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Mídias audiovisuais e tribunais.

Uma análise comparativa sobre o televisionamento dos debates judiciais com base nas experiências brasileira e francesa

Mídias audiovisuais e tribunais. Uma análise comparativa sobre o televisionamento dos debates judiciais com base nas experiências brasileira e francesa

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RESUMO

O presente artigo visa investigar os impactos da cobertura televisiva de audiências judiciais sobre o princípio democrático e seu corolário da publicidade dos atos processuais. Para recortar mais o objeto de estudo, a questão será analisada através da descrição e comparação da questão conforme colocada no âmbito de apenas dois países – Brasil e França. Ao final da exposição, espera-se que o contraste entre as duas experiências possa facilitar principalmente a compreensão das questões que envolvem as relações entre as mídias audiovisuais e o judiciário no Brasil atual.

ABSTRACT

The present article aims to investigate the impacts of the television covering of judicial audiences on democratic principle and his corollary of the publicity of the processual acts. To narrow our object of study, the question will be analysed through the description and comparison of the question as put in the context of only two countries – Brazil and France. To the end of the exhibition, it is expected that the contrast between two experiences could make easy principally the understanding of the questions that currently wrap the relations between the audiovisual mediae and the judiciary in Brazil..

PALAVRAS-CHAVE: Publicidade Atos Processuais – Mídia – Democracia.

KEY WORDS: Publicity – Procedural Acts – Media – Democracy.


1.Introdução

Segundo o cientista político italiano Giovanni Sartori, o homo sapiens está sendo substituído pelo homo videns [01]. O primeiro remodelou o mundo e construiu sua civilização tendo como principal ferramenta sua atividade simbolizante, ou seja, a habilidade de comunicar-se por meio de sons articulados e sinais com significado. As linguagens faladas e escritas seriam, nesse sentido, constituintes da própria natureza de nossa espécie. Todavia, o aparecimento da televisão em meados do século XX e a consolidação de uma indústria em torno desse novo meio de comunicação, haveria, afirma Sartori, interrompido e retrocedido o desenvolvimento humano. O uso da imagem direta teria sobrepujado as criações do pensamento abstrato como instrumento de transmissão de informação. Em conseqüência, o homem que pensava abstratamente e se comunicava por meio de símbolos teria se tornado um ser que apenas vê, por isso chamado homo videns. Essa transformação teria retirado da espécie grande parte do poder crítico que lhe fora tão útil no desenrolar de sua história.

Concordemos ou não com a reflexão do autor, um dado que sobressai inconteste em sua análise e o protagonismo da comunicação por imagens no seio da sociedade contemporânea. A televisão, a maior entre as máquinas modernas de difusão de imagens, despeja todos os dias uma infinidade de informações que irão construir o sentido da realidade de inúmeros indivíduos. Um objeto ou acontecimento muito distante que é incessantemente comunicado pela TV pode parecer mais próximo do que os que se encontram fisicamente próximos de nós. Não é absurdo supormos que a maioria dos cariocas conhece melhor o aspecto dos táxis nova-iorquinos ou dos ônibus londrinos, do que os congêneres da cidade vizinha de Niterói...

Nessa conjuntura social marcada pela produção e difusão visual da realidade, o Poder Judiciário é assediado por novas questões. Não lhe basta mais cumprir austera e silenciosamente a função de pacificação e controle social, há uma forte pressão para que seus afazeres sejam exibidos abertamente para uma audiência ávida por encher os olhos com os dramas humanos que diariamente aportam aos tribunais. Os meios de comunicação de massa, cujos interesses mercadológicos levam-nos a saciar a sede de imagens do telespectador, pressionam para que a o judiciário se apresente diante das câmeras.

Ademais, a despeito dessas circunstâncias, a própria noção de democracia que está na base do Estado não permite que um poder ‘exercido em nome do povo’ se furtasse a expor suas entranhas para esse mesmo povo. Democracia e publicidade são faces distintas da mesma moeda. Porém, a publicidade indiscriminada pode colocar em riscos outros valores, como a privacidade, a dignidade humana, a segurança jurídica, entre outros também priorizados num Estado Democrático de Direito. A tensão entre os interesses do judiciário, dos meios de comunicação social e do público em geral clama por solução que componha essas diversas perspectivas.

