possibilidade de, ou autorização para; ter oportunidade de; faculdade, possibilidade; capacidade; aptidão.

Há outros significados, mas nenhum deles é sinônimo do sentido inventado pela doutrina: o de "dever".

Os que lidam com interpretação de textos e estudos gramaticais costumam valer-se de um arranjo de palavras para demonstrar a importância do exato uso do idioma, especificamente, no que pertine à pontuação. Um general poderia obter resultados completamente diversos em uma ação de campo se dirigisse as seguintes ordens ao seu exército:

"FOGO. NÃO ARRASEM A CIDADE"

"FOGO NÃO. ARRASEM A CIDADE"

Se conseqüências tão díspares podem advir da mera relocação de um ponto de seguimento numa frase, aquilatemos o que ocorre quando um verbo (que é quase sempre o termo nuclear de uma oração) tem o seu sentido alterado pelos intérpretes. Certamente, pode-se "arrasar uma cidade", ou, o que é mais fácil, destruir um sistema jurídico, desatendendo a ordem direta, clara e estratégica do legislador.

É absolutamente sem sentido a interpretação do verbo "poder" como "dever". Em mais de uma oportunidade, o legislador efetivamente impôs aos órgãos estatais o cometimento de uma função, tal como (só para ficar no que nos interessa) com o Ministério Público, ao dispor no art. 24 do CPP que a ação penal pública "será promovida", deixando bem claro que a iniciativa é obrigatória, que o Parquet promoverá a actio.

De igual modo (impondo uma conduta), agiu o Parlamento quando determinou que o juiz, expirado o prazo da suspensão condicional do processo sem revogação, "declarará extinta a punibilidade" (§5º, do art. 89). Como se vê, o legislador não disse que o juiz "poderá declarar" extinta a punibilidade. Disse "declarará", provando conhecer bem o idioma e suas nuanças flexionais. E aqui, sem a menor sombra de dúvida, após o cumprimento das condições impostas, surge um direito público subjetivo para o acusado.

Diferentemente agiu o legislador ao escrever que o Ministério Público poderá propor a suspensão condicional do processo, dando corpo a uma faculdade a ser exercida pelo Parquet no interesse público de repressão à criminalidade e de efetivação da justiça concreta.

Para melhor compreender a extensão do problema e melhor responder à pergunta formulada (direito subjetivo?), dando a exata exegese dos arts. 76 e 89 da Lei n. 9099/95, deve-se apreciar uma circunstância histórico-legislativa que a precedeu, qual seja, a extensa discussão doutrinária e jurisprudencial que se implantou nos meios forenses a respeito do sentido do verbo "poder", usado, por exemplo, no art. 77 do Código Penal e no art. 156 da Lei n. 7210/84, que se referem ao sursis, bem como no art. 121, §1º, do CP, que cuida do homicídio privilegiado.

IRAHY BAPTISTA DE ABREU é de opinião de que "Seria insultar a inteligência dos que a redigiram entender que erraram na utilização do verbo, mesmo após a conhecida discussão sobre a utilização dele no lugar do ‘deverá’. Se na elaboração do estatuto processual penal vigente, essa divergência podia ter lugar, impossível aceitar que, hodiernamente, alguém ainda se utilize do ‘poderá’ com o sentido de ‘deverá’, mesmo sabendo da pendência doutrinária e jurisprudencial que grassou nessa matéria" (op. cit., p. 206).

Depois desse longo e cansativo debate, firmou-se o entendimento de que onde a lei disser "pode", o jurista ou exegeta lerá "deve", por tratarem tais casos de direitos subjetivos dos réus. Todavia, tal posicionamento parece-nos inteiramente equivocado, e ainda hoje há quem o conteste, insurgindo-se contra essa injustificável limitação ao livre convencimento do magistrado, e assegurando que o sursis é instrumento de individualização da pena, deferido ao juiz.

DAMÁSIO DE JESUS (in Código penal anotado. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 224), quanto à natureza jurídica do sursis do art. 77 do CP, ensina que "O instituto, na reforma penal de 1984, não constitui mais incidente da execução nem direito público subjetivo de liberdade do condenado (...). É medida penal de natureza restritiva da liberdade. Trata-se de forma da execução da pena. Não é um benefício. Tem caráter sancionatório".

DAMÁSIO assinala ainda que a expressão "poderá" empregada no caput do art. 77 e no §2º "deve ser interpretada no sentido de que a lei confere ao juiz a tarefa de, apreciando as circunstâncias do caso concreto em face das condições exigidas, aplicar ou não a medida. Assim, ele ‘poderá’, diante do juízo de apreciação, aplicar o sursis se presentes os requisitos; ou ‘poderá’ deixar de fazê-lo, se ausentes".

A propósito, veja-se o que estatuem os §§3º e 4º do art. 89 da Lei n. 9099/95 a respeito da revogação da suspensão do processo. Cuidam os parágrafos, respectivamente, da revogação obrigatória e da facultativa.

Quanto à primeira (obrigatória), o legislador usou a expressão determinante "será revogada". Referindo-se à segunda forma de revogação (a facultativa), valeu-se dos termos "poderá ser revogada". Com tal redação, ficou evidenciada a intenção do Parlamento de criar uma obrigação (vinculação) e uma faculdade (discricionariedade) para o juiz; e mostrou-se que o legislador fez o uso corrente da língua portuguesa, nela não inovando.

Por que, então, no caput do mesmo artigo 89, o legislador agiria diferentemente no trato com o idioma pátrio? Se usou os verbos "poderá propor" é porque quis significar facultatividade, que se confirma no poder conferido ao juiz, nos mesmos moldes, de revogar ou não a suspensão condicional, na forma do §4º desse cânone.

Se não for admitida essa simetria vernacular, que afirma a discricionariedade do Ministério Público (e, por outra via, valoriza a independência e o livre convencimento do juiz), deve-se concluir que, por força da isonomia, a acusação pública tem direito subjetivo à revogação da suspensão, nas hipóteses do §4º do art. 89. Ou seja, o juiz estará obrigado a revogar a suspensão se o acusado vier a ser processado no curso do prazo por contravenção ou se o acusado descumprir condição legalmente imposta pela autoridade judiciária.

Seguindo-se esse raciocínio (que busca somente ressaltar o absurdo do entendimento que transforma o "poder" em "dever"), toda revogação será obrigatória; não haverá revogação facultativa, por surgir sempre um direito subjetivo do Ministério Público à invalidação da sustação processual.

Da mesma forma, a expressão "poderá especificar outras condições", prevista no §2º do art. 89 resolver-se-á em dever, vale dizer, o juiz estará sempre obrigado a especificar condições adicionais para a suspensão. Não se trataria, pois, de uma faculdade judicial, mas de um dever cujo cumprimento pode ser exigido pelo Ministério Público, como titular de um outro direito subjetivo, lendo-se ali, para a satisfação dos alquimistas do Direito, que o juiz "especificará" outras condições.

E aí merece crítica o respeitado professor LUIZ FLÁVIO GOMES. Sustenta ele que o verbo "pode" no caput e no §1º do art. 89 da Lei n. 9099/95 é "deve", ao passo que o "pode" do §2º, do mesmo artigo, é "pode" mesmo! Em sua multicitada obra (p. 181), diz o acatado jurista que "O juiz, conforme o caso concreto, especificará ou não outras condições. É uma faculdade".

Ora, por uma mera questão de bom senso e simetria, deve-se concluir que onde o legislador valeu-se do "pode" estava criando mesmo uma faculdade. Ademais, como faria o Parlamento se quisesse (como quis) criar uma faculdade ao Ministério Público, senão usando o polêmico verbo?

Evidentemente, tudo isso é absurdo e o alerta só serve para reclamar a atenção dos doutrinadores que vêm sustentando esse teorema bizarro, que transfigura uma coisa noutra sem a menor cerimônia, retirando as pétalas de lógica da "última flor do Lácio". Pensemos que dificuldades teria um Champollion do futuro para decifrar essa "pedra da Rosetta" jurídica.

A que vêm tais assertivas? A resposta é simples. Vêm reafirmar que a LJE, ao dispor que o Ministério Público "pode", está dizendo que "pode" mesmo, i. e., está atribuindo uma faculdade a essa instituição. E não poderia ser diferente. A ilustre comissão de juristas que participou do processo de gênese da Lei n. 9099/95 não deixaria de atentar para uma situação tão óbvia. Certamente, todos aqueles que contribuíram para o exsurgimento da LJE tinham conhecimento dessa tortuosa questão vernacular e não dariam ensejo a uma nova e inútil polêmica.

Se tais estudiosos (Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, entre outros) permitiram que na redação dos arts. 76 e 89 permanecesse o verbo "poder", é porque era isso mesmo o que pretendiam regular: uma faculdade, uma possibilidade, uma autorização para propor ou não.

Tal realidade mostra-se com mais força quando nos lembramos de que o anteprojeto final da Lei n. 9099/95 foi fruto de um longo e amplo debate entre diversos atores jurídicos, sempre tendo como referência institutos similares no Direito Comparado.

Seria suficiente dizer que in claris cessat interpretatio, pois não se tem nos arts. 76 e 89 uma zona cinzenta. O legislador foi claro. Diria "proporá", e não "pode propor", se o quisesse. Mas não o quis. Por isso não há campo à ambigüidade.

Segundo o professor J. J. CALDEIRA BASTOS somente as "zonas cinzentas" da legislação justificam as inúmeras divergências doutrinárias e jurisprudenciais detectadas no sistema. E pergunta: "Caberia no entanto perguntar que gênero de palavras usam os analistas da linguagem? Por que pretendem que suas explicações podem tudo aclarar, recusando porém a mesma chance aos órgãos legiferantes?".

Parece-nos então que chegou a hora de dar razão ao legislador. Não se pode recorrer a uma ficção contra a língua portuguesa (que afinal é o idioma no qual devem ser escritos os textos legais, conforme o art. 13, caput, da Constituição) para extrair da norma um sentido (e um valor) que ela não tem. Verdadeiramente, o que quiseram comunicar os legisladores? O que quiseram dizer quando usaram o verbo "poder"? Valeram-se do sentido usual da palavra, sem dúvida, e não daquele que resulta de uma interpretação jurisprudencial longeva e incongruente. Pensar o contrário, data venia, é estuprar o idioma.

Ora, o verbo "poder" tem apenas um sentido corrente. É unívoco e não plurívoco. Por mais respeitáveis que sejam as opiniões que tentam extrair da lei um significado oculto, supostamente acessível apenas aos letrados, é difícil explicar ao homem comum (aquele a quem a lei se dirige) que o que se lê, não é o que se quis dizer. Talvez somente o amor à polêmica justifique o entendimento tortuoso, que contribui para criar um imenso abismo entre a teoria e a prática e para distanciar o homem comum das vestais e dos sacerdotes do Direito.

Como na antiga Igreja das verdades ocultas e dos dogmas insolúveis, não se fala português. Entre os juristas, fala-se possivelmente um dialeto qualquer do latim ou um bizarro patois, contextualizando uma linguagem jurídica complicada e inacessível, quando o que a sociedade exige é simplicidade e objetividade e não hermetismo.

Para onde vai o Direito, se continuar a trafegar por estradas tão sinuosas, mesmo no que é simples? Certamente para o abismo já referido, onde, como a mítica Torre de Babel, acabará por se destroçar, porque inacessível aos que andam pela planície. A lei não é feita para o deleite dos juristas, mas para o povo, e é também essa a Justiça que se quer.

Afinal, em que se fundamenta a mágica de transformar o "pode" em "deve"? Não se sabe. Trata-se certamente de um desses mistérios insolúveis do mundo, cuja solução ficará para as calendas. Uns argumentam, sem razão, que o seu suporte jurídico está na aplicação da teoria da despenalização, que é absolutamente aceitável para delitos de bagatela, mas não explica a inaudita transubstanciação verbal.

O que resulta do sistema da nova LJE em cotejo com o art. 129, inciso I, da Constituição Republicana, é a certeza de que os institutos dos arts. 76 e 89 representam instrumentos de política criminal a serem manejados pela Justiça Pública. A pergunta é: quem pode manejá-los? O Ministério Público. Não adianta construir no vazio, elocubrar sobre o nada, criar artifícios, para refutar essa realidade. O que deve fazer o intérprete?

"Não lhe compete, por impossível, arrancar das palavras sentidos ontológicos que no fundo, isto sim, lhe são fornecidos pela vontade final de quem se encontra eventualmente no exercício do poder de ação, de decisão. Não lhe cabe esboçar teorias dogmáticas substitutivas da realidade jurídica desagradável a seus olhos". (J. J. CALDEIRA BASTOS, op. cit., p. 64).

VOLNEI CARLIN, citado por JOÃO JOSÉ CALDEIRA BASTOS (op. cit., p. 30), conclui que "Em síntese, o direito deve adaptar-se aos fatos. Para tanto, aconselhável se examine, também, a origem, o alcance e a finalidade da lei, sempre diante da simples exigência do realismo". Portanto, adaptemo-nos, todos, aos fatos. Os tempos do consenso no processo penal são chegados. É esse o espírito da lei.

E, falando em espírito, ilustremos nosso raciocínio com mais um relato de BERLITZ (CHARLES. in As línguas do mundo. p. 31), acerca das drásticas conseqüências que incompreensões dogmáticas podem acarretar para as corporações nas quais elas se implantam e vicejam:

"Milhares de pessoas foram mortas ou torturadas no império greco-romano de Bizâncio por causa de uma letra de diferença entre a grafia de duas palavras-chaves numa controvérsia religiosa. A discordância foi a respeito da natureza de Cristo e se chama a "a heresia ariana", remetendo à facção perdedora, os seguidores de Ário. Os arianos insistiam em que a natureza de Cristo é descrita pela palavra grega homoisian, significando que o Criador, o Redentor e o Espírito Santo são de natureza ‘semelhante’, enquanto a crença ortodoxa é de que são homoösian, da ‘mesma’ natureza. O conflito acarretado por essa diferença é típico das lutas internas religiosas que afetaram o Império Romano do Oriente, enfraquecendo-o cada vez mais e finalmente tornando possíveis as sucessivas invasões pelos árabes muçulmanos e a vitória final dos turcos otomanos, que conquistaram Constantinopla em 1453, pondo fim ao Império do Oriente".

O fato histórico aplica-se como uma luva à polêmica que enfrentamos. Afinal de contas, para muitos, o Direito é uma religião repleta de dogmas e quem se recusa a aceitá-los, dada a sua ilogicidade, corre logo o risco de ser acoimado de herege. Mas que não precise haver tantos juristas "mortos", quantos foram os mártires arianistas, nessa batalha pelo "poder" e pelos seus significados. Essa babel lingüística deve ficar para trás, a fim de que jamais se confunda novamente o que é "igual" com o que é apenas "semelhante", ou, que é pior, um besouro com um rinoceronte.



5. ORIGENS DO INSTITUTO E A POSIÇÃO DO PARQUET

Mas alguns podem objetar que "a letra mata, e o espírito vivifica", para sustentar que a interpretação gramatical do texto legal nem sempre é a melhor, e que se deve buscar o "espírito" da norma. Também aí ter-se-á uma resposta indicativa de que se trata de poder discricionário (mas não absoluto, nem arbitrário) do Ministério Público. E, para isso, basta lembrar que a lei colheu inspiração no princípio do consenso entre as partes processuais.

Para melhor abordagem do tema, é válido que busquemos em FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (in Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 20a. edição, 1998, p. 167/168) algumas notas quanto à interpretação das normas.

