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Análise dos modelos de Estado social e regulador no Brasil a partir da obra "Raízes do Brasil"

Análise dos modelos de Estado social e regulador no Brasil a partir da obra "Raízes do Brasil"

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A finalidade da análise é buscar identificar se a passagem do Estado Social para o Estado Regulador trouxe ganhos para a sociedade brasileira e, em caso positivo, em que medida tais ganhos teriam se dado.

RESUMO: O presente artigo busca analisar a passagem do modelo de Estado social para regulador no Brasil a partir de elementos colhidos na obra "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, tais como cultura da personalidade, patrimonialismo e fragilidade da sociedade civil. Pretende-se identificar se a passagem do Estado Social para o Estado Regulador trouxe ganhos para a sociedade brasileira e, em caso positivo, em que medida tais ganhos teriam se dado.

PALAVRAS-CHAVE: Estado social; Estado regulador; patrimonialismo; cultura da personalidade; sociedade civil; privatização; agências reguladoras.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Estado social e regulador: breves anotações e delimitação da discussão; 3. Sociedade civil frágil, patrimonialismo e o Estado social; 4. Sociedade civil frágil, patrimonialismo e o Estado regulador; 5. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Obra de grande prestígio desde a sua primeira publicação, Raízes do Brasil procura conhecer a sociedade brasileira por meio da análise da gênese do Brasil, em especial o modo de colonização imposto pelos portugueses, a escravidão, a forma de ocupação da terra e a organização política. Nesse contexto é que Holanda (1995) identifica fenômenos como a cultura da personalidade, o patrimonialismo, a sociedade civil frágil (ou gelatinosa, no dizer de Gramsci), elementos que serão trabalhados no curso do texto.

Tais características, presentes na gênese da formação da sociedade brasileira e ainda hoje visíveis nas nossas instituições, desenharam o presente que vivenciamos e ainda prometem modelar o nosso futuro próximo. Pretende-se analisar a mudança do modelo de Estado Social, que teríamos tido até o primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, para o modelo de Estado Regulador, sob a ótica dos elementos colhidos na aludida obra.

A finalidade da análise é buscar identificar se a passagem do Estado Social para o Estado Regulador trouxe ganhos para a sociedade brasileira e, em caso positivo, em que medida tais ganhos teriam se dado.


2. Estado social e regulador: breves anotações e delimitação da discussão.

De início, entendo pertinente fazer breve desenho da passagem do modelo de Estado social para regulador no Brasil, ressaltando as características de cada modelo. Vale esclarecer que o enfoque que pretendo dar na distinção a ser feita é a atuação do Estado na ordem econômica em sentido lato, ou seja, como o Estado se comporta em um e outro modelo quanto à produção de bens e prestação de serviços.

O Estado Social ganhou terreno no mundo ocidental entre os anos 20 e 30 do século passado, quando se difundiu a chamada social-democracia ou intervencionismo. O socialismo ocidental, contrariamente ao socialismo marxista, não tem em mira a coletivização dos bens de produção nem a centralização do sistema econômico, mas advoga presença ativa e bastante ampla do Estado, inclusive na modalidade absorção, isto é, com o exercício da atividade empresarial pelo Estado em alguns tantos setores econômicos tidos como estratégicos.

Nas nações mais maduras de atuação intervencionista, os Estados têm agido primordialmente no campo do bem-estar social. De outro lado, nos países de economia ainda por desenvolver, como é o caso do Brasil, a ação estatal ainda se preocupa com o objetivo de promover o desenvolvimento.

Muito se discute se o Brasil teria tido um Estado verdadeiramente social, com ênfase para o atendimento de necessidades essenciais da população, inclusive por meio de redistribuição de renda. Tal discussão, no entanto, será deixada de lado aqui, o que será feito com a finalidade de concentrar a atenção na forma, e não na qualidade, da atuação do Estado brasileiro.

Social ou não, fato é que o Estado brasileiro, até o primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, possuía papel importante na produção de bens e serviços.

Efetivamente, quanto à produção de bens, os três níveis de governo integrantes do Estado brasileiro vinham se encarregando diretamente na organização de fatores de produção, podendo ser citadas como exemplos do fenômeno a produção de petróleo e energia e o exercício da atividade de siderurgia pela União; até a produção de leite por empresas pertencentes a Estados – podendo ser citada como exemplo a CILPE, no caso do Estado de Pernambuco, entre muitos outros.

O mesmo fenômeno ocorreu quanto à prestação de serviços. Deve ser mencionado que um grande leque de atividades era qualificado como serviço público, inclusive alguns por determinação constitucional, podendo ser citados como exemplos serviços de telefonia, transmissão e distribuição de energia elétrica (atividade, esta, geralmente exercida por empresas estatais estaduais). Outras tantas atividades, apesar de não qualificadas como serviço público, passaram a ser exercidas pelo Estado em regime de competição com a iniciativa privada, como é o caso dos serviços bancários prestados por bancos estatais estaduais. Característica do desempenho de tais atividades pelo Estado é a utilização da propriedade pública como forma de regular os mercados.

E, no caso brasileiro, a regulação por meio da propriedade pública funcionou basicamente com a utilização das empresas estatais, ou seja, das empresas públicas (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, por exemplo) e sociedades de economia mista (Petrobrás, por exemplo).

A idéia que se tinha quanto a esta forma de regulação era que a propriedade pública conferiria ao Estado a habilidade para regular a economia e, principalmente, proteger os interesses públicos.

Tal forma intervencionista de atuação do Estado não foi um fenômeno brasileiro isolado. Conforme anota Majone (1997), "historically, public ownership has been the main mode of economic regulation in Europe".

Enfim, um ponto a ser destacado no modelo brasileiro de Estado social é o agigantamento das funções do Estado e, assim do seu tamanho, com a criação de grande quantidade de empresas estatais – a exigir uma elevada tributação para instituí-las e para mantê-las em adequado