Podemos concluir que os avanços tecnológicos dos instrumentos de comunicação implicam na redefinição de diversos institutos atinentes à prestação da função jurisdicional. O interesse crescente pela transmissão televisionada dos debates judiciais confere outra dimensão, notadamente, ao alcance e a natureza do princípio da publicidade que informa a realização dos atos processuais. No presente trabalho iremos investigar a experiência francesa e brasileira quanto a essa tormentosa questão.


2.A publicidade dos atos processuais vista como Direito Fundamental numa ordem democrática.

No âmbito dos Estados Democráticos contemporâneos nos acostumamos à idéia de que certos direitos seriam inerentes à condição humana e à condição de cidadão numa comunidade política. Esses direitos inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis comporiam o acervo dos chamados Direitos Fundamentais dos indivíduos. Eles seriam, ao mesmo tempo, uma proteção contra abusos perpetrados pelo Estado e pelos demais membros da sociedade, bem como uma fonte de obrigações positivas instituídas em favor de seus titulares.

Nos Estados Democráticos de Direito todos os poderes públicos devem respeitar os Direitos Fundamentais cidadãos, hoje previstos na Constituição e em inúmeros tratados internacionais. Desse modo, é vedado ao Poder Judiciário, uma das manifestações de poder do Estado, escapar a tais normas imperativas. Em conseqüência, constata-se que entre os Direitos Fundamentais não se encontram apenas normas de direto material, nesse rol também se inscrevem normas que dizem respeito ao exercício da atividade de tutela jurisdicional dos demais direitos dos indivíduos. Os cidadãos detêm garantias de preservação de sua dignidade em todas as relações com o Estado, inclusive naquelas onde o procura para pacificar conflitos ou administrar interesses juridicamente protegidos. Neste trabalho não pretendemos discorrer sobre as várias garantias que comporiam o conteúdo de um processo que trate de forma justa os cidadãos que buscam a tutela jurisdicional de seus direitos [02]. Pretendemos, focalizar especificamente uma dessas garantias, qual seja, aquela da publicidade dos atos processuais.

A publicidade dos atos de manifestação de poder do Estado é um corolário do regime democrático. Nos Estados onde a Constituição atribui a titularidade do poder político ao povo e tão-somente seu exercício a delegados, nenhum ato que o manifeste poderá escapar ao controle da população. Todavia, como poderia ser efetivado o controle de algo que não é visto? Norberto Bobbio ao referir-se sobre a correlação entre publicidade e o regime democrático afirma que: "com um aparente jogo de palavras pode se definir o governo da democracia como o governo do poder público em público". [03]

Especialmente no que tange ao braço judicial do Estado, a publicidade é essencial. Nessa atividade o princípio ganha vulto maior, pois se os outros poderes estatais legitimam-se a priori pela força das urnas, ao judiciário falta tal legitimação. Resta-lhe apenas justificar seus atos com esteio no ordenamento jurídico, para que depois de praticados sejam vistos como válidos e legítimos por seus destinatários.

Surge de tais circunstâncias um Direito Fundamental dos cidadãos à publicidade dos atos praticados no âmbito do processo judicial, só assim poderão controlar o exercício do poder entregue fiduciariamente às autoridades. Conforme afirma Leonardo Greco:

A publicidade dos atos processuais é uma das mais importantes garantias do processo democrático, pois é o único instrumento eficaz de controle da exação dos juízes no cumprimento dos seus deveres e no respeito à dignidade humana e aos direitos das partes. Por isso, dela depende a credibilidade e a confiança que a sociedade deve depositar na Justiça. Justice is not only to be done, but to be seen [04].

Em suma, o Estado Democrático de Direito pode ser decomposto em duas proposições subentendidas na própria expressão que o designa. Em primeiro lugar, consiste num Estado onde o povo é o verdadeiro o detentor do poder político, que será exercido em seu nome e proveito. Em segundo, é um Estado onde o poder político submete-se ao Direito. Assim, para que a população possa fiscalizar eventual distanciamento em relação a sua vontade ou à vontade do Direito, e o exercício concreto do poder político, é preciso que seja dado ao público conhecer os atos que representam esse exercício. Outrossim, inclusive os atos praticados no processo judicial serão públicos para que não fujam à fórmula democrática. Conforme sintetiza Sandrine Roure: "o princípio democrático impõe que a Justiça seja pública" [05].