Segundo o ilustre professor, a interpretação gramatical: "é a que se inspira no próprio significado das palavras". E serve ao nosso entendimento, ao citar FENECH: "em casos de dúvida entre os vários significados de uma frase ou palavra, o intérprete gramatical deve aceitar o significado comum (significatio vulgaris), salvo se puder demonstrar um uso lingüístico especial (significatio particularis)".

Já na interpretação lógica, busca-se "precisar a genuína finalidade da lei, a vontade nela manifestada". No caso proposto, a genuína finalidade da lei é a de promover o consenso e de mitigar o princípio da obrigatoriedade.

Na sistemática, "o intérprete deve colocar a norma em relação com o conjunto de todo o Direito vigente e com as regras particulares de Direito que têm pertinência com ela". Pode-se, inclusive "lançar mão da analogia e dos princípios gerais do Direito". (p. 169). É o que se tem feito em relação à Lei n. 9099/95, posta sob o pálio da Constituição Federal e em cotejo com os princípios do sistema acusatório, entre nós adotado.

Analogia "é um princípio jurídico segundo o qual a lei estabelecida para um determinado fato a outro se aplica, embora por ela não regulado, dada a semelhança em relação ao primeiro. Supõe, como diz Maggiore: a) a falta de uma disposição precisa no caso a decidir; b) a igualdade de essência entre o caso a decidir e o caso já regulado" (p. 173). As semelhanças das hipóteses tratadas levam à aplicação analógica do art. 28 do CPP aos casos de recusa ministerial a uma proposta de transação lato sensu.

Da aplicação conjunta dessas técnicas interpretativas, surge, realçado, um dos princípios inspiradores da lei sob comento: o da consensualidade, que inaugurou no Brasil a justiça penal pactuada, tal como já existe nos Estados Unidos, com o instituto da plea bargaining (bargain é negociação).

A plea bargaining consiste numa transação que abrevia o processo, eliminando a colheita da prova, suprimindo a fase de debates entre as partes. O agente do fato ilícito admite sua culpabilidade, em troca de benefícios legais. O objetivo do instituto é garantir a elucidação de crimes, assegurar uma rápida punição aos autores de crimes e diminuir a carga de trabalho no Judiciário. LUIZ FLÁVIO GOMES defende que a transação penal aproxima-se mais da guilty plea que da plea bargaining, pois naquela há mera conformidade à pena proposta pelo acusador, quando o réu declara-se culpado, ao passo que nesta há verdadeira barganha, com ampla possibilidade de transação.

Segundo ANTÔNIO JOSÉ FEU ROSA, a plea bargaining "consiste numa faculdade conferida pela lei ao Ministério Público, permitindo-lhe fazer acordo com os réus, transigindo, desistindo da ação penal e até mesmo conceder-lhes imunidade, para que confessem detalhes de crimes, apontem cúmplices, chefes, planos, etc." (in Direito penal concreto).

Na suspensão condicional do processo do direito brasileiro, o espaço reservado ao consenso é limitado, cingindo-se apenas ao seguimento ou sustação do processo, mediante certas condições.

Na Itália, existe o patteggiamento, introduzido no sistema processual penal em 1981, estando hoje previsto no art. 444 do Código de Processo Penal, na seguinte forma:

"Art. 444. O imputado e o Ministério Público podem requerer ao juiz a aplicação, na espécie e na medida indicada, de uma sanção substitutiva, diminuída em até um terço, ou ainda de uma pena detentiva quando esta, tomando-se em conta as circunstâncias e diminuída até em um terço, não supera dois anos de reclusão ou detenção, só ou conjuntamente com a pena pecuniária".

No §6º prevê-se que "O Ministério Público, em caso de dissenso, deve enunciar as razões". Segundo CARLOS EDUARDO DE ATHAYDE BUONO e ANTÔNIO TOMÁS BENTIVOGLIO (in A reforma processual penal italiana. São Paulo: RT, 1991, p. 89), "a determinação do Ministério Público deve ser discricionária e não arbitrária, ou seja, para negar o seu consenso devem existir razões válidas, que devem ser externadas".

Esses dois institutos (plea e patteggiamento) são os que mais se aproximam da idéia da suspensão condicional do processo brasileira, que também estabelece uma faculdade ao Ministério Público.

O direito processual penal espanhol prevê algo semelhante, no procedimiento penal abreviado, decorrente da reforma da Ley de Enjuiciamiento Criminal, ocorrida em 1988. O procedimento abreviado aplica-se aos delitos cuja pena privativa de liberdade é inferior a nove anos.

O professor JOSÉ MARÍA ABAD LICERAS, da Universidad Europea de Madrid, in El papel del Ministerio Fiscal en el Proceso Penal Español (artigo publicado na internet em http://www.ambito-juridico.com, em novembro de 1998) informa que:


"Con independencia de otros aspectos, destaca en este procedimiento la aplicación del denominado como principio del "consenso" caracterizado por que el Ministerio Fiscal deberá promover soluciones que, sin apartarse de la legalidad, faciliten el logro de una sentencia a través del acuerdo entre las partes implicadas, especialmente en el ámbito de los delitos menos graves y de menor trascendencia social (como pone de relieve la Circular 1/1989, dictada por la Fiscalía General del Estado)".

O art. 93 do Anteprojeto Frederico Marques previu uma espécie desse procedimento sumariíssimo:

"Art. 93. Ao invés de devolver o inquérito para novas diligências, antes de oferecer denúncia, ouvir o indiciado, o ofendido e as testemunhas. O indiciado será intimado para assistir aos depoimentos, que serão tomados sem a sua presença, se deixar de comparecer".

"§2º. Ao ouvir o indiciado, poderá o Ministério Público propor-lhe a condenação imediata em multa, segundo o previsto no art. 233, 1º e 2º".

Parece-nos apropriada a observação de CAIO TÁCITO de que "não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de Direito". E essa competência (ou atribuição, como queiram), na LJE é do Ministério Público, como se vê da exposição de motivos do projeto de lei. Em nota de rodapé, os autores do anteprojeto da Lei n. 9099/95, identificaram que "a lei não deve preocupar-se com a natureza da proposta do MP, cabendo ao direito científico equipará-la, ou não, à denúncia, na interpretação do princípio nulla poena sine judicio", dando mostras que admitiam a hipótese de ser a proposta, como é, um ato privativo do Parquet, desde que identificada com a denúncia criminal.

AFRÂNIO SILVA JARDIM (in Os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade nos juizados especiais criminais. Boletim IBCCrim n. 48 - nov/96, p. 4), entende que ao propor a transação penal do art. 76 o Ministério Público está exercendo a ação penal pública, ficando claro "porque ao juiz é vedado fazer a proposta de aplicação de pena".

Segundo o autor, essa interpretação teria a vantagem de superar a discussão sobre a violação ou não do princípio nulla poena sine judicio, acrescentando que "descabe dizer que o autor do fato tem direito subjetivo de ser acusado da prática de uma infração de menor potencial ofensivo...".

Quanto à suspensão do processo, AFRÂNIO JARDIMreconhece que o art. 89 mitigou o princípio da indisponibilidade, ao conferir ao MP a faculdade jurídica de propor o sursis processual, sendo vedada a proposta ex officio, porque o juiz não pode dispor do direito de ação que não é seu, não pode impedir que o titular da ação continue a exercê-la, nem pode excluir o Parquet da relação processual trina.



6. DIREITO DE AÇÃO

A exposição de motivos do projeto da LJE faz referência tambémao acolhimento da tendência universal "no sentido da ampliação dos casos de disponibilidade da ação penal", pela adoção do instituto da suspensão condicional do processo, inspirada no princípio da discricionariedade da ação penal.

Proibida a autotutela ou autodefesa, abolindo a vingança privada, surgiu para os particulares o direito de se dirigirem ao Estado para reclamar a aplicação da sanção, compondo o conflito intersubjetivo de interesses de natureza penal.

DELMANTO, no seu Código Penal Comentado, diz que "ação penal é o exercício do direito subjetivo de pedir o pronunciamento jurisdicional para a aplicação da lei penal a um caso concreto (CR/88, art. 5º, XXXIV, a, e XXXV). No caso do Ministério Público há o poder-dever de oferecer denúncia na ação penal pública." (São Paulo: Renovar, 4ª edição, p.162).

DAMÁSIO ensina que "Cabendo ao Estado o jus puniendi, que não é ilimitado mas circunscrito aos fatos típicos e que deve ser exercido nos termos da lei processual, fica ele investido no jus persequendi, ou jus accusationis, ou seja, no direito de ação que não é outro senão o direito à jurisdição. A ação penal é assim o direito de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do direito penal objetivo. O Estado-Administração ingressa em juízo e exerce o direito de ação para obter o julgamento da pretensão punitiva" (op. cit., p. 65). Segundo ele, "em princípio toda ação penal é pública, pois é um direito subjetivo público do titular perante o Estado-juiz", de exigir a prestação jurisdicional.

No entanto, ZAFFARONI (Tratado de Derecho penal, tomo I, p. 33) ensina que não se pode conceber que o Estado goze de um direito subjetivo a incriminar condutas dos seus nacionais. "O Estado não tem um ‘direito’ a incriminar nem a apenar, mas unicamente o ‘dever’ de fazê-lo, porque é um dever que surge de sua própria função, vale dizer, de sua própria razão de existir" (apud Maurício Antônio Ribeiro Lopes, op. cit., p. 101).

Sendo um dever de punir, mais natural se torna perceber que o Estado, por intermédio do Ministério Público, tem a obrigação de prosseguir na ação penal, até final, caso considere, por convicção jurídica, ou por razões de política criminal, que a ação de determinado agente é socialmente reprovável e requer a imposição de uma sanção limitativa do direito de liberdade. Em última análise, o Ministério Público estará defendendo o direito subjetivo dos demais membros da sociedade de viver com segurança e de ver respeitado o direito material penal, com a imposição de uma sanção a quem violou a ordem jurídica.

MIRABETE (in Processo penal. São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 98), esclarece que o direito de ação, ou "direito à prestação jurisdicional estende-se também ao Estado-Administração quando a este não é permitida a auto-execução de determinados atos e funções, como ocorre, por exemplo, com o direito de punir. O jus puniendi ou direito de punir, que é de natureza administrativa, mas de coação indireta diante da limitação da autodefesa estatal, obriga o Estado-Administração a comparecer perante o Estado-Juiz propondo a ação penal para que seja ele realizado. A ação é, pois, um direito de natureza pública, que pertence ao indivíduo, como pessoa, e ao próprio Estado, enquanto administração, perante os órgãos destinados a tal fim" (idem, p. 99).

Assim, a proposta de suspensão processual não é um direito subjetivo do acusado, porque o particular que violou a lei penal não tem o poder de exigir do Estado-Juiz a suspensão do processo sem o consenso e contra a vontade do titular da ação penal, que é quem tem direito à manifestação da jurisdição penal, para subordinar o interesse do autor do fato delituoso ao interesse público estatal.

Não se pode esquecer também o direito da vítima, ou de seus familiares, à repressão, já que o Estado proibiu a vingança privada. Porque também há imanente ao sistema um direito subjetivo à segurança, que está ligado ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Há, portanto, um dilema a ser resolvido: liberdade versus segurança e bem-estar, que somente pode ser solucionado, privilegiando-se o princípio acusatório, que segue o espírito da separação dos poderes preconizada por MONTESQUIEU.

FAUZI HASSAN CHOUKR diz que "Colocar em prática este princípio significa, entre outros pontos de importância, a separação nítida de papéis entre o acusador e o julgador" de forma a garantir o delicado equilíbrio entre a liberdade individual e a necessidade de repressão criminal (in Garantias constitucionais na investigação criminal, São Paulo: RT, 1995, pp. 35/36).

Evidentemente, por ocasião da análise concreta dos institutos do art. 76 e 89 da LJE, não tem aplicação o princípio do favor inocentiae, que dá origem ao in dubio pro reo. É ponto pacífico que, na fase da denúncia, tal como na pronúncia nos feitos do tribunal do júri, vigora o princípio in dubio pro societate. Assim, o que o operador deve ter em mente ao propor ou não a suspensão é a defesa social.



7. AÇÃO PENAL: OPORTUNIDADE E OBRIGATORIEDADE

MAURÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES (in Princípio da oportunidade no sistema penal contemporâneo. Justiça Penal 4. São Paulo: RT, 1997, p. 152), assinala que a Lei n. 9099/95 mitigou o princípio da obrigatoriedade da ação penal "pela paulatina introdução do princípio da oportunidade através da discricionariedade regrada da atuação do Ministério Público".

Essa instituição ganhou grande relevo no sistema constitucional que adveio da Carta de 1988; assumiu um novo perfil e adquiriu elevado status constitucional. Daí MAZZILLI conceituar o Ministério Público como "órgão do Estado (não do governo), dotado de especiais garantias, ao qual a Constituição e as leis cometem algumas funções ativas ou interventivas, em juízo ou fora dele, para a defesa de interesses da coletividade, principalmente os indisponíveis e os de larga abrangência social" (in Regime jurídico do ministério público. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 2).

Também assim se deu com a Lei de Juizados Especiais, que cometeu ao Parquet uma nova função ativa, a de transacionar na ação penal pública, na defesa dos interesses da coletividade.

É sabido que são princípios da ação penal púbica:

a) a oficialidade, pois a ação só pode ser proposta pelo Ministério Público, que é o órgão oficial (CF, art. 129, I).

b) a obrigatoriedade (legalidade), pois o Ministério Público está obrigado a propor a ação penal, desde que estejam presentes os pressupostos necessários à sua instauração, salvo nos casos de transação. Opõe-se ao princípio da oportunidade, que segue a regra minima non curat praetor.

c) a indesistibilidade, pois o Ministério Público não pode desistir da ação penal já proposta.

d) a privatividade, pois, somente havendo inércia do Ministério Público, é que a ação poderá ser iniciada por queixa-crime subsidiária.

Há bastante tempo JOSÉ FREDERICO MARQUES, lembrando Euclides Custódio da Silveira, já admitia que o art. 28 do CPP mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação penal, por fazer referência apenas à expressão "razões invocadas". Não esclarecendo que "razões" são essas, o CPP abre caminho para pedidos de arquivamento por considerações de oportunidade ou conveniência ou insignificância, que, podem ser acolhidos pelo juiz ou pelo Procurador-Geral de Justiça (in Elementos de direito processual penal, vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 338/339).

MIRABETE, em seu CPP Interpretado (São Paulo: Atlas, 5ª edição, p. 66) assevera que o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública "sofreu atenuação, em termos constitucionais, ao prever-se a conciliação e transação mas infrações penais de menor potencial ofensivo, a serem apreciadas por juizados especiais (art. 98, I, CF)". Trata-se de uma exceção ao princípio da obrigatoriedade, abrindo-se campo ao exame da oportunidade e ao exercício da disponibilidade.

Quanto à ação penal, o modelo da conveniência, baseia-se no brocardo minima non curat praetor, que tem relação com o princípio da insignificância, que leva à disponibilidade da ação. Tal princípio opõe-se àquele ora adotado em alguns Estados e cidades norte-americanas, notadamente Nova Iorque, que busca o full enforcement, manifestando "tolerância zero" às infrações penais, mesmo as de menor potencial ofensivo.

MAURÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES, adepto do sistema da oportunidade, faz severa crítica ao princípio da obrigatoriedade, assinalando a hipocrisia de sua adoção rigorosa. Assegura o referido autor, apoiando-se na exposição de motivos da Lei n. 9099/95, que "Na prática, operam diversos critérios de seleção informais e politicamente caóticos. Não se desconhece que, em elevadíssima percentagem de certos crimes de ação penal pública, a polícia não instaura o inquérito, o Ministério Público não oferece a denúncia, esse mesmo órgão e o juiz agem de modo a que se atinja a prescrição" (in Direito penal, estado e constituição, São Paulo: Boletim IBCCrim, 1997, p. 157).