2.1. A redefinição do alcance Publicidade dos Atos Processuais por força do crescimento das Mídias Audiovisuais.

Apontamos no item precedente a estreita vinculação ente o regime político democrático e a publicidade dos atos estatais. Ocorre que no mundo atual as formas de realização da política foram reformuladas pelos modernos instrumentos de comunicação social. A chamada mass media concorre hoje com as instituições políticas tradicionais na tarefa de concretização da democracia. O pesquisador da Unicamp, Luís Felipe Miguel, cujo foco de investigação tem se voltado para as relações entre mídia e política, traça o seguinte panorama:

Nas sociedades contemporâneas, eles [os meios de comunicação de massa] detêm o quase-monopólio da difusão de informações, de discursos e de representações simbólicas do mundo social; são a fonte, direta ou indireta, da esmagadora maioria das informações de que os cidadãos dispõem para compreenderem o mundo social em que vivem. Na medida em que o debate público não se limita a fóruns formais como o parlamento, mas deve alcançar o conjunto da sociedade, é evidente que a mídia passa a desempenhar uma função-chave [06].

Essas transformações da política inevitavelmente afetam o Poder Judiciário. Conforme os meios de comunicação avançam sobre o espaço público e assumem o papel de grande mediador do discurso dos vários grupos sociais, surgem pontos de afinidade e atrito com os trabalhos da Justiça, tradicional instituição estatal de mediação de conflitos de interesses. Aliás, estudiosos do tema afirmam num tom crítico que a mídia agiria de forma a enfraquecer o exercício das funções precípuas do Judiciário. Nesse sentido, Antoine Garapon entende que o processo tem natureza cerimonial, servindo para canalizar a violência do grupo social contra os transgressores de suas regras. Para cumprir essa finalidade a Justiça teria construído a ritualística processual, onde o tempo, o espaço e a realidade seriam reconstruídos de forma a distanciar e conter a violência privada. Acontece que, para o autor, "em nome de uma pretensa transparência, os media não vão descansar enquanto não conseguirem minar essa montagem simbólica" [07].

Diante dessa realidade é necessário que se repense o alcance a ser dado ao princípio da publicidade dos atos processuais. Se por um lado o desenvolvimento das mídias audiovisuais possibilita alargar imensamente a publicidade doas atos processuais, por outro devemos distinguir com clareza as conseqüências dessa ampliação. A publicidade, que é um princípio salutar da democracia, pode, se usada com destempero, tornar-se um fator de desestabilização da atividade judicial. Não são raros os atropelos na relação entre mídia e Judiciário, conforme nos lembra o lamentável caso da Escola Base [08]. A sabedoria proverbial ensina que: "a diferença entre o veneno e o remédio, é uma questão de dose e ocasião". Assim, cumpre aos juristas equacionar essa tensão de forma que os meios de comunicação sejam utilizados para permitir uma judicialização do debate público segundo os ditames da democracia e do direito, ao invés de uma desbordar numa midiatização do processo judicial, regida pelos interesses privados dos órgãos de comunicação social [09]. Vale lembrar que embora exerçam função de eminente interesse público, os meios de comunicação social regulam-se hoje pela lógica de mercado do capitalismo contemporâneo.


3.A Experiência francesa na abordagem da relação entre Mídia e Judiciário.

A França apresenta uma peculiar tradição intelectual atinente à tormentosa relação entre mídia e judiciário. Para exemplificar, basta lembrarmos do célebre caso Dreyfus e do panfleto de Emilé Zola, J’Accuse. Nele o escritor francês, através da publicação de um inflamado artigo no jornal L’aurore, acusa os Tribunais de seu país de terem cometido um teratológico erro no julgamento do oficial francês de origem judaica, Alfred Dreyfus [10]. Mas, para além da tradição, o assunto continua a preocupar os juristas franceses. Antoine Garapon, juiz aposentado e diretor do Instituto de Altos Estudos da Escola Nacional da Magistratura Francesa, pioneiramente vem alertando para uma ‘deslocalização do palco judiciário para a mídia’ [11].

Essa discussão ganhou novo impulso com a elaboração do chamado ‘Relatório Linden’ [12]. O documento é fruto dos esforços de uma comissão interdisciplinar de juristas, sociólogos, psicólogos, profissionais de comunicação, etc, reunida a pedido do Ministro da Justiça e encabeçada pela Presidente da Corte de Apelações, Elisabeth Linden. O grupo de especialistas foi incumbido de analisar e propor modificações no sistema francês de regulamentação da atividade de gravação e difusão dos debates judiciais. A legislação vigente na França não permite o registro e a difusão dos debates judiciários, a não ser para a hipótese de constituição de arquivos históricos. Porém, a crescente solicitação das mídias audiovisuais e o casuístico comportamento dos Tribunais no tratamento desses pedidos motivaram a iniciativa do Ministério da Justiça.