E isso é a mais pura e cristalina verdade. Na maior parte dos casos, é a Polícia Judiciária que dispõe da ação penal, "porque sempre esteve em vigência clandestina o princípio da oportunidade, mas sem qualquer controle da discricionariedade e fragmentado pelos diversos órgãos de atuação estatal, desde a polícia até o Poder Judiciário" (idem).

"Mesmo na França, onde a ação penal é sempre pública, o Procurador da República pode quando julga infundada a notitia criminis, classer sans suite (deixar de iniciar a ação penal), e, como diz Vitu, le classemente sans suite est une mesure d’administration et non un acte judiciare" (LOPES, op. cit.)

Assim, ao exercer as atribuições cometidas ao órgão pelo art. 28 do CPP (mesmo em aplicação analógica), o Procurador-Geral do Ministério Público, não está praticando ato jurisdicional, mas recusando-se a exercer o direito de ação, numa legítima opção administrativa.

O princípio da obrigatoriedade jamais foi e jamais poderá ser levado às últimas conseqüências, como pretende a doutrina filiada à corrente do direito penal máximo, porque há toda uma gama de infrações penais que não são conhecidas, outras que, mesmo conhecidas pelas vítimas, não são comunicadas à Justiça e ao aparelho de enforcement, e outras ainda que, mesmo conhecidas pelo Estado, não são apuradas ou punidas, constituindo o que se denomina "cifra negra".

Daí é porque o princípio da oportunidade vem-se impondo naturalmente, ganha agora foros de legalidade e assoalho constitucional e assume corpo de instituto de direito, traduzindo-se num instrumento da nova política-criminal, superador do sistema da justiça penal conflitiva.



8. SISTEMA ACUSATÓRIO

Segundo GARCIA VELASCO, a pedra de toque do sistema acusatório, entre nós acolhido, é sempre a nítida e rígida separação das figuras do acusador e do julgador.

A Constituição Federal adotou o sistema acusatório, em que há diversidade de órgãos de acusação e julgamento, banindo desta forma o sistema inquisitivo.

É conseqüência do primeiro sistema que só o Ministério Público tem atribuição para emitir juízo de valor sobre as diligências realizadas pela autoridade policial, por ser o destinatário de toda a prova colhida pela Polícia Judiciária. O juízo jurisdicional (por assim dizer) será emitido pelo magistrado ao cabo da instrução criminal, vale dizer, ao final do processo penal.

O processo de tipo inquisitório é a antítese do acusatório. Nele não existe o contraditório, estando afastada a regra da igualdade processual. As funções de acusar, defender e julgar concentram-se na pessoa do juiz, admitindo certas variações, que, no entanto, terminam por comprometer a imparcialidade do juiz.

A propósito, MAURÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES aduz que "O corolário fundamental da dignidade da pessoa humana como pressuposto do Estado Democrático encontra retaguarda na preservação dos interesses individuais e sociais contra o arbítrio estatal, e por isso mesmo, uma intervenção que deve ser, antes de mais nada, legalizada. (...) A pena estatal deve ser controlada pelas regras-princípios de imparcialidade e do devido processo legal, como método garantidor dessa imparcialidade" (op. cit., p. 194).

É para atender a esse imperativo que se deve garantir a privatividade da ação penal a cargo do Parquet, liberando o juiz de funções acusatórias ou com ela relacionadas.

"A iniciativa da ação penal é do Ministério Público, mediante o oferecimento da denúncia, e não pode o juiz obrigá-lo a oferecê-la, mas apenas cabe adotar as providências previstas no art. 28 do CPP e atender, como é o caso, à determinação contida na parte final do mesmo dispositivo. O Ministério Público tem o poder de ação, no campo processual, e o juiz ou o tribunal, o poder jurisdicional. O exercício deste depende da iniciativa daquele" (STF in RT 629/384).

Ilustra FAUZI HASSAN CHOUKR:

"Muito embora tenha o CPP fortes ares autoritários, nesse ponto (o do art. 28) privilegiou o modelo acusatório, quase que na sua pureza, vez que coloca nas mãos do titular da ação penal pública a derradeira manifestação sobre a oportunidade ou não de exercitá-la". Continua o ilustre autor em nota a informar que "Na verdade, a fórmula do art. 28 do CPP acabou por ser entendida como aplicável a outras hipóteses sempre que houver conflito entre o julgador e o membro do parquet sobre a oportunidade ou não da atuação funcional deste último. Eis o fruto máximo da separação institucional da Magistratura e do Ministério Público, entendendo-se dentro da linha exposta que cabe ao MP dizer nesses momentos se sua atuação é ou não devida" (op. cit., p. 67)

Adotou-se no Brasil também o princípio da inércia da jurisdição. Na exposição de motivos do CPP em vigor, fica clara essa opção como imanente ao sistema:

"V - O projeto atende ao princípio ne procedat judex ex officio, que, ditado pela evolução do direito judiciário penal e já consagrado pelo novo Código Penal, reclama a completa separação entre o juiz e o órgão da acusação, devendo caber exclusivamente a este a iniciativa da ação penal".

Os princípios acusatório e da inércia jurisdicional têm relações com o princípio do contraditório, que se consubstancia no brocardo audiatur et altera pars, segundo o qual a parte contrária deve ser sempre ouvida. Os alemães identificam-no com o "onde não há acusador, não há juiz".

Daí decorre o ne eat judex ultra petita partium, isto é "o juiz não pode dar mais do que foi pedido, não pode decidir sobre o que não foi solicitado". Nem mesmo nos Juizados Especiais este princípio fica ameaçado, pois os objetivos de celeridade, informalidade e economia processual não se sobrepõem àquela garantia constitucional.

Por tudo isso, admitir a proposta transacional excluindo-se o Ministério Público é quase como querer revigorar a Lei n. 4611/65, que autorizava a instauração da ação penal por portaria de autoridade policial ou judicial, e furtar-se ao reconhecimento do princípio da independência ministerial, citado por MIRABETE, segundo o qual "o membro do Ministério Público não fica, no processo, sujeito a ordem de ninguém". Sendo titular da pretensão punitiva do estado quando esta é levada a juízo, não se afasta o Ministério Público do dever de defesa da ordem jurídica e da qualidade de seu fiscal.



9. UMA NOVA MENTALIDADE

ADA PELLEGRINI GRINOVER et alli (op. cit., p. 125), explicam que a proposta de suspensão condicional ex officio "faz tabula rasa do princípio da aplicação consensual da pena e violenta a autonomia da vontade do acusador", que sempre poderá interpor recurso, ficando assim prejudicados os objetivos da lei: celeridade, informalidade, economia processual.

"Mesmo para a transação posterior ao oferecimento da denúncia, permitir que o juiz homologue uma transação, que elimina ou suspende o processo, contra a vontade do Ministério Público, significa retirar deste o exercício do direito de ação, de que é titular exclusivo, em termos constitucionais. Mesmo porque o direito de ação não se esgota no impulso inicial, mas compreende o exercício de todos os direitos, poderes, faculdades e ônus assegurados às partes ao longo de todo o processo" (idem, p. 126).

Não é recomendável que os operadores do Direito deixem perpetuar-se concepções do velho Direito Penal e Processual Penal. Dizemos melhor: devemos todos nos curar dos maus vezos da arcaica dogmática, que privilegia o conflito e menospreza o consenso.

Revolucionou-se o sistema. O Direito está sempre em processo de transformação. Agora, antes do conflito, do embate e do entrechoque de opiniões e teses, é possível a conciliação entre as partes, permite-se que se evitem os dissabores do processo penal (difícil para ambos os atores processuais), mediante o acordo das partes, cada um cedendo um pouco de seus direitos, para o aperfeiçoamento de um pacto que atenda aos interesses recíprocos.

Dessa revolução nos fala LUIZ FLÁVIO GOMES (in Suspensão condicional do processo. São Paulo: RT, 1995, p. 7), referindo-se à quebra da inflexibilidade do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, instituindo-se o princípio da oportunidade e abrindo-se campo ao consenso.

Na moderna feição pactuada e consensual desses ramos jurídicos, que ora se inaugura no País, é necessário abandonar antigos preconceitos e aceitar a nova realidade processual instaurada pelos arts. 76 e 89 da Lei n. 9099/95, delimitando-se um "espaço de consenso", no qual o "pode" não é "deve", valorizando-se também o sistema acusatório e positivando-se a maturidade do Ministério Público, como uma das instituições que maneja a política criminal e não como mero autômato, que aplica rigorosamente regras preestabelecidas, sem o mínimo juízo crítico.

Está claro que o objetivo da Lei 9099/95 é diverso do sistema vigente até 1995. Há um novo desiderato, a fenomenologia axiológica é inovadora, demandando uma mudança conceitual, inclusive no que pertine aos ônus e poderes atribuídos às partes e especialmente ao Parquet, à vista de seu novo perfil constitucional.

Essa necessidade de compreensão do novo locus institucional do Ministério Público, como ente de defesa da legalidade e dos interesses sociais, é registrada por FAUZI HASSAN CHOUKR, ao referir que o Código-Modelo para a Ibero-América:

"trabalha com um modelo acusatório para o processo penal, sendo que a condução das investigações cabe ao Ministério Público, que valoriza o acervo informativo com supremacia no que tange à etapa pré-processual, bem como no momento do arquivamento ou propositura da ação penal" (in Garantias constitucionais na investigação criminal, São Paulo: RT, 1995, p. 51), acrescendo que "nas hipóteses de arquivamento sem a concordância do julgador, o controle do pedido de inação será feito na modalidade hierárquica".

Se o Ministério Público é a instituição encarregada da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis, sendo titular privativo da ação penal pública, é conseqüência lógica a necessidade de poder participar da administração da Justiça Penal de forma autônoma. Afinal, o Parquet é essencial à função jurisdicional do Estado. Por isso é que poderá a Instituição Ministerial atuar como executora e planejadora de política criminal e garantidora da segurança pública, compartilhando da direção das atividades públicas nesse campo, em prol da sociedade.

LUIZ FLÁVIO GOMES, em sua bem-sucedida monografia (op. cit., p. 126), já reconhecia que o Ministério Público "é um dos grandes responsáveis por essa política" (a criminal).

Segundo o juiz WALTER FANGANIELLO MAIEROVITCH, a política criminal "é tida como a ciência e a arte da prevenção e da repressão dos ilícitos. A adoção de uma deficiente política criminal compromete a defesa social". Deve-se pois eleger prioridades e estabelecer estratégias de persecussão, buscando eficiência dos resultados, tarefa da qual também participa o Ministério Público.

Por sua vez, FEUERBACH define-a como "o conjunto dos procedimentos repressivos através dos quais o Estado reage contra o crime". O Estado-Ministério Público insere-se no conceito, não sendo possível afastá-lo dessa tarefa, ainda que se trate de implementar uma "micropolítica criminal", própria ao combate da criminalidade de bagatela.



10. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 28, DO CPP, E EXCLUSIVIDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA

É pelas razões elencadas no tópico anterior que ADA PELLEGRINI GRINOVER et alli (op. cit., p. 126), propugnam uma solução que respeita os princípios constitucionais atinentes ao Ministério Público, ao sistema acusatório e a autonomia da vontade:

"consiste ela na aplicação analógica do art. 28 do CPP. Considerando improcedentes as razões invocadas pelo representante do parquet para deixar de propor a transação - e essas razões devem ser necessariamente manifestadas, em respeito ao princípio constitucional da motivação do ato administrativo (...) -, o juiz fará a remessa das peças de informação ao Procurador-Geral, e este poderá oferecer a proposta, designar outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistir em não formulá-la".

O Superior Tribunal de Justiça - STJ, no julgamento do recurso especial n. 155.426/SP (5ª Turma, Rel. Min. Félix Fischer, j. em 17.02.98, unânime), encampou a aplicação analógica do art. 28 do CPP, ao decidir que:

"I - Incumbe ao Ministério Público a proposta de suspensão condicional do processo (...), não podendo em princípio ser esta realizada pelo julgador.

II - Na hipótese de divergência entre juiz e promotor acerca da oferta da suspensão, os autos devem ser, por aquele, encaminhados ao procurador-geral de justiça.

III - Recurso conhecido e provido".

A aplicação analógica do art. 28 do CPP, em caso de recusa ministerial, vem ganhando adeptos na doutrina e vem traçando curso nos tribunais. Na obra coletiva Juizados especiais criminais, já citada (p. 211), que teve a participação de LUIZ FLÁVIO GOMES, lê-se que a suspensão, "de modo algum poderia ser concebida sem a transação explícita do órgão acusatório. A solução para a recusa injustificada está no art. 28 do CPP, portanto".

Segundo EDUARDO ARAÚJO DA SILVA (in Suspensão condicional do processo: impossibilidade de concessão ex officio. Boletim IBCCrim n. 49 - dez/96, p. 4), a aplicação analógica do art. 28 do CPP, em caso de divergência entre acusador e julgador, é a saída que o próprio sistema processual oferece para a colmatação da lacuna da lei especial.

Além de assegurar ao acusado uma espécie de "duplo grau" de natureza extrajudicial, a apropriação do art. 28 do CPP à Lei n. 9099/95 tem a vantagem de permitir à Administração Superior do Ministério Público "traçar uma política de persecução criminal da instituição, em relação às propostas de suspensão do processo, visando a orientar os promotores de justiça para uma atuação harmônica", de forma a evitar o draconianismo ou a leniência de um ou outro de seus membros. À toda evidência, tal política criminal a cargo do Parquet, situa-se na seara do mérito administrativo.

Como nós, o referido autor propugna que a suspensão condicional do processo é poder discricionário do MP, e não direito público subjetivo do acusado, não podendo o Judiciário "adentrar a análise do mérito do entendimento ministerial, sob pena de (...) ofender a separação dos poderes".

O artigo 28 do CPP pode ser aplicado, também, sempre que o Ministério Público recusar a proposta e o juiz acolher a manifestação ministerial, persistindo o interesse do acusado ao acordo. Neste caso, poderá o réu pedir a remessa dos autos ao Procurador-Geral para que mantenha a recusa ou propicie a proposta, mantendo-se, assim, a garantia de um processo de partes e a efetividade do contraditório, em benefício do próprio acusado e da imparcialidade do julgador.

Chega-se assim a um consenso. A transação e a suspensão condicional são atos inter partes. A função do juiz é a de mediar o acordo, presidindo uma fase conciliatória no processo penal, sem qualquer outra iniciativa senão a de homologar ou não o acordo, já que se a ação penal é indisponível para o Ministério Público, com mais razão o é para o juiz. As partes é que cedem, fazendo concessões recíprocas.

No caso do MP, a concessão é a desistência da imposição de uma sanção condenatória privativa de liberdade ou de outra natureza. Já o acusado renuncia, em certa medida, ao direito à ampla defesa, pois assume de logo obrigações e sujeita-se a uma conseqüência de ordem civil (a necessidade de reparação do dano, caso existente).

Veja-se, na pista dos melhores doutrinadores, que os novos institutos da Lei n. 9099/95 sustentam-se sobre os princípios do consenso, buscando-se, sempre que possível, um acordo. Daí não se entender que possa haver direito subjetivo do acusado a tal acordo. Onde ficam o consenso, a autonomia da vontade do órgão acusador, o princípio do contraditório, e a isonomia, quando se pretende obrigar a parte pública a transacionar?

Esse entendimento é contraditório e está em rota de colisão com os próprios fundamentos do novo sistema político-criminal. Se a base do sistema é o consenso, a execução da norma deve estar inspirada pelo mesmo princípio.

"Ora, se a transação implica renúncia a algum direito, evidente que só as partes podem dela participar, nunca o juiz, pois dele não se espera abra mão de algum direito mas, sim, que apenas exerça a tarefa jurisdicional, sob pena de estar impedindo que o Ministério Público exerça sua função constitucional e legal de titularidade da ação penal pública" (IRAHY BAPTISTA DE ABREU, op. cit., p. 205).

Se o legislador tivesse a intenção de instituir outro legitimado ativo, além do Ministério Público, para a proposta de suspensão, tê-lo-ia feito expressamente no texto do art. 89, não teria usado a palavra "poderá" dirigida ao Parquet e teria estipulado com clareza o direito subjetivo à transação em sentido lato.

As contradições, que são inerentes ao sistema jurídico em vigor, não podem sobrepor-se a ele, ainda mais se forem de origem corporativa. Caso tal ocorra, dá-se a derrocada do arcabouço jurídico e perdem-se os frutos da Lei n. 9099/95.

Todavia, a ebulição doutrinária é compreensível, pois o que se tem na LJE é quase um transplante. É natural que, num primeiro momento, os órgãos desse sistema manifestem certa rejeição ao tecido novo que se implanta no corpo da ciência processual penal brasileira. O remédio contra essa rejeição é disponibilizado pelo próprio sistema jurídico: a pacificação dos conflitos interpretativos pela jurisprudência, após serem recolhidos e assimilados todos os fatores e aportes que influenciam o organismo da justiça pactual.

"Texto de lei, depois seu espírito, e ainda a vontade coletiva, a consciência social, a ideologia do momento, os novos hábitos e concepções, definitivamente incorporados aos genes valorativos do meio, assim como o próprio direito natural positivo, conquista inalienável da humanidade, tudo é confrontado no momento do veredicto" (J. J. CALDEIRA BASTOS, op. cit., p. 32).

O mesmo autor, ao tratar da jurisprudência penal contra a lei, que muito temos visto por aí, ensina que "A decisão contra legem constitui fenômeno universal, observável em todas as áreas do direito. Aumenta à medida que o texto legal se petrifica no tempo". (op. cit., p; 35). Naturalmente, tal não deveria ocorrer com a Lei n. 9099/95. A norma é nova, não havendo motivo nem espaço para decisões tão díspares.

A lei não é hieroglífica. É clara. Mas a dogmática penal e sua interpretação clássica esgotaram-se; estão míopes e não têm mais fôlego para sobrevida diante das transformações sociais que se apresentam. A facilidade de comunicação de bens, produtos e conceitos, ficou favorecida pela globalização, que é um fenômeno sócio-econômico de relevantíssimas implicações jurídicas, gerando um sistema interativo de enormes proporções.

Os valores que se apresentam em todo o mundo para a solução de controvérsias são os do consenso. Basta ver o grande êxito dos juízos de conciliação e dos tribunais de arbitragem, inclusive entre Estados, para se perceber que nasce por toda parte um novo modo de resolução de conflitos. A mediação de lides se sobrepõe ao comum de decisões impostas ou de violência explícita.

Já se viu que é mitológica a idéia de que as sentenças judiciais, compondo a lide, pacificam o meio social. Isto não parece ocorrer em nenhum dos processos que temos visto. Sempre há alguém a reclamar contra a decisão judicial terminativa, que sempre é uma imposição. Ora é o promotor de Justiça que critica a decisão do magistrado, por não ter acolhido seu posicionamento; ora é o advogado que desmerece o decisum por não ter feito a justiça esperada. Abstraindo-se as sempre presentes críticas da sociedade ou da mídia, raro é que ambas as partes estejam ou fiquem satisfeitas com a decisão proferida num processo animado pela constante contraposição de teses. Por isso, melhor sempre que haja acordo. Ou, ao menos, que haja a possibilidade dele, não se criando mais uma imposição, desta feita tendo como destinatário o Parquet.

O que o Ministério Público "deverá" fazer sempre no sistema da LJE é manifestar-se a respeito da suspensão do processo, quer a proponha, quer a negue, pois aí estará atendendo à exigência legal de motivação de seus atos e assegurando o direito subjetivo do acusado a uma manifestação oficial do Estado-Ministério Público quanto à sua pretensão conciliatória, com resposta negativa ou positiva.

Ninguém é obrigado a compor, a efetuar tratativas, a firmar acordos, ou a assinar pactos. Logo, se o princípio que inspira os institutos é o do consenso (chegar ao consenso é dar aprovação a; concordar com; permitir; estar em harmonia; ser conforme; anuir), não se pode falar que a proposta de suspensão condicional do processo é uma obrigação do Ministério Público, quando presentes os requisitos legais.

Imagine-se a hipótese de o juiz impor à vítima a composição dos danos civis, alegando suposto direito subjetivo público do acusado à não instauração da lide penal. Ter-se-ia aí uma impossibilidade, que violentaria a autonomia privada. Mudem-se os sujeitos e as circunstâncias e teremos também uma violência à autonomia do Ministério Público no que toca ao art. 89.

Pensar que só por ter sido iniciada a ação penal, está o juiz autorizado a propor a suspensão processual é posição inconsistente. Basta perceber que só por ter sido oferecida denúncia, não está o juiz autorizado a aditá-la para incluir co-réu, qualificadora ou outro delito. A privatividade da ação penal vai até aí. Ou melhor, vai além.

O Ministério Público "é o agente da ação penal. Promove-a desde a peça inicial, que é a denúncia, até os termos finais em primeira e segunda instâncias. Acompanha-a, está presente em todos os atos, fiscaliza a seqüência dos atos processuais; zela e vela pela observância da lei até a decisão final" (in VICENTE DE AZEVEDO, Curso de direito judiciário penal, vol. 1, p. 195).

Também por outro motivo não se admite a proposta ex officio. O art. 5º, inciso LIII, da CF, estabelece que "ninguém será processado (...) senão pela autoridade competente", que, no caso das propostas transacionais, é o Ministério Público. Daí decorre a ilegitimidade ativa de qualquer outro indivíduo ou órgão para a propositura da suspensão, e a nulidade da ação na qual tiver sido desatendido o devido processo legal.

Já advertia MONTESQUIEU que a concentração de poderes em uma só pessoa conduz, quase sempre, a excessos e ao arbítrio. E onde há arbítrio, não há liberdade. E isso é o que pode resultar do acúmulo de funções de julgamento e de acusação num só órgão, quebrando-se a absoluta separação de tais funções.

E se o Ministério Público pode o mais (não denunciar ou não aditar a denúncia, sem que o juiz nada possa fazer, senão enviar o processo ao Procurador-Geral no primeiro caso), porque não poderia o menos (não propor a suspensão do processo)?

Se o juiz e o réu não podem obrigar o Parquet a pedir a absolvição do segundo (direito subjetivo?), por que poderiam obrigar o Ministério Público a oferecer a suspensão com a mesma alegação?

Enfim, sustentamos que nos arts. 76 e 89 da LJE se tem, sim, um poder discricionário do Parquet, que representa uma mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, previsto no art. 24, do CPP. Discordamos dos que denominam tal faculdade de discricionariedade regrada, pois todo poder discricionário é necessariamente limitado, taxativamente discriminado em lei.



11. AINDA SOBRE A DISPONIBILIDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA

HELY LOPES MEIRELLES ensina que poder discricionário "é o que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade de escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo". (in Direito administrativo brasileiro, São Paulo: Malheiros, 17ª edição, p. 102).

O princípio da oportunidade da ação penal é uma exceção ao princípio da obrigatoriedade, que permite ao Parquet não agir naqueles casos de mínima reprovabilidade ou escassa lesividade, bem como desistir da ação penal nos mesmos casos e também naqueles nos quais houve o integral restabelecimento do status quo ante (como na devolução da coisa furtada), e naqueles nos quais a prova tornou-se impossível.

Citamos, como exemplo que reclama a aplicação do princípio da disponibilidade, o caso de uma ação penal pública paralisada por mais de dez anos, na qual nem se fizera o interrogatório do acusado. Iniciada a instrução, não se localizou nenhuma das quatro testemunhas arroladas na denúncia de uma década antes. Naturalmente, ter-se-ia, após a oitiva das testemunhas da defesa, um non liquet. Por que prosseguir obrigatoriamente no processo diante de tal quadro adverso?

Antes da Lei n. 9099/95, o Ministério Público somente tinha duas opções: propor a ação penal, quando houvesse justa causa (o que os norte-americanos denominam probable cause) ou pedir o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação. Uma terceira opção (a devolução do inquérito policial para novas diligências) fatalmente levaria a uma das duas anteriores.

Depois da Lei dos Juizados Especiais, quando se trata de crime cuja pena mínima é de um ano, o Ministério Público passou a ter, verdadeiramente, uma terceira opção: a de propor a suspensão condicional do processo (ou a transação, em caso de crime de bagatela). Eis a via alternativa aberta pela Lei n. 9099/95 no tormentoso mundo processual penal, pela qual o Ministério Público dispõe da ação penal, desistindo de uma sanção privativa de liberdade, para encerrar de logo o caso, com o que LUIZ FLÁVIO GOMES (no tocante à transação) denomina de "condenação imprópria", por não haver discussão de culpabilidade.

Entretanto, nenhum poder é absoluto. Observe-se que realmente há um regramento nessa faculdade, pois a lei exige que o Ministério Público proponha a ação, ou seja, é necessário que haja a denúncia criminal concomitante à proposta de suspensão e que esta atenda os requisitos legais, tudo sob controle judicial.

Ainda que se admita em casos especiais a existência de um hiato entre a acusação formal e o oferecimento da proposta, um ato é dependente e indissociável do outro. A proposta de suspensão processual vincula-se à denúncia; e o recebimento desta é pressuposto da eficácia daquela. Sendo assim, estando tão imbricados os institutos, somente o legitimado ativo para a deflagração da ação penal, pode oferecer a proposta incidental: "o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor ....".



12. O ART. 129, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO COMO GARANTIA INDIVIDUAL

Em virtude das noções acima postas, afirma-se que tais atribuições (art. 76 e 89 da LJE) se inserem, sem dúvida, no âmbito da deflagração da ação penal pública, que é privativa do Ministério Público, conforme o art. 129, inciso I, da Constituição da República.

Embora situada no capítulo reservado ao Parquet, a norma do art. 129, inciso I, da CF não é uma garantia corporativa, mas verdadeiramente uma garantia do cidadão, irmã daquela que veda juízos e tribunais de exceção, na medida em que garante a imparcialidade do juiz e o devido processo legal, evitando também a titularidade difusa da ação penal, facilitadora de verdadeiras vinditas processuais.

"Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I - promover, privativamente, a ação penal pública na forma da lei".

Promoção privativa é iniciativa exclusiva de alavancar a jurisdição . Observe-se que tal promoção deve se dar na forma da lei. Ora, ao instituir os juizados especiais e ao trazer ao sistema a possibilidade de suspensão condicional do processo, previu o legislador uma nova forma, uma forma especial, de promoção da ação penal, que confere ao legitimado ativo a faculdade de transacionar com o acusado.

O que se quer dizer é que o legislador, ao inovar no sistema, possibilitando a suspensão condicional do processo, introduziu uma nova forma de exercício da ação penal. Uma das manifestações da lei mencionada no art. 129, inciso I, da CF, é a Lei n. 9099/95, cujo art. 89 deve ser apreciado em conjunto com a norma constitucional, para de ambas extrair-se a interpretação correta do instituto da suspensão condicional do processo: a de que se trata de poder discricionário do Parquet.

Tudo porque processo somente existe na medida em que a jurisdição é provocada, pois é intrínseco ao sistema o princípio nemo judex sine actore. Em matéria penal pública, a jurisdição só é provocada e o processo só se inicia com a manifestação do órgão estatal de acusação: o Ministério Público, permitindo ao juiz manter sua condição de imparcialidade.

Por conseguinte, somente essa instituição (o Parquet) tem o poder de pactuar sobre o seu direito de ação, inclusive para efeito da suspensão do processo que está por se iniciar. Ao juiz é vedado firmar acordo com direito que não lhe pertence (o de ação) sob pena de aproximar-se o magistrado perigosamente da figura do inquisidor, tornando-se, a um só tempo, parte e julgador, ferindo garantia individual.

Sendo o Parquet "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado" na dicção do art. 128 da CF, não pode o juiz, no exercício dessa função jurisdicional, excluir o Ministério Público do consenso, substituindo-se a ele, impondo um acordo não desejado, traduzindo em nada essa natureza essencial, até porque o magistrado não estará promovendo a ação, "na forma da lei". Esta atividade é acusatória e a Lei n. 9099/95 a atribui ao Ministério Público.

Ou seja, se a lei infraconstitucional atribui uma faculdade ao Defensor Civitatis, na esteira da sua essencialidade constitucional e cumprindo o mandamento do art. 129, inciso I, da CF, não há como desconhecer essa característica, nem como desrespeitar a independência funcional de seus órgãos (art. 127, §1º, da CF) e a própria autonomia do Parquet.

MAZZILI adverte que "Dentro de um Estado democrático de direito, a independência do Ministério Público não deve ser vista como mera abstração legal ou ficção jurídica, mas como condição prática para o correto exercício de suas funções" (in Ministério público: instituição e processo. Independência do ministério público. São Paulo: Atlas, 1997, p. 104) e aponta como condições dessa independência "as garantias a seu ofício (nas suas atividades-fim)". Estas referem-se à "autonomia do ofício exercido pelo Ministério Público em face de outros órgãos estatais, especialmente em face dos governantes, legisladores e juízes" (idem, p. 107). Vale dizer, o MP, no exercício de suas atribuições, sujeita-se apenas ao cumprimento da Constituição e das leis, sendo tal autonomia uma garantia do cidadão contra persecuções arbitrariamente seletivas.

A proposta ex officio também malfere o art. 129, §2º, da Constituição, que proíbe o exercício das funções de Ministério Público por pessoas estranhas à carreira ministerial (a reprovável figura do promotor ad hoc).

Ademais, a função prevista no art. 89 da Lei n. 9099/95 tem embasamento adequado nos incisos I e IX do art. 129 da Lei Magna, sendo essas possibilidades, de transação penal e avença coetânea à denúncia, compatíveis com a finalidade do Ministério Público, a quem o art. 98, inciso I, da CF, permitiu a transação penal, patenteando a quebra do rigor do princípio da obrigatoriedade da ação pública.

Esse ponto de ruptura precisa ser devidamente identificado. Quando o constituinte "permitiu" a transação penal estava afirmando sua crença no sistema da disponibilidade. Reafirmou essa fé ao dispor que a ação penal seria promovida, privativamente, pelo Ministério Público, sem estipular que tal promoção seria obrigatória (promover, privativa e obrigatoriamente, a ação penal pública). Agindo assim, o legislador fundamental deixou campo aberto à adoção do princípio da oportunidade.



13. UMA ABORDAGEM À LUZ DO DIREITO ADMINISTRATIVO

Para que não haja dúvidas quanto à privatividade da proposta de suspensão condicional pelo Parquet deve-se lembrar que o Ministério Público, no sistema constitucional brasileiro, integra o Estado-Administração. Não sendo Estado-Juiz, nem Estado-Legislador, o Ministério Público está, por exclusão, no âmbito da Administração Pública, ainda que aí se situe de forma autônoma, constituindo um órgão estatal anômalo, a ponto de alguns assegurarem que se trata de um quarto poder.