Pesando os prós e contras da situação, a comissão preconizou o fim da interdição legal da gravação e difusão dos debates judiciários e sua substituição por um dentre dois modelos sugeridos de regulamentação: a) o da liberdade enquadrada (parecer da minoria); b) e o da autorização prévia (parecer da maioria). Todavia, a pronúncia no sentido de permitir o registro e a divulgação das imagens de audiências judiciais foi acompanhada de uma série de recomendações visando proteger as pessoas envolvidas no processo, a dinâmica intrínseca da atividade judicial, entre outros pontos relevantes. Resumidamente, as medidas sugeridas foram:

a)Para proteção dos participantes do processo.

A.1.) Preservar os interesses de menores e incapazes.

A.1.1.) Colher autorização prévia do juiz, após parecer do ministério

público, para registro e difusão de todas as audiências.

A.1.2.) Colher o consentimento dos representantes legais das pessoas protegidas.

A.1.3.) Obrigar os meios de comunicação social a garantir anonimato completo e efetivo.

A.2.) Assegurar proteção máxima às testemunhas e aos jurados.

A.2.1.) Confer ao magistrado que preside a audiência o poder de proibir a captação dos depoimentos das testemunhos e/ou a leitura das suas declarações.

A.2.2.) Dar ao magistrado o poder de impor o anonimato das testemunhas.

A.2.3.) Subordinar a divulgação à anonimização das testemunhas, salvo consentimento escrito, prévio e esclarecido da parte, em favor dos meios de comunicação social..

A.2.4.) Proibir a captação da imagem dos jurados..

A.3.) Assegurar uma proteção mediana das partes de qualquer audiência não pública.

A.3.1.) Impor aos meios de comunicação social que recolham de antemão e por escrito o consentimento esclarecido das partes..

A.3.2.) Impor a obrigação de anonimização das partes.

A.4.) Assegurar uma proteção mínima de outras pessoas.

A.4.1.) Informar sobre a captação e a divulgação (parecer majoritário) ou recolher o seu consentimento (parecer minoritário).

A.4.2.) Impor a anonimização dos auxiliares da justiça.

A.4.3.) Permitir aos participantes dirigir ao Tribunal uma petição escrita contra a captação das imagens da audiência.

A.4.4.) Permitir aos magistrados, aos serventuários da justiça e a todos os outros intervenientes pedir ao Tribunal sua anonimização em caso de risco a sua segurança pessoal..

A.4.5) Não autorizar as pessoas que assistem à audiência opor-se à captação e a divulgação da sua voz e imagem.

b)Para preservar a dinâmica da atividade judicial:

B.1.) Garantir a serenidade dos debates judiciais.

B.1.1.) Preservar o poder de polícia do magistrado que preside a audiência.

B.1.2.) Preservando o sigilo profissional e os direitos da defesa, proibindo a captação de diversas comunicações, nomeadamente entre profissionais e entre advogados e clientes

B.1.3.) Equipar as salas de audiência para limitar as perturbações.

B.1.4.) Formar os quadros do judiciários para que estejam preparados para a presença dos meios audiovisuais de comunicação social.

B.2.) Autorizar unicamente a captação integral dos debates, ou a captação apenas da abertura da audiência e da entrega da decisão.

B.2.1.) Excepcionalmente, permitir tomadas de vista ou de som, antes da abertura da audiência e depois do pronúncia da decisão.

B.2.2.) Prever que os incidentes relativos à captação não terão efeito sobre a regularidade do procedimento.

B.3.) Privilegiar a difusão integral dos debates judiciais.

B.3.1.) Considerar a criação de uma canal exclusivo.

B.3.2.) Considerar a transmissão pela Internet dos debates judiciais.

B.4.) Na impossibilidade de exigir a divulgação integral, autorizar a

divulgação de extratos dos debates judiciais.

B.4.1.) Deixar a responsabilidade da escolha das imagens e/ou o som e a sua montagem aos meios de comunicação social.

B.4.2.) Sancionar eventuais ilícitos de acordo com as regras comuns da responsabilidade civil, penal e administrativa.