Como órgão da Administração, ao Ministério Público aplicam-se os princípios que a regem, especialmente os do mérito administrativo. Não há dúvidas de que a denúncia criminal é um ato administrativo que provoca o exercício da jurisdição (ato judicial). Como ato administrativo, a denúncia é uma manifestação de vontade da Administração para o exercício de suas funções acusatórias, com o objetivo de produzir um determinado efeito jurídico: a aplicação de uma sanção penal.

Segundo MIRABETE (in Processo penal. São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 316), "Analisando as principais funções institucionais do Ministério Público, previstas na Constituição, pode-se concluir que todas elas têm natureza administrativa".

MAZZILI (in O ministério público e a constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 44) concorda e pontifica que "pela natureza intrínseca de suas funções, indiscutivelmente o Ministério Público exerce atividade administrativa".

FÁBIO MEDINA OSÓRIO esclarece que "o Poder Judiciário, via de regra, não substitui a discricionariedade da Administração Pública na prática de atos administrativos, ainda que deste resulte algum prejuízo a terceiros" e que "essa vedação não significa violação ao art. 5º, inc. XXXV, da CF"(in O consensus na transação pena e suspensão condicional do processo penal: observações sobre a lei n. 9099, de 26-09-95).

Isso significa que o Ministério Público é livre, dentro de sua esfera de competência, para decidir de acordo com o mérito administrativo, estando limitado apenas pela legalidade.

Segundo HELY LOPES MEIRELLES, o mérito administrativo consiste na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato discricionário, "feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar".

No que se refere aos atos discricionários, HELY afirma que "a Administração decide livremente, e sem possibilidade de correção judicial, salvo quando o seu proceder caracterizar excesso ou desvio de poder. Em tais atos (discricionários), desde que a lei confia à Administração a escolha e valoração dos motivos e do objeto, não cabe ao Judiciário rever os critérios adotados pelo administrador, porque não há padrões de legalidade para aferir essa atuação" (op. cit., p. 138).

É por isso que se permite ao Ministério Público, entre as possibilidades legais, escolher a solução que melhor corresponda, no caso concreto, ao interesse público. Ou seja, o Parquet ao praticar ato discricionário é livre dentro das opções previstas em lei quanto à apreciação do mérito administrativo. Diz HELY LOPES MEIRELLES: "entre praticar o ato ou dele se abster, entre praticá-lo com este ou aquele conteúdo (p. ex.: advertir, apenas, ou proibir), ela (a Administração) é discricionária. Porém, no que concerne à competência, à finalidade e à forma, o ato discricionário está tão sujeito aos textos legais como qualquer outro". (op. cit., p. 153).

Devemos dizer que a abordagem de Direito Administrativo em matéria penal-processual nada tem de aberrante, pois o Direito Penal e o Direito Administrativo são ramos de uma mesma árvore: o Direito Público, sendo alimentados pela mesma seiva jurígena. Ademais, a própria natureza da instituição titular da ação penal pública exige a apreciação dos princípios da Administração, que também a regem.

Não é por outra razão que HELY LOPES MEIRELLES conceitua o Direito Administrativo como o "conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, agentes e as atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado". (in Direito administrativo brasileiro, São Paulo: Malheiros, 17ª edição, p. 29).

Diz mais o conceituado publicista que "Do funcionamento estatal só se afasta o Direito Administrativo quando em presença das atividades especificamente legislativas (feitura da lei) ou caracteristicamente judiciárias (decisões judiciais típicas)". (op. cit., p. 30). Portanto, o funcionamento do Ministério Público é também seu objeto de estudo, porque não se ato analisando atividades legislativas nem judiciais.

É consabido que inspiram o ato administrativo os princípios da oportunidade, economicidade, justiça, conveniência, que constituem o mérito administrativo. Tratando-se de ato da Administração, o Poder Judiciário não pode imiscuir-se em matéria de mérito, id est, não pode examinar-lhe a oportunidade, a conveniência e a economicidade. Deve limitar-se exclusivamente a verificar sua legalidade.

Transportando esse conceito administrativo para a análise do art. 89 da Lei n. 9099/95 ver-se-á que a denúncia e a proposta de suspensão condicional do processo são também atos do Estado-Administração, que se regem pelo mérito administrativo e pela legalidade. Assim, poderá o juiz rejeitar a denúncia que se afastar dos critérios legais do art. 41 do CPP, bem como poderá rejeitar a suspensão do processo que desatender as exigências do art. 89 da LJE e do art. 77 do CP (legalidade). Estará então, como Estado-juiz, no exercício legítimo da jurisdição. No entanto, se o magistrado pretender substituir-se ao Estado-Administração para propor a suspensão processual estará muito próximo do arbítrio.



14. PROPOSTA TRANSACIONAL EX OFFICIO: QUEM SUPORTA OS ÔNUS DO FRACASSO?

Segundo MAURÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES (in Direito penal, estado e constituição, São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 85) diz que "O princípio da legalidade dos delitos e das penas não apenas exige o como fazer, mas impõe também o é proibido fazer de outro modo".

Logicamente, somos nós que concluímos, não se pode obrigar o Ministério Público a agir de forma diversa da que está prevista em lei, obrigando-o a fazer acordo que não deseja, por considerá-lo inconveniente, inoportuno ou injusto. A lei manda que a suspensão advenha de iniciativa do Parquet e de mais ninguém.

O mesmo autor, com apoio em JOSÉ AFONSO DA SILVA, define as normas como "preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, ou seja, reconhecem, por um lado, a pessoas ou a entidades a faculdade de realizar certos interesses por ato próprio ou exigindo ação ou abstenção de outrem, e, por outro lado, vinculam pessoas ou entidades à obrigação de se submeterem às exigências de realizar uma prestação, ação ou abstenção em favor de outrem" (in Curso de direito constitucional positivo, São Paulo: Malheiros, 9ª ed., p. 89).

A Lei n. 9099/95 é claramente um preceito que reconhece a uma entidade, o Ministério Público, a faculdade de realizar certos atos (os dos arts. 76 e 89) por ato próprio e exclusivo. Evidentemente, se todos os requisitos legais estiverem presentes, a suspensão condicional em regra deverá ser proposta. No entanto, a análise desses pressupostos cabe ao Ministério Público (mérito administrativo).

Se a instituição considera que um desses requisitos é inexistente, não pode o juiz obrigar o membro do Parquet a propor a suspensão. E uma circunstância deve ser considerada em prol desse entendimento. Caso seja admitida uma suspensão ex officio ou uma transação entre o juiz e o réu, o que acontecerá se a suspensão for revogada?

Primeiro: o réu voltará ao status quo ante, pois não terá havido qualquer mácula ao seu estado de inocência, já que na proposta não se discute culpabilidade. Assim, poderá o agente exercer em toda a sua inteireza o direito de defesa, como se nada houvesse acontecido.

Segundo: o mesmo não se poderá dizer em relação ao Ministério Público. Embora o curso da prescrição também se suspenda, só a parte pública acusadora sofrerá os ônus da proposta fracassada, pois terá perdido tempo valioso para a colheita de provas, que podem perecer, e a resposta estatal à infração à ordem jurídica será muito mais demorada (além do "normal").

Conclui-se portanto que a suspensão condicional do processo tem influência direta sobre o jus puniendi estatal, dificultando de certo modo a demonstração da culpabilidade (em caso de seguimento do processo), por embaraçar a colheita de prova suficiente ou por favorecer o desaparecimento da que antes havia.

Sendo assim, é imprescindível a anuência do Parquet para que se implemente a suspensão, já que, ao fim e ao cabo, somente o Ministério Público e a sociedade, "sujeitos" interessados na repressão à criminalidade, terão sido sacrificados pela suspensão arbitrária e não consensual.

Em apoio a essa tese, LUIZ FLÁVIO GOMES registra que "o fato de o acusado ter antes concordado com a suspensão do processo não pode ser levado em conta para efeito de culpabilidade" (op. cit., p. 126), pois vigora em favor do denunciado o nolo contendere, sistema no qual o réu não admite culpa nem proclama inocência. Enfim, o ônus de provar a culpabilidade do acusado continua a ser do Estado-Administração, mesmo que se passem dois ou quatro anos de suspensão, quando o réu terá percorrido meio caminho em direção à impunidade.

O raciocínio de que a suspensão se trata de direito subjetivo do acusado chega a ser esdrúxulo, se levado ao paroxismo. Imagine-se se, querendo fazer valer tal tese e considerando que a celeridade almejada pela LJE deve vigorar em qualquer hipótese, um juiz impusesse ao acusado um acordo por ele não aceito, com base em proposta de suspensão feita pelo Ministério Público? Ou que o juiz, unilateralmente, fizesse proposta ex officio ao acusado?

Em tese, nada impediria tais ocorrências, pois em última análise estaria o juiz agindo "em prol" do acusado, substituindo-se a ele para firmar um acordo com o Parquet (ou substituindo ambos), porque pensa que o réu deve fazer valer o seu "direito subjetivo" (interesse individual juridicamente protegido) e evitar maiores delongas na instrução processual penal. Com isso, estariam sendo lesadas as garantias do devido processo legal e da ampla defesa e também o contraditório.

Evidentemente, o exercício mental acima delineado não passa de hipótese absurda, mas que guarda simetria com a tese que vem sendo esposada por ilustres juristas e acolhida por alguns tribunais: a de que o juiz pode impor um acordo ao Ministério Público, contra a vontade da instituição, que é autônoma, segundo expressa disposição constitucional (art. 128, da CF).

Como bem disse, LUIZ FLÁVIO GOMES "no modelo de Justiça criminal consensual nenhuma instituição pode ter a mesquinha pretensão de se sobrepujar a outra" (op. cit., p. 162). Se é assim para o ilustre processualista, não é aceitável que seja o Ministério Público a instituição a ser alijada do consenso, pela imposição de uma suspensão ex officio contrária à lei.



15. OUTROS OBSTÁCULOS À TRANSAÇÃO PENAL EX OFFICIO

O Ministério Público é órgão estatal autônomo, cujas funções só podem ser exercidas por seus membros pessoalmente, com exclusão da legitimidade de terceiros.

O que vem a ser autonomia? Segundo JOÃO MENDES JÚNIOR, autonomia é a "direção do que lhe é próprio", devendo ser considerada em relação a outros órgãos ou poderes.

HELY LOPES MEIRELLES (op. cit., p. 66/67) situa o Ministério Público entre os órgãos independentes, "colocados no ápice da pirâmide governamental, sem qualquer subordinação hierárquica ou funcional, e só sujeitos aos controles constitucionais de um Poder pelo outro. Por isso são também chamados órgãos primários do Estado. Esses órgãos detêm e exercem precipuamente as funções políticas, judiciais e quase-judiciais outorgadas diretamente pela Constituição, para serem desempenhadas pessoalmente pelos seus membros (agentes políticos, distintos de seus servidores, que são agentes administrativos), segundo normas especiais e regimentais".

Ao conceituar agentes políticos, o professor HELY explica que "exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua competência".

E completa: "Em doutrina, os agentes políticos têm plena liberdade funcional, equiparável à independência dos juízes nos seus julgamentos" (op. cit., p. 73).

Como exemplo de decisões que merecem crítica, por ofenderem essa autonomia dos agentes políticos que integram o Ministério Público, acerca da interpretação e execução do art. 89 da LJE, está a proferida pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, na apelação criminal n. 200.274-4, da Comarca de Lima Duarte.

"Não afronta o art. 129, I, da CF, decisão do juiz que, a requerimento do réu, decreta a suspensão condicional do processo, uma vez que, recusada pelo Ministério Público a formulação da proposta cabível, pois, sendo a medida um direito público subjetivo, não é dado perseguir julgamento de mérito, quando se verificar, em tese, a aplicabilidade do art. 89 da Lei 9099/95".

Vê-se de logo, pela ementa, que o acórdão desvirtua completamente o instituto da suspensão condicional, que deixa de ser obtida mediante o consenso das partes para surgir de um decreto judicial, imperativo e excludente.

Observa-se também que a decisão viola frontalmente o art. 129, inciso I, da CF, ao afirmar que, presentes os requisitos do art. 89 da Lei 9099/95, "não é dado perseguir julgamento de mérito" (sic). Ora, a privatividade da ação penal conferida ao Ministério Público implica não só no poder de oferecer denúncias, como também no de perseguir julgamentos de mérito! Ao atribuir mais força ao art. 89 da LJE que ao art. 129 da CF, o tribunal subverteu a hierarquia das normas e cassou indevidamente pelo menos três direitos do Ministério Público: o direito à persecução penal em juízo, o direito a um julgamento de mérito das pretensões deduzidas, e o direito ao devido processo legal.

Sendo assim, a apreciação de mérito quanto ao cabimento ou não da proposta de suspensão cabe ao Ministério Público. Segundo a lei, é este órgão que formulará ou não a proposta. É o Parquet que verificará, preliminarmente à instauração do processo, se o acusado preenche os requisitos legais: pena mínima cominada ao crime, inexistência de antecedentes, personalidade, etc., aquilatando do "merecimento" da proposta.

Tais juízos se inserem no mérito administrativo, não podendo a autoridade judiciária imiscuir-se em assuntos da Administração strictu sensu, mormente quando se sabe que o novel instituto é um instrumento de política criminal entregue ao Parquet, num momento processual em que vige o axioma in dubio pro societate. Feita a instrução, caberá ao juiz a palavra final sobre as circunstâncias do art. 59 do Código Penal, e aí estará o magistrado exercendo competência própria, podendo, ou não, aplicar o sursis do art. 77 do CP, segundo o seu livre convencimento.

O supramencionado acórdão do TA-MG merece outros reparos. Embora tenha reconhecido que o juiz não pode suspender o processo ex officio (no que merece encômios), deliberou que o magistrado deve intimar o réu para, querendo, formular pedido de suspensão do processo.

Essa solução também afronta o art. 129, inciso I, da CF, pois a ação penal (com os seus consectários, inclusive a proposta de suspensão) é privativa do Ministério Público, não podendo o réu usurpar atribuição constitucional do Parquet, excluindo-o da relação processual, pois, a partir daí ter-se-á uma tratativa bilateral entre juiz e acusado, instituindo-se uma relação processual linear, e não triangular (actum trium personarum).

Ofende-se também o art. 25, parágrafo único, da Lei n. 8625/93 (que impõe nulidade do ato praticado por terceiro estranho aos quadros do Parquet) e a letra e o espírito do art. 89 da LJE, pois retira-se à Acusação Oficial o direito de ação pública, tudo a reclamar a impetração de mandado de segurança para defesa de direito líquido e certo do Ministério Público.

O art. 89, §6º, da LJE determina a suspensão do curso do prazo prescricional durante o período de prova resultante da suspensão. Sabe-se que a prescrição não corre na pendência de um acontecimento que impossibilite alguém de agir. Logo, vê-se que há verdadeira limitação do direito de ação do Estado, sem forte razão jurídica ou qualquer justificativa plausível.

Em suma, a falta de acordo entre as partes quanto a todos os termos da suspensão impede que qualquer juiz ou tribunal homologue, decrete ou conceda a suspensão condicional do processo, pois tal imposição ou deferimento malfere as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da imparcialidade do juízo e desestabiliza o sistema acusatório.

O due process of law fica ameaçado porque o julgador subverte a ordem processual, impede a parte pública de provar a acusação e, no limiar da ação penal, antecipa uma valoração dos antecedentes, da personalidade e da culpabilidade do autor do fato, sem contato prévio com a prova, bem como faz juízo sobre a conduta do réu (que ainda não conhece). Assim, não aceito ou desfeito o acordo, estará o juiz irremediavelmente vinculado àquele pronunciamento prévio e inoportuno, no átrio da relação processual, com evidentes implicações sobre sua imparcialidade.

Desrespeita-se também o princípio da tripartição dos poderes do Estado de Direito, pois o Judiciário assume para si uma tarefa do Estado-Administração, bem como violenta a vontade do Poder Legislativo, ao dar à expressão legal sentido diverso do pretendido pelo Parlamento. Sabe-se que a separação funcional de poderes constitui instrumento para a garantia dos direitos humanos, que ficam ameaçados com o surgimento da figura do juiz-legislador, ou, pior, do juiz-acusador.

Que faz o juiz quando procede ex officio? Constitui-se simultaneamente em julgador e parte adversa do réu. Agora, pensemos que a suspensão, considerada equivocadamente um direito (trata-se de mera expectativa de direito), seja deferida ao réu contra a vontade do Ministério Público. Assim, estará o réu, no exercício desse suposto direito, obrigado a cumprir as condições que lhe são impostas por lei, além das especificadas pelo juiz, bem como sujeito à suspensão do prazo prescricional. Estranho direito...

Se, por acaso, o réu não cumprir uma das condições obrigatórias (como o ressarcimento do dano, por exemplo), que fará o juiz: a) suportará os ônus do não cumprimento do "acordo"?; b) imporá o cumprimento imediato das condições?; c) devolverá ao MP a ação penal? Enfim, qual a garantia que é dada à vítima, ao Parquet e à sociedade de que o acusado cumprirá as condições da suspensão? Nenhuma. E não se pode esquecer que os direitos em jogo não são apenas os do réu.

Limitar dessa forma o exercício da ação penal pode conduzir sempre a um desfecho citra petita, no qual se abandonam os próprios objetivos do processo penal, e que desconsidera os interesses gerais da coletividade para privilegiar interesses individuais nem sempre legítimos, nem sempre justos.

O maior direito que tem o réu na relação processual é o direito a um julgamento justo, por um juiz imparcial. Se inocente, o acusado tem direito impostergável à absolvição, e o Ministério Público deve ser o primeiro a reconhecê-lo. Se culpado, o réu tem direito a uma pena justa, e o Estado tem o poder de obtê-la e executá-la. Já a suspensão condicional do processo deixa sempre uma dúvida sobre a culpabilidade do acusado, seja ele culpado ou inocente e é óbvio que, no caso de inocência, o julgamento de mérito é mais favorável ao réu.

Não merece acolhida, outrossim, o entendimento de que a possibilidade de requerimento de suspensão pelo réu visa a assegurar o princípio da isonomia processual. Não nos convencemos do acerto da tese, pois no processo instaurado o acusado poderá exercer sua defesa em toda a sua inteireza, inclusive obtendo provimento absolutório, se for o caso.

A pretexto de igualar as partes, não se pode impedir o exercício de um direito (o de ação) por uma delas. Os direitos de acusação e defesa podem e devem coexistir, sem exclusão de nenhum deles, até a decisão final do Judiciário. Sacrificar o direito de ação do Ministério Público - que, em última análise, é o direito de ação da sociedade -, não atende as necessidades de uma Justiça eficiente e igualitária. Ademais, a lei é clara e atribui a proposta ao Ministério Público como dominus litis.

A esse respeito, deve-se dizer que não se conceberia a hipótese de o juiz, tendo à frente a proposta do Ministério Público, impor ao acusado a sua aceitação, ou decretar diretamente a suspensão. Se tal paisagem processual é absurda, como admitir o contrário, sem violar o princípio da isonomia das partes? Claro está que tal princípio não existe apenas para beneficiar o réu, mas milita também em favor do defensor da sociedade: o Ministério Público. Não se pode invocar a isonomia aqui (permitindo requerimento do réu) e abandoná-la ali ("dispensando" a concordância do Parquet), inaugurando-se um processo penal de dois pesos e duas medidas.

De igual sorte, não deve prosperar a compreensão de que a privatividade da proposta de suspensão do processo pelo Ministério Público a exclui do controle jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, CF). Sabe-se que o juiz é o fiscal do princípio da obrigatoriedade, à luz do art. 28 do CPP, devendo encaminhar os autos de inquérito policial ao Procurador-Geral sempre que discordar do pedido de arquivamento.

Se é assim em relação à propositura ou não da ação penal (o mais), deve ser assim em relação à oferta de suspensão condicional do processo (o menos). O controle jurisdicional da proposta de suspensão estará sempre presente, seja pela homologação ou não da avença pelo juiz, seja pela remessa dos autos ao Chefe do Parquet, para que, dentro do Estado-Administração, decida-se, definitivamente, quanto ao exercício da faculdade inserta no art. 89 da LJE.

O ato dependente de homologação não tem eficácia enquanto não a recebe. Assim é com a proposta de suspensão. A homologação é ato de controle judicial, que apenas pode confirmar o ato (no caso o pacto), ou rejeitá-lo, a fim de que a irregularidade seja corrigida por quem a praticou.

Daí é que advém o entendimento de que à recusa ministerial à proposta deve seguir-se a remessa dos autos ao Procurador-Geral, para que examine da conveniência e da oportunidade de oferecimento da proposta, pois unicamente o Estado-Administração (aí representado pelo Ministério Público) pode valorar internamente se praticará o ato ou se absterá de fazê-lo.

"O juízo de conveniência ou oportunidade de revisão e controle é fundamentalmente político-administrativo e discricionário" (HELY LOPES MEIRELLES, op. cit., p. 573).

Em razão disso, o controle da conveniência, justiça, eficiência e oportunidade da proposta é privativo da chefia do Ministério Público, que exerce o controle de legalidade e de mérito, ao passo que o Judiciário limita-se ao controle de legalidade, não podendo pronunciar-se sobre o mérito dos atos da Administração, aqui entendida como Estado-acusador, pois, assim agindo, estaria desbordando de sua competência jurisdicional, para atuar como parte na relação processual a se formar.

De qualquer sorte, o controle jurisdicional do art. 5º, inciso XXXV, da CF, estará sempre presente. Tenha sido proposta ou não a suspensão, o processo continuará sob a presidência do juiz, a quem caberá, no exercício de atividade jurisdicional, absolver o réu ou condená-lo, e, neste caso, conceder ou não o sursis do art. 77 do Código Penal. Ao final, nenhuma eventual lesão ou ameaça a direito será excluída da apreciação do Poder Judiciário.



16. DISCRICIONARIEDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ENTE DA ADMINISTRAÇÃO

Não se pode negar que o Ministério Público integra o Estado-Administração porque a instituição atua independentemente de provocação para que a vontade legal seja cumprida, ao passo que a jurisdição atua mediante provocação da parte interessada.

JOSÉ AFONSO DA SILVA diz que o Ministério Público é "uma instituição vinculada ao Poder Executivo, funcionalmente independente, cujos membros integram a categoria dos agentes políticos e, como tal, há de atuar com plena liberdade funcional"(in Curso de direito constitucional positivo, São Paulo: Malheiros, 9ª edição, p. 511).

MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO corrobora o pensamento de JOSÉ AFONSO DA SILVA, asseverando que "A discricionariedade, sim, tem inserida em seu bojo a idéia de prerrogativa, uma vez que a lei, ao atribuir determinada competência, deixa alguns aspectos do ato para serem apreciados pela Administração diante do caso concreto; ela implica liberdade a ser exercida nos limites fixados na lei" (in Direito administrativo, São Paulo: Atlas, 1990, p. 70).

A renomada administrativista esclarece que no poder vinculado a lei não deixa opções à Administração. "Ela estabelece que, diante de determinados requisitos, a Administração deve agir de tal ou qual forma. Por isso mesmo se diz que, diante de um poder vinculado, o particular tem um direito subjetivo de exigir da autoridade a edição de determinado ato, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se à correção judicial" (op. cit., p. 161). Isto em matéria de vinculação (e não discricionariedade). Aduz mais que:

"Em outras hipóteses, o regramento não atinge todos os aspectos da atuação administrativa; a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas válidas perante o direito. Nesses casos, o poder da Administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra solução é feita segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, eqüidade, próprios da autoridade, porque não definidos pelo legislador" (op. cit., p. 161).

DI PIETRO conclui que a atuação da Administração é discricionária diante do caso concreto quando "tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas para o direito". Eis a hipótese que surge quando da aplicação dos arts. 76 e 89 da Lei n. 9099/95, que é a norma que expressamente criou novos espaços de atuação institucional do Ministério Público, conferindo-lhe a possibilidade de atuar ou não, de forma discricionária.

Contudo, no que se refere à proposta de suspensão do processo, não há discricionariedade na escolha do momento da prática do ato, porque a lei determina que seja ela promovida ao se oferecer a denúncia (embora seja possível proposta posterior, em certas hipóteses). Nesse ponto, a atividade é vinculada e sujeita ao controle jurisdicional, tal como no que se refere à competência, à forma e à finalidade.

Quanto ao motivo do ato administrativo, DI PIETRO acentua que será discricionário quando a lei não o definir, deixando-o ao inteiro critério da Administração ou defini-lo "utilizando noções vagas, vocábulos plurissignificativos, que deixam à Administração a possibilidade de apreciação segundo critérios de oportunidade e conveniência administrativa"(op. cit., p. 164).

É o que ocorre, por exemplo, com os requisitos da suspensão condicional do processo. Alguns deles são indicados precisamente, com conceitos matemáticos. São os requisitos objetivos, e, por isso, vinculados. Outros requisitos são de apreciação subjetiva, segundo conceitos de valor, como os atinentes aos antecedentes, personalidade, culpabilidade, conduta social do agente, motivos e circunstâncias do crime (art. 77, CP, e art. 76, §2º, inciso III, da Lei n. 9099/95).

E continua: "Com relação aos atos discricionários, o controle judicial é possível, mas terá que respeitar a discricionariedade administrativa nos limites em que ela é assegurada à Administração Pública pela lei (...) Daí porque não pode o Judiciário invadir esse espaço reservado, pela lei, ao administrador, pois, caso contrário, estaria substituindo por seus próprios critérios de escolha, a opção legítima feita pela autoridade competente com base em razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso concreto" (op. cit., p. 165).

Observe-se que o art. 76, §2º, inciso III, da Lei n. 9099/95 determina que sejam analisadas a necessidade e a suficiência da medida, erigindo mais dois elementos discricionários para o fim de oferecimento e homologação da proposta de transação, cabendo ao Ministério Público apreciá-los. É evidente que tais conceitos legais são absolutamente subjetivos e, como tal, escapam ao controle de legalidade estrita.

Contudo, de forma alguma ter-se-á arbítrio no agir do Ministério Público. Discricionariedade não se confunde com arbítrio. Este lembra abuso de direito, excesso, violação da lei; aquela significa exercício legítimo de atribuições dentro do campo delimitado pela legislação. Justamente, para que não se confunda discricionariedade com arbítrio é que a lei exige que as manifestações do Ministério Público sejam fundamentadas.

Novamente, é HELY quem elucida o tema: "convém esclarecer que poder discricionário não se confunde com poder arbitrário. Discricionariedade e arbítrio são atitudes inteiramente diversas. Discricionariedade é liberdade de ação administrativa, dentro dos limites permitidos em lei; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. Ato discricionário, quando autorizado pelo Direito, é legal e válido; ato arbitrário é sempre ilegítimo e inválido" (op. cit., p. 103).

Diz mais o publicista, que para a prática de um ato discricionário o agente do Estado deve ter competência legal, deve atender à forma prescrita em lei e ter por finalidade a consecução do interesse público.

"O ato discricionário praticado por autoridade incompetente, ou realizado de forma diversa da prescrita em lei, ou informado de finalidade estranha ao interesse público, é ilegítimo e nulo. Em tal circunstância, deixaria de ser discricionário, para ser ato arbitrário - ilegal, portanto". (op. cit., p. 103).

Assim, conclui-se que o membro do Ministério Público, como agente político, tem o poder discricionário de requerer o arquivamento ou de oferecer a denúncia e, neste caso, de também oferecer a proposta de suspensão condicional do processo. A competência (atribuição) para a prática do ato é privativa do Ministério Público, por expressa disposição normativa, do art. 129, inciso I, da CF, e do art. 89 da LJE.

Se o magistrado pratica tal ato, está agindo com arbítrio e dando origem a uma ilegalidade, além de ofender o art. 5º, inciso LIII, da Lex Legum. Não podendo anular ou integrar o ato omissivo (a não oferta da proposta), o máximo que poderia fazer seria não receber a denúncia, por falta de condição de procedibilidade, como defende o juiz RICARDO GALBIATI (in A natureza jurídica da proposta de suspensão condicional do processo penal. São Paulo: IBCCrim n. 60 - nov/97, p.10),

Se o Ministério Público não propõe a suspensão com a denúncia, pode o juiz rejeitá-la com base no art. 43, inciso III, parte final, do CPP, por "faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal". O parágrafo único do art. 43 estabelece que a rejeição da denúncia não obstará o exercício da ação penal, desde que satisfeita a condição, ou seja, desde que se ofereça a proposta de suspensão, quando cabível.

Poderia também, com base no mesmo art. 43, inciso III, do CPP, não receber a incoativa, por falta de interesse de agir (segundo entende MARCELO ROCHA MONTEIRO, in Ausência de proposta do ministério público na transação penal: uma reflexão à luz do sistema acusatório. São Paulo: IBCCrim n. 69 - ago/98, p.19) ou simplesmente remeter o processo ao Procurador-Geral, na forma do art. 28 do CPP, em aplicação analógica.

A competência para a proposta de suspensão é do Ministério Público; a forma da proposta é escrita, concomitante à denúncia; e a finalidade é a despenalização e a célere resposta estatal à criminalidade, privilegiando-se os interesses da vítima. Tais são elementos vinculados, que não podem ser excluídos ou modificados sob pena de viciar-se o ato com nulidade, ainda mais quando se percebe que no sistema acusatório há rígida separação de funções entre o acusador e o julgador.

MARCELO ROCHA MONTEIRO acrescenta que "Ao abraçar a cláusula do devido processo legal, certamente não quis o constituinte manter um sistema processual penal onde existissem dois órgãos oficiais, promotor e juiz, para tomar iniciativas buscando a punição de um indivíduo, o segundo suprindo eventuais falhas do primeiro" (op. cit., p. 19).

Algumas decisões judiciais têm refletido a lógica do sistema acusatório:

"A medida prevista no art. 89, da Lei n. 9099/95, tem natureza de transação: o Ministério Público propõe ao réu abrir mão de seu direito/dever de ação, enquanto o réu abdica do direito do due process of law, submetendo-se a determinadas condições, que a norma prescreve. À evidência, a Lei 9099/95 não conferiu ao Judiciário a possibilidade de propor a suspensão ex officio do processo, porquanto, não sendo parte, não pode transacionar, até porque não pode o juiz dispor daquilo que não lhe pertence: o direito de ação. Não cabe o argumento de que a suspensão do processo deve ser concedida automaticamente, pelo magistrado, por se tratar de um direito subjetivo do réu. É que não deferiu o legislador ao juiz o poder de determinar a suspensão condicional do processo, no caso de não advir a proposta do Ministério Público, que é o dominus litis" (TJ-SP, mandado de segurança n. 224.533-3/7, 1ª Câmara Criminal, Rel. Des. JARBAS MAZZONI, j. em 05.05.97, unânime).

Buscamos ainda apoio no estimado professor HELY, que asseverava que "o que o Judiciário não pode é, no ato discricionário, substituir o discricionarismo do administrador pelo do juiz", devendo limitar-se a "proclamar as nulidades e coibir os abusos da Administração".(op. cit., p. 105).