B.5.) Proibir a divulgação antes da entrega da decisão sob pena de aplicação de sanções penais, civis, administrativas

B.6.) Difundir os debates por curto prazo.

B.7.) Submeter qualquer retransmissão ou qualquer outra exploração à autorização do Tribunal.

B.8.) Proibir qualquer forma de remuneração àqueles que tiverem suas imagens captadas.

B.9.) Proibir propagandas publicitária e patrocínio quando durante a difusão.

C) Outras medidas protetivas.

C.1.) Criar um documento que padronize questões técnicas como a utilização de closes sobre pessoas, planos longos, planos de corte, instalação fixa e discreta das câmeras, credenciamento da mídia, criação de associações técnicas para captação, etc.

C.2) Prever uma fase experimental e ao seu término a elaboração de um balanço.

Em conclusão, o Relatório Linden transparece uma discussão amadurecida sobre o delicado equilíbrio das tensões geradas no confronto entre a publicidade processual ampliada pelos meios de comunicação social, a necessidade de tutela das pessoas envolvidas no processo e a preservação da dignidade da função jurisdicional. Em nossa opinião, nele estão contempladas soluções satisfatórias para problemas como a garantia do ‘direito ao esquecimento’ de vítimas e condenados, a proteção à segurança dos atores do processo, a preservação do ritual simbólico da Justiça contra a desnaturação da linguagem midiática, entre outras questões essenciais.


4.A Experiência brasileira na abordagem da relação entre Mídia e Judiciário.

No Brasil, o tema tem sido discutido basicamente por duas vias. A primeira delas é decorrente da preocupação institucional da magistratura quanto à visibilidade e credibilidade social do Poder Judiciário. A renovação da interação com os meios de comunicação tem papel fundamental no processo de modernização desenvolvido por tal poder. A título ilustrativo, a juíza Andréa Pacha, que já ocupou a Vice-Presidência de Comunicação Social da Associação dos Magistrados Brasileiros, assim se manifesta sobre o assunto:

"Devemos entender a lógica da comunicação de massa para, através deste caminho, buscarmos o resgate da credibilidade de um Poder que é essencial para a afirmação dos valores humanos [13]".

Todavia, o diálogo institucional tem sido realizado sem lastro teórico. Nele não há qualquer referência às transformações sofridas pelo princípio da publicidade processual em virtude da simbiose entre judiciário e mídias audiovisuais. As alusões à questão disponíveis na literatura jurídica nacional são desenvolvidas, sobretudo, no âmbito do processo penal [14]. Essa seria a segunda via da discussão mencionada anteriormente.

Talvez o especial interesse demonstrado pelos estudiosos da área estudiosos seja explicado pela maior interesse da mídia na justiça criminal, vide a extensa cobertura de crimes nos noticiários e a criação de programas televisivos com essa temática, tais como o ‘Linha Direta’. Um sintoma que corrobora a suposição é que o debate sobre a cobertura televisiva de julgamentos veio à tona entre nós, recentemente, com o caso Suzane Von Richthofen. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou a autorização para que imagens do julgamento fossem captadas. A decisão denegatória fundou-se na violação do direito à intimidade e na necessidade de preservar a atuação dos jurados. No referido acórdão, sustentou-se que:

"a publicidade do processo é uma garantia de que os atos nele praticados são feitos com lisura, daí a permanência das portas abertas de forma a que qualquer pessoa que esteja no Fórum possa ingressar e assistir à cerimônia solene. Daí a se pretender que todo o país possa assistir ao lamentável drama que se desenvolve no Plenário do tribunal do Júri, inclusive com repasse de trechos para jornais internacionais, vai uma longa distância" [15].

A doutrina nacional tem refletido a preocupação com os efeitos nocivos que a publicidade ampliada pelas mídias audiovisuais pode ocasionar ao processo. A advogada e professora Flávia Rahal faz a seguinte consideração crítica: "as loas indiscriminadas feitas à publicidade absoluta ignoram a carga com que as investigações preliminares e as ações penais têm abastecido a mídia, bem como seus excessos" [16].