Se o agente não dispõe de poder legal para a prática do ato, este é nulo, seja ele ato vinculado ou discricionário. No caso específico, falta ao juiz competência administrativa para manifestar a vontade do Estado-Administração de suspender o processo, mediante condições.

Isto porque a competência administrativa (atribuição) é um requisito de ordem pública do ato administrativo, e, como tal, é intransferível e insuscetível de ser alterada ao alvedrio do executor e contra disposição expressa de lei e da própria Constituição, especialmente o art. 129, §2º, segundo o qual "as funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira".

Negando-se motivadamente a proposta, só restará ao acusado requerer ao juiz que encaminhe os autos ao Procurador-Geral de Justiça ou ao Procurador-Geral da República, para que mantenha o entendimento negativo ou designe outro membro do Parquet para que efetue a proposta suspensiva.



17. A INDISPENSABILIDADE DO CONSENSO

Mais um argumento se expende contrariamente à tese de que pode o juiz suspender o processo ex officio ou a requerimento do acusado. É que, para a deliberação judicial, é necessário que antes tenha havido uma denúncia apta e que o acusado aceite a proposta. Depois, o juiz receberá a denúncia e só então poderá suspender o processo. Percebe-se, então, que a suspensão do processo somente ocorre após a aceitação da proposta pelo acusado e o recebimento da denúncia. Não havendo proposta, não poderá o magistrado tomar a iniciativa de propô-la, sob pena de ferir o princípio da inércia da jurisdição e de usurpar atribuições administrativas do Ministério Público.

E mesmo havendo requerimento do acusado, é vedada a suspensão contra a vontade do Parquet, porque não haverá o consenso objetivado pela lei e estarão ameaçados os interesses público e institucional pela possibilidade de breve implementação da extinção da punibilidade, ainda que certa a culpa.

Ao dispor que o juiz poderá suspender o processo, a lei estabelece expressamente que isso se dá caso seja "aceita a proposta pelo acusado e seu defensor". Para que algo seja aceito, é necessário que antes seja proposto. Aceita-se uma oferta e não um direito. A lei não tem palavras inúteis. Direito exerce-se. Proposta aceita-se. Quem propõe? O Ministério Público. O direito do Ministério Público é o de propor ou não. O direito subjetivo do acusado é o de aceitar ou recusar a proposta, não o de aceitar o que não lhe foi ofertado, nem o de exigir o que não lhe pertence, ou seja, exigir que o dominus litis abdique de seu direito à persecução penal, que, em última análise, nem é direito seu, mas da sociedade. Pensar o contrário é admitir que se façam liberalidades com o direito alheio.

Aqueles que defendem a possibilidade de suspensão ex officio, por si só absurda, esquecem que a tese desvia-se do princípio da inércia da jurisdição, prejudicando o direito ministerial ao processo e à condenação, pela interrupção daquele. No mínimo, prejudica-se o direito da sociedade à um provimento de mérito, qualquer que seja.

A Constituição impôs a separação de funções do Estado não apenas na fase pré-processual, mas também no transcurso do processo. Segundo aquele princípio, o Judiciário constitui um poder inerte, que somente se movimenta mediante a função de alavanca do Ministério Público e das advocacias pública e privada, representando essa inércia uma garantia do princípio da imparcialidade do julgador.

Ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA (in Curso de direito constitucional positivo, São Paulo: Malheiros, 9ª edição, p. 506) que "é um princípio basilar da função jurisdicional que o ‘juiz deve conservar (...) uma atitude estática, esperando sem impaciência e sem curiosidade que os outros o procurem e lhe proponham os problemas que há de resolver’. A inércia, lembra ainda Calamandrei, é, para o juiz, garantia de equilíbrio, isto é: de imparcialidade, que, sendo ‘virtude suprema do juiz, é resultante de duas parcialidades que se combatem’, parcialidades dos advogados das partes em disputa".

Segundo LUIZ FLÁVIO GOMES (op. cit., p. 168), o juiz não pode tomar a iniciativa da suspensão condicional do processo. Ou seja, não pode agir ex officio, porque "pelo jus positum (...) quem detém a legitimidade ativa é o Ministério Público", mas refere que o art. 89 confere ao Parquet um poder-dever que reclama manifestação positiva, no sentido da proposta, sempre que presentes os requisitos legais. E sustenta que, em caso de negativa ministerial, cabe ao acusado requerer a suspensão, que será deferida ou não pelo magistrado. Ainda assim, afirma o autor que tal deve se dar apenas como exceção à natureza bilateral da suspensão.

Sem dúvida essa não é a melhor solução, pois assim não se está a assegurar um direito subjetivo do réu, mas uma mera expectativa de direito, o que afasta a violação ao art. 5º, inciso XXXV, da CF, que trata de "lesão ou ameaça a direito". Ademais, as partes continuam em juízo, podendo o Judiciário, ao final, emitir decreto absolutório ou decisão condenatória conforme a culpabilidade do acusado. Em suma, nenhum prejuízo haverá.

Também não é boa solução porque desatende o princípio da consensualidade e usurpa atribuição ministerial (art. 129, §2º, CF), incorrendo em arbítrio. É evidente que a lei está sendo ferida pelo ato judicial, e não pela recusa fundamentada do MP, porque a suspensão perde sua natureza transacional, deixa de ser ato personalíssimo do titular da ação penal e perde o caráter voluntário.

Ademais, por força do princípio da isonomia processual (que garante a igualdade entre as partes), deve-se aplicar o art. 89, §7º, da Lei n. 9099/95, dando-se seguimento ao processo, caso a proposta de suspensão seja negada pelo promotor de Justiça e pelo Procurador-Geral, nos moldes do art. 28 do CPP.

O que se deve compreender é que o direito subjetivo do acusado à suspensão somente nasce após a conformação da avença processual, com a homologação da postulação pelo juiz. É que, a partir daí, o Ministério Público estará vinculado ao acordo firmado, não podendo ao seu alvedrio reiniciar o curso do processo, salvo se o acusado der ensejo ao rompimento do acordo. Ainda assim, o prosseguimento da ação não é automático, sendo necessária a revogação da suspensão, por ato judicial, assegurado, ainda aí, o contraditório, mediante a oitiva prévia do acusado.



18. PROPOSTA DE SUSPENSÃO SUBSIDIÁRIA

Ousamos colocar uma tese, que nos parece inédita, embora não seja a que melhor resolve o problema da oferta da suspensão condicional, em caso de negativa ministerial.

Recusando o Ministério Público o consenso, poder-se-ia prever a possibilidade de oferecimento de proposta de suspensão subsidiária, a ser manejada pelo ofendido ou seu representante legal, nas mesmas circunstâncias da ação penal privada subsidiária da pública, prevista no art. 5º, inciso LIX, da Constituição Federal, o que representaria uma forma legítima de controle da atuação do Ministério Público, em caso de inércia injustificada. Estaria instalado um verdadeiro controle externo da atividade ministerial.

Claro está que tal proposta subsidiária só seria factível quando o Ministério Público silenciasse na fase do art. 89, vale dizer, quando não propusesse a suspensão e não oferecesse fundamentação para a negativa. Nesta hipótese, abrir-se-ia à vítima ou a seu representante legal o ensejo de propor a suspensão, sempre em defesa de um eventual interesse à imediata reparação do dano.

Tal solução levaria certamente a uma maior participação do ofendido na relação processual penal, atendendo-se à principiologia da Lei n. 9099/95, sem ofender o sistema acusatório adotado na Carta Federal de 1988, que já prevê a exceção subsidiária como garantia individual.

E isto é fora de dúvida, pois, sendo a queixa-crime subsidiária a única exceção constitucional à regra da privatividade da ação penal pública, o aproveitamento da idéia in bonam partem, criando-se a proposta de suspensão condicional subsidiária, somente contribuiria para o êxito dos propósitos da Lei n. 9099/95, sem as contra-indicações da "transação" ex officio.

A inovação também teria a vantagem de manter o magistrado em sua posição original de imparcialidade, afastando-o da mesa de negociações como parte, mas mantendo-o nela como mediador e interlocutor qualificado do Ministério Público e do acusado.

Assim, não sendo proposta a suspensão pelo Ministério Público e não sendo apresentada justificativa plausível para a negativa, poderia a vítima ou seu representante legal oferecê-la, para atender o seu imediato interesse de reparação do dano sofrido. E aí estaria o interesse de agir do ofendido, cuja intervenção na lide se daria na condição de assistente da acusação, visando à defesa da pretensão primária cível.

Em tal hipótese de transação substitutiva, seria vedado ao Ministério Público opor-se ao consenso, segundo a regra dormientibus non sucurrit jus, devendo a instituição limitar-se a opinar como fiscal da lei, para garantir o atendimento dos requisitos legais e assegurar o cumprimento das obrigações estipuladas.

Todavia, essa solução não seria aplicável às infrações nas quais a vítima é indeterminada ou corresponde a uma coletividade ou a uma entidade sem personalidade jurídica, como nos crimes vagos. Daí se propugnar que, nesses casos, a proposta poderia partir de qualquer interessado, agasalhando o interesse geral de repressão à criminalidade.

Quanto aos crimes de dupla subjetividade passiva, que são aqueles que têm dois ofendidos em razão do tipo (DAMÁSIO dá o exemplo da violação de correspondência), a proposta subsidiária poderia partir de qualquer das vítimas: v. g., o destinatário ou o remetente da correspondência, no tipo do art. 151 do Código Penal.

Essas são sugestões ao legislador, mas a aplicação imediata desse entendimento não é vedado aos operadores jurídicos, mediante uma interpretação analógica do art. 5º, inciso LIX, da Constituição Federal.



19. AINDA ESPECULAÇÕES SOBRE A INICIATIVA DA TRANSAÇÃO LATO SENSU

Admitindo-se a aplicação do instituto do art. 89 às ações penais privadas, mesmo em relação a elas não seria possível impor-se ao querelante a suspensão. Na ação privada, o CPP conferiu ao ofendido o poder discricionário de conceder ou não o perdão ao querelado, extinguindo-se a punibilidade pela aceitação da mesura processual (bilateralidade). Mesmo assim, quanto a este instituto de mais de cinco décadas (o perdão), jamais a doutrina propugnou tratar-se de direito subjetivo do acusado.

Se não é lícito ao juiz, na ação privada, deferir o perdão do art. 105 do CP, que se chama, bem a propósito, "perdão do ofendido", como lhe seria facultado, na ação pública, firmar acordo com o autor do fato, impondo a sua vontade (a do julgador) à do Ministério Público? Onde estaria a diferença entre as partes para tratamento tal desigual, se o que se busca na ação penal como gênero é sempre um provimento de mérito que atenda à pretensão deduzida?

Assim, se na ação penal privada, o juiz não pode obrigar o querelante a fazer a proposta, nem pode substituir-se a ele, deve-se concluir que o entendimento que repudia a legitimidade exclusiva do Ministério Público à proposta suspensiva é incongruente e contraria os ditames constitucionais de cunho acusatório. Se o juiz não pode o menos (na ação privada), não pode o mais (na ação pública). Eis mais uma vez a lógica do razoável.

IRAHY BAPTISTA DE ABREU figura interessante hipótese acerca dos riscos da corrente de pensamento que aceita a atuação do juiz ex officio: "Encerra-se uma última questão: negada fundamentadamente pelo Ministério Público a proposta de suspensão, o juiz, arvorando-se em seu substituto, a oferece ao acusado que, por sua vez, recusa a oferta. Como ficará a situação do Magistrado, invadindo seara alheia e vendo negada sua proposta?!? Manterá a imparcialidade até o fim ou a perderá quando da sentença, pelo desaforo da não aceitação?!?".

FÁBIO MEDINA OSÓRIO imagina tal hipótese com mais graves conseqüências, pois vê o acusado e seu defensor numa posição inferiorizada diante do juiz, além do que eventual não aceitação da proposta acarretaria ao réu o ônus de ser sentenciado por seu "oponente", pela "parte" sentada à cabeceira da mesa de audiências (op. cit.).

Por conseguinte, se o juiz insiste na proposta ex officio, seja de transação seja de suspensão, cabe ao Ministério Público a impetração de mandado de segurança ou correição parcial (na Bahia, denominada reclamação) contra o ato iníquo e desbordante dos princípios constitucionais do processo penal.

Tem o Ministério Público direito líquido e certo ao devido processo legal. Com a suspensão ex officio, há uma paralisação temporária do processo, à espera de que o acusado cumpra certas condições. Caso seja violado o pacto, o processo continuará, mas tudo será como no início no que se refere à presunção de inocência, perdendo-se, por outro lado, valioso tempo na busca da verdade real. Isso deixa bem claro que a proposta ex officio (e mesmo aqueloutra formada exclusivamente com a vontade do acusado) limita o exercício da ação penal pelo Parquet, podendo trazer prejuízos ao resultado útil da ação penal.

Sigamos adiante na atividade especulativa. Haveria direito subjetivo à suspensão condicional, sendo o acusado inocente? Parece-nos que não, porque, neste caso, teria ele direito subjetivo a uma sentença absolutória, ao final da instrução, e não ao cumprimento das condições e limitações próprias ao instituto do art. 89 da Lei de Juizados Especiais. Mas como saber da inocência do réu nos albores da instrução penal, antes mesmo do recebimento da denúncia? Nesta fase, a dúvida sobre a culpabilidade é a regra, sendo consabido que tal incerteza se resolve em prol da sociedade, e não em favor do réu. Indo adiante, percebe-se que, se há dúvida sobre o merecimento da suspensão, o que deve prevalecer é o interesse público, deixando-se que o processo siga seu curso, a fim de que, finda a colheita probatória, o juiz profira o veredicto quanto à culpabilidade ou não do acusado.

Ainda há de se ver que a suspensão condicional do processo leva imediatamente à obrigação de reparar o dano. Pode ser considerado um direito subjetivo o "direito" a uma obrigação? Essa tese é de penosa demonstração, máxime quando se sabe que o autor do fato, o denunciado, em certa medida está renunciando a um direito muito mais evidente: o da ampla defesa no processo penal e também em eventual ação cível reparatória ex delicto. Mais intrincado ainda se torna o problema, quando se considera também que a rapidez na imposição dessa obrigação reparatória é em certo sentido prejudicial aos interesses econômicos do acusado. Em face de tantas variáveis, mais ou menos prejudiciais ao réu, parece difícil continuar a afirmar a natureza de direito subjetivo da proposta de suspensão condicional do processo.

Deixemos as perguntas acima sem resposta. É que elas encontram solução em si mesmas, evidenciando que o único mecanismo consentâneo e compatível com o sistema processual penal emergente da Carta Republicana de 1988 é o que remete à aplicação analógica do art. 28 do CPP.

Como já advertia LUIZ FLÁVIO GOMES, na primeira edição de sua conhecida monografia (op. cit., p. 124), a tarefa de fixar os contornos finais da suspensão condicional do processo caberia à doutrina e à jurisprudência. De fato, isto tem sido feito, e o foi com muita propriedade, pelo Supremo Tribunal Federal. É isso o que agora se analisará.



20. LEADING CASE: O CASO HOSKEN

No julgamento do habeas corpus n. 75.343-4, impetrado em favor do paciente JUAREZ QUINTÃO HOSKEN FILHO, contra coação atribuída ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, nos termos dos votos dos Ministros Octavio Gallotti e SEPÚLVEDA PERTENCE, que cabe ao Ministério Público a iniciativa exclusiva de propor a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei Federal n. 9099/95.

Os Ministros OCTAVIO GALLOTTI, então relator, e NELSON JOBIM, votaram pelo indeferimento do remédio heróico, argumentando que havendo recusa fundamentada do Ministério Público, posicionando-se pelo não oferecimento da proposta de suspensão condicional, o juiz não pode exercer tal atribuição, porque não se trata de direito subjetivo do acusado, e sim de ato que se acha dentro da esfera discricionária do Parquet.

O voto do Ministro NELSON JOBIM é muito significativo, porque ele foi um dos autores dos dispositivos cíveis da Lei n. 9099/95, tendo participado ativamente dos debates que precederam sua aprovação no Congresso Nacional, onde então exercia mandato de deputado federal. Por conseguinte, ninguém melhor que o Min. JOBIM para dizer do espírito da lei e da intenção do legislador nos arts. 76 e 89 da Lei dos Juizados Especiais.

O precedente jurisprudencial é de 12 de novembro de 1997, com prevalência do voto do Ministro Octavio Gallotti, relator. A decisão foi majoritária, firmando o entendimento de que a proposta do art. 89 da LJE é uma faculdade exclusiva do Parquet, em atenção ao princípio do art. 129, inciso I, da CF, "não podendo o juiz da causa substituir-se a este". Foi voto vencido o Min. MARCO AURÉLIO, que reconhecia a tese do direito subjetivo do réu ao benefício, desde que presentes os requisitos objetivos para a suspensão do processo.

Também por maioria, considerando-se que o art. 89 da LJE "alude ao Ministério Público na qualidade de instituição", a Corte Suprema deliberou que "na hipótese de o promotor de Justiça recusar a fazer a proposta, o juiz, verificando presentes os requisitos objetivos para a suspensão do processo, deverá encaminhar os autos ao Procurador-Geral de Justiça para que este se pronuncie sobre o oferecimento ou não da proposta".

Interpretou-se que o art. 89 mitigou o princípio da obrigatoriedade da ação penal para efeito de política criminal. Sendo assim, para orientação de tal política, tem prevalência o princípio da unidade do Ministério Público, previsto no art. 127, §1º, da CF, a fim de que a discricionariedade reconhecida não seja transferida ao subjetivismo de cada promotor de Justiça. Nesse ponto foi vencido o relator originário, Min. Octavio Gallotti, com o entendimento de que a Lei n. 9099/95 não autorizava tal procedimento administrativo. Em razão disso, foi relator para o acórdão o Min. Sepúlveda Pertence, que sustentou a aplicabilidade do art. 28 do CPP, na hipótese de recusa do membro do Parquet.

Em 14 de abril de 1998, no julgamento do habeas corpus n. 76.436, do Paraná, tendo como relator o Ministro NÉRI DA SILVEIRA, manteve-se a orientação, cassando-se a sentença condenatória e o acórdão guerreados, que inadmitiram a suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da Lei n. 9099/95, para que fosse dada oportunidade ao Ministério Público de primeiro grau para manifestar-se sobre a aplicação do referido instituto.

O posicionamento firmou-se em 12 de maio de 1998, no julgamento do habeas corpus 76.439-SP (STF, 1ª Turma, Rel. Min. Octavio Gallotti), quando se decidiu que:

"Tendo em vista que a suspensão condicional do processo é uma faculdade do Ministério Público para fins de política criminal, a Turma deferiu em parte o habeas corpus para que a recusa do promotor de justiça em fazer proposta de suspensão condicional do processo, seja submetida à Procuradoria-Geral de Justiça, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 28 do CPP. Orientação adotada pelo STF no julgamento do HC n. 75.343-MG (Pleno, 12.11.97, v. Informativo n. 92)".

Ultimamente, em outras esferas judiciárias, têm sido valorizadas as atribuições do Ministério Público, como dominus litis e titular da atividade persecutória penal, não só em juízo, como também em sua atividade investigatória extrajudicial, assegurando à instituição o direito ao acesso direto a informações mesmo cobertas por sigilo, como o bancário (vide o HC n. 98.02.05425-ES, do TRF da 2ª Região). A orientação do STF no tocante à suspensão condicional do processo é indicativa dessa tendência.

O boletim Informativo STF n. 123, de 14 de novembro de 1998, no título "Ministério Público e Suspensão do Processo", noticiou a seguinte decisão da 2ª Turma da Corte Constitucional:

"Compete ao Ministério Público a iniciativa exclusiva para propor a suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da Lei 9.099/95 ("Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangida ou não por esta lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que..."). Com esse entendimento, a Turma, por maioria, indeferiu o pedido relativamente ao trancamento da ação penal, vencido o Min. Marco Aurélio que o concedia para tornar a denúncia insubsistente, podendo, sobre os mesmos fatos outra ser oferecida, e, a seguir, por unanimidade, deferiu em parte o habeas corpus para determinar seja, no juízo de origem, aberta vista ao Ministério Público para fins do art. 89 da Lei 9.099/95, atendendo a orientação adotada pelo Tribunal no HC 75.343-MG (v. Informativos 76 e 92), aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 28 do CPP. Precedentes: HC 76.439-SP (DJU de 21.08.98) e HC 74.153-SP (DJU 21.03.97). HC 77.723-RS, rel. Min. Néri da Silveira, 15.9.98."

O Informativo n. 128 do STF trouxe a notícia do julgamento de outro habeas corpus no qual se manteve a discricionariedade do Ministério Público para a propositura da suspensão condicional do processo:

"O disposto no art. 89 da Lei 9.099/95 ["Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)"] aplica-se integralmente à justiça militar, inclusive quanto à observância dos requisitos do art. 77 do Código Penal. (...) Habeas corpus concedido para que, retornando à 1ª instância os autos da ação penal, o Ministério Público manifeste-se a respeito da suspensão, ou não, do processo como determinado pelo art. 89 da Lei 9.099/95. Vencido o Min. Moreira Alves, que indeferia a ordem por entender que as hipóteses de exclusão da suspensão condicional da pena previstas no Código Penal Militar são condições objetivas, não se tratando, portanto, de requisitos subjetivos do réu" (HC n. 77.856-AM, rel. Min. Octavio Gallotti, 20.10.98).

No entanto, em que pese tal orientação já firme do Supremo Tribunal Federal, algumas turmas do Superior Tribunal de Justiça ainda vêm sustentando que a proposta do art. 89 da Lei de Juizados Especiais é direito subjetivo do acusado, aduzindo que "o juiz não deve estar vinculado à recusa do Ministério Público" (RHC n. 7.583/SP, 5ª Turma, rel. Min. Edson Vidigal, v.u., DJU 31/08/98).

Naturalmente, esse posicionamento da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça tende a se tornar minoritário, tendo em conta a orientação adotada pelo STF em mais de um julgamento, bem assim considerando que já se instalou divergência na mesma turma do STJ, como se pode ver do seguinte excerto de decisão:

Acórdão da 5ª Turma do STJ, unânime, no Recurso Ordinário em habeas corpus n. 98/0051741-3, Relator Ministro FÉLIX FISCHER, em 25/08/1998:

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO DE HABEAS CORPUS. LEI N. 9099/95. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. MAJORANTE (CRIME CONTINUADO).

I - Para verificação dos requisitos da suspensão condicional do processo (art. 89), a majorante do crime continuado deve ser computada.

II - A eventual divergência entre o agente do Parquet e o Órgão Julgador, acerca do oferecimento da suspensão se resolve, analogicamente, com o mecanismo do art. 28 do CPP. Precedentes. Recurso desprovido."

Anteriormente, o STJ já decidira que "A suspensão condicional do processo prevista na Lei 9099/95 se circunscreve no princípio da discricionariedade regulada, da vontade consciente do acusado e seu defensor, e da desnecessidade da aplicação da pena privativa de liberdade de curta duração, tendo em vista o menor potencial ofensivo da infração" (HC 5027, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJU 28.04.97).

Por tudo, conclui-se com o sempre lembrado FREDERICO MARQUES, que o princípio da legalidade (ou obrigatoriedade) da ação penal e o da oportunidade podem conviver no sistema processual penal. É isso o que se está assistindo, no momento em que se tenta dar a maior vitalidade possível aos institutos da Lei n. 9099/95, que incomodam as velhas concepções dominantes, mas que descortinam um horizonte límpido no futuro da Justiça Criminal consensual.



21. SUGESTÕES PARA O PORVIR

Como sugestão do direito por legislar, pode-se estabelecer, em parágrafo do art. 89 da LJE, que a negativa de transação penal ou de suspensão condicional do processo, pelo membro do Parquet, seja submetida, tal como o arquivamento do inquérito civil ou a homologação do termo cível de ajustamento de conduta, ao controle hierárquico do órgão colegiado superior da instituição: o Conselho Superior do Ministério Público.

Com a medida, seria transformada em lei a orientação do Supremo Tribunal Federal, aperfeiçoando-a, uma vez que seriam eliminadas as desvantagens de uma decisão monocrática a cargo do Procurador-Geral de Justiça ou do Procurador-Geral da República, decisão esta que também poderia estar sujeita a vícios de subjetivismo.

Esse sistema de reexame não é novo e foi introduzido na ordem jurídica brasileira pela Lei Federal n. 7347/85, sendo reproduzido em várias leis orgânicas estaduais do Ministério Público, como na Lei Complementar Estadual n. 11, de 18 de janeiro de 1996, do Estado da Bahia.

FÁBIO MEDINA OSÓRIO é favorável a essa forma de controle hierárquico pelo órgão colegiado superior do Parquet (in O consensus na transação pena e suspensão condicional do processo penal: observações sobre a lei n. 9099, de 26-09-95), mas não deixa de sugerir a possibilidade de impetração de habeas corpus contra resolução arbitrária do Conselho ou ato ilegal do Procurador-Geral, no caso de se inviabilizar injustificadamente o acordo.

É também o promotor gaúcho quem anota parte do voto do Juiz de Alçada TUPINAMBÁ PINTO DE AZEVEDO (na correição parcial n. 296003734, da 2ª Câmara Criminal do TA-RS) a respeito da transação penal sem participação do Ministério Público:

"Em hipótese alguma o juiz transaciona, já que é da essência da transação a renúncia a algum direito ou bem. Quem pode transacionar é parte: de um lado, desiste o Ministério Público de buscar a condenação tout court, que importaria em pressuposto da reincidência, maus antecedentes, responsabilidade civil, etc; de outro, renuncia o réu à possibilidade de absolvição (...) Agindo o magistrado de ofício a que renuncia? De que direitos abre mão?".

No mesmo processo legislativo de alteração da Lei n. 9099/95, poderia ser prevista inclusive a possibilidade de recurso administrativo da vítima ou seu representante legal ou de qualquer interessado, independentemente do encaminhamento judicial dos autos ao Procurador-Geral, com faculdade de apresentação de documentos, para que se assegure ao ofendido um espaço próprio no novo modelo de justiça consensual.

A decisão do STF é merecedora de aplausos, por fixar caminho seguro a seguir, mas não inova. Doutrinadores de escol já defendiam a aplicação analógica do art. 28 do CPP à hipótese em relevo.

Outros, como JÚLIO FABBRINI MIRABETE, apresentaram argumentos indispensáveis à supremacia da tese da legitimidade exclusiva do Ministério Público para a proposta:

"Ao contrário do que já se tem afirmado, entendemos não ser a transação prevista no art. 76 um direito público subjetivo do autor do fato, de modo a possibilitar que seja apresentada contra a vontade do Ministério Público, quer por iniciativa do juiz, quer por requerimento do interessado. Trata-se, aqui, do eventual exercício da pretensão punitiva, cabendo exclusivamente ao Promotor de Justiça a titularidade do jus persequendi in judicio, nos expressos termos do art. 129, I, da Constituição Federal" (in Juizados especiais criminais, São Paulo: Atlas, 1997, p. 82).

O renomado processualista assinalava ainda que o Ministério Público "é o titular, privativo, da ação penal pública, afastada a possibilidade de iniciativa e, portanto, de disponibilidade por parte do juiz (art. 129, I, da Constituição Federal). Não pode, portanto, a lei, e muito menos uma interpretação extensiva dela, retirar-lhe o direito de pedir a prestação jurisdicional quando entende que deva exercê-la. Consagrado pela Constituição Federal o sistema acusatório, onde existe a separação orgânica entre o órgão acusador e o órgão julgador, não pode um usurpar a atribuição e competência do outro. Por conseqüência, ao titular do jus persequendi pertence com exclusividade também a disponibilidade da ação penal quando a lei mitiga o princípio da obrigatoriedade".

E arremata que "A concessão do benefício sem a concordância do Ministério Público desnatura a relação própria dessa espécie de transação admitida pela Constituição Federal. Consenso é ato bilateral, acordo, livre adesão de vontades e, onde há obrigatoriedade ou imposição a uma das partes, não se pode falar em transação ou consenso" (op. cit., p. 153).

Por essa natureza bilateral, admite-se, na suspensão condicional do processo, a existência de contraproposta por parte do acusado, restando apenas, como verdadeiro direito subjetivo, o de obter do Ministério Público, como ente da Administração, uma prestação, entendida esta como manifestação positiva ou negativa e fundamentada, acerca da transação ou da suspensão, quer acordando, quer não. Resta também ao acusado o direito de, consensualmente implementada a suspensão, alcançar os resultados que dela decorrem, desde que cumpridas as condições avençadas.



22. CONCLUSÃO

A título de conclusão, podemos delinear os seguintes tópicos, já respondendo à pergunta-título:

1. A suspensão condicional do processo e a transação não constituem direitos subjetivos do acusado, mas sim faculdades postas à disposição do Ministério Público para fins de política criminal, no exercício da ação penal, agora informada pelo princípio da oportunidade.

2. O acusado somente tem direito subjetivo à manifestação, negativa ou positiva, do Estado-Administração quanto aos institutos dos arts. 76 e 89 da Lei n. 9099/95. A suspensão e a transação, que devem resultar do acordo de vontades das partes e da conformidade, constituem meras expectativas de direitos.

3. Ante a recusa do Ministério Público em oferecer proposta transacional lato sensu, o juiz não pode agir ex officio, cabendo-lhe remeter os autos ao Procurador-Geral, mediante aplicação analógica do art. 28 do CPP. O Parquet é ente do Estado-Administração e decide e opta conforme a legalidade e o mérito administrativo, cuja apreciação, dentro do âmbito de discricionariedade, é vedada ao Judiciário.

4. A Lei n. 9099/95 tem como fundamento o consenso, prevendo um processo de partes, não se permitindo a violação da autonomia da vontade de qualquer delas. Nesse sentido, em atenção à isonomia e à bilateralidade, não pode o magistrado conceder a suspensão ou a transação, atendendo requerimento do acusado, sem a concordância do Parquet.

5. No sistema processual penal brasileiro, vige o princípio acusatório (art. 129, I, CF), com rígida separação das funções do órgão acusador e do órgão julgador. Este está vinculado ao princípio da inércia da jurisdição de forma a garantir sua imparcialidade. Aquele é o titular privativo da ação penal, exercendo-a em um processo contraditório.

6. De lege ferenda, sugere-se o aperfeiçoamento do reexame hierárquico da negativa ministerial à transação lato sensu, de modo a permitir o controle por órgão colegiado da Administração Superior do Ministério Público.

7. Propõe-se também, no direito do porvir, seja admitida, em caso de inércia absoluta do Ministério Público, que a vítima, seu representante legal, ou qualquer interessado (nos crimes vagos), ofereça proposta subsidiária de suspensão condicional, nos moldes da ação penal privada substitutiva da pública (art. 5º, inciso LIX, da CF).


Autor

  • Vladimir Aras

    Vladimir Aras

    Professor Assistente de Processo Penal da UFBA. Mestre em Direito Público (UFPE). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Procurador da República na Bahia (MPF). Membro Fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAS, Vladimir. Suspensão condicional do processo: direito subjetivo do acusado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1083. Acesso em: 24 abr. 2024.