No plano legislativo, temos na Constituição uma abordagem genérica sobre a publicidade dos atos processuais nos artigos 5º, inc. LX e 93, inc. IX. Em decorrência dos dois dispositivos, vigora em nosso país um sistema de ampla publicidade, onde os atos processuais só serão praticados em segredo em vista da preservação da intimidade das partes e do interesse social (ainda assim sem que tal segredo alcance as próprias partes e seus procuradores). Ademais, o constituinte deixou ao legislador a tarefa de delimitar as hipóteses legítimas de restrição da publicidade processual. O tema foi então regulamentada nos arts. 155 do CPC e 792 do CPP. Percebe-se que o tratamento legal da matéria na legislação nacional não enfrenta especificamente a atividade de captação e difusão de imagens das audiências judiciais. Isso permite ao judiciário um tratamento discricionário do assunto. Vale ressaltar que tramita no Congresso Nacional projeto de lei que aborda especificamente o problema [17]. A proposta, de autoria do Deputado Federal Carlos Bezerra, mesmo que não trate em profundidade da situação, representa um avanço na direção da regulação das relações entre mídia e judiciário. De acordo com o projeto, o art. 792 do CPP passaria a apresentar a seguinte redação:

"Art. 792..............

§ 3º Será permitida a transmissão radiofônica e televisiva de audiências e julgamentos, se as partes, o Ministério Público e o juiz o autorizarem e desde que não haja ofensa aos princípios da dignidade da pessoa humana, da intimidade, da honra ou da vida privada das pessoas.

§ 4º O tribunal competente regulará a forma de ingresso de equipamentos e o número de pessoas na sala de audiências com o fim de evitar tumultos".

Por fim, cabe destacar a iniciativa do STF de criar um canal público dedicado aos assuntos do judiciário, a chamada ‘TV Justiça’. A transmissão ao vivo das sessões de julgamentos de nossa Corte Constitucional tem auxiliado na ampliação da publicidade de seus atos. E, ademais, a criação de um canal público para realizar a tarefa se coaduna com as preocupações levantadas pelo ‘Relatório Linden’ no que tange ao conflito entre captação, edição e tratamento das imagens pela mídia e a necessidade de preservação da dinâmica intrínseca da atividade jurisdicional.


5.Conclusão

A publicidade dos atos judiciais é um corolário do regime político democrático. Todavia, a extensão dada ao princípio pela sua simbiose com os modernos meios audiovisuais de comunicação social pode por em risco outros valores do exercício da função jurisdicional. A tortuosa relação entre Mídia e Poder Judiciário é marcada por inúmeros pontos de atrito e afinidade decorrentes da lógica peculiar de cada uma das instituições. Mesmo que existam inegáveis vantagens na aproximação de ambos, é preciso, para salvaguarda do Estado Democrático de Direito, que esta se faça mediante uma judicialização do debate público e não por uma midiatização do processo judicial [18]. Por essa razão, é extremamente conveniente que se aprofunde a regulamentação jurídica relativa ao tema da cobertura televisiva das audiências judiciais.

Comparando a experiência francesa e brasileira, percebemos que estes estão a frente em relação a análise teórica do assunto. Todavia, a legislação e a prática judicial brasileira demonstram que em determinados pontos já colocamos em andamento as recomendações elaboradas no substancial ‘Relatório Linden’. A existência de uma TV pública gerida pelo STF e de propostas de alteração do art. 792 do CPP são testemunhos disso. Todavia, seria prudente que aproveitássemos a reflexão francesa, bem como desenvolvêssemos um pensamento autóctone sobre o assunto, a fim de que a regulação das relações entre mídia e judiciário seja implementada em nosso país de forma racional e sistemática.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

01 SARTORI, Giovanni. Homo Videns: televisão e pós-pensamento. Bauru: EDUSC, 2001.

02 Felizmente, o ponto omitido já foi amplamente tratado por muitos estudiosos. Vejam-se, por todos: CAPPELETTI, Mauro. TALLON, Denis. Fundamental guarantees of the parties in civil litigation. Milão: Giuffré, 1973. GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: o processo justo. Disponível em: < http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=429>. Acesso em 1º de abril de 2008.

03 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1997, p.84

04 GRECO, Leonardo. op.cit. p. 27.

05 ROURE, Sandrine. L’élargissement du principe de publicité des débats judiciaires. Revue Française de Droit Constitutionnel, nº 68, 2006, p. 740.

06 MIGUEL, Luis Felipe. Representação Política em 3-D: Elementos para uma teoria da representação política amplificada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 18, n. 51, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092003000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 1º de Abril de 2008.

07 GARAPON, Antoin. Bem Julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituo Piaget. 1997, p.275.

08 "Em março de 1994, vários órgãos da imprensa publicaram uma série reportagens sobre seis pessoas que estariam envolvidas no abuso sexual de crianças, todas alunas da Escola Base, localizada no bairro da Aclimação, na capital. Os seis acusados eram os donos da escola Ichshiro Shimada e Maria Aparecida Shimada; os funcionários deles, Maurício e Paula Monteiro de Alvarenga; além de um casal de pais, Saulo da Costa Nunes e Mara Cristina França. De acordo com as denúncias apresentadas pelos pais, Maurício Alvarenga, que trabalhava como perueiro da escola, levava as crianças, no período de aula, para a casa de Nunes e Mara, onde os abusos eram cometidos e filmados. O delegado Edelcio Lemos, sem verificar a veracidade das denúncias e com base em laudos preliminares, divulgou as informações à imprensa. A divulgação do caso levou à depredação e saque da escola. Os donos da escola chegaram a ser presos. No entanto, o inquérito policial foi arquivado por falta de provas. Não havia qualquer indício de que a denúncia tivesse fundamento. Com o arquivamento do inquérito, os donos e funcionários da escola acusados de abusos deram início à batalha jurídica por indenizações. Além da empresa ''Folha da Manhã'', outros órgãos de imprensa também foram condenados, além do governo do estado de São Paulo". Entenda o caso da Escola Base. O Globo Online. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sp/mat/2006/11/13/286621871.asp> Acesso em: 1º de Abril de 2008.

09 Ao encontro da afirmação, segue a advertência de Fábio Konder Comparato: "Na realidade, porém, a organização do espaço público de comunicação – não só em matéria política, como também econômica, cultural ou religiosa – faz-se, hoje, com o alheamento do povo, ou a sua transformação em massa de manobra dos setores dominantes. Assim, enquanto nos regimes autocráticos a comunicação social constitui monopólio dos governantes, nos países geralmente considerados democráticos o espaço de comunicação social deixa de ser público, para tornar-se, em sua maior parte, objeto de oligopólio da classe empresarial, a serviço de seu exclusivo interesse de classe". COMPARATO, Fábio Konder. A Democratização dos Meios de Comunicação de Massa. Direito Constitucional - Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides. Ed. Malheiros e Revista USP, 2001.

10 Rui Barbosa contemporâneo aos fatos, foi uma das vozes insurgentes contra a injusta condenação do oficial Dreyfus. A posição de Rui pode ser vista ao lado do artigo daquela de Zola na seguinte obra: BARBOSA, RUI. ZOLA, Emile. Eu Acuso!: O Processo do capitão Dreyfus. São Paulo: Ed. Hedra, 2007, 112 p.

11 Idem, pp. 273-295.

12 Rapport de la Comission sur l’enregistrement et la diffusion des débats judiciaires, 2005. Disponível em: < http://lesrapports.ladocumentationfrancaise.fr/BRP/054000143/0000.pdf>. Acesso em: 1º de Abril de 2008.

13 PACHA, Andréa Maciel. A Justica, a comunicacao e o pensamento unico. Forum: Debates sobre justiça e cidadania, v. 3, n.12,p 34.

14 Vejam-se, por exemplo: RAHAL, Flávia. Publicidade no Processo Penal: a mídia e o processo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 47, 2004, pp. 270-283; VIDAL, Luís Fernando C. B. Mídia e Júri: possibilidade de restrição da publicidade do processo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 41, 2003, pp. 113-124. ;ÁVILA, G. N. GAUER, G. J. C. Presunção de inocência, mídia velocidade e memória – breve reflexão transdiciplinar. Revista de Estudos Criminais, nº 24, 2007, pp. 105-113.

15 TJSP, 5ª Câmara da Seção Criminal, HC 972.803.3/0-00, Relator Des. José Damião Pinheiro Machado Cogan.

16 RAHAL, Flávia. op. cit. p.273.

17 PL -1407/2007. Autor: Dep. Carlos Bezerra, PMDB / MT.

18 Conforme: ROURE, Sandrine. op. cit.p. 740.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES, Rodrigo de Souza. Mídias audiovisuais e tribunais. Uma análise comparativa sobre o televisionamento dos debates judiciais com base nas experiências brasileira e francesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1765, 1 maio 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11227. Acesso em: 18 maio 2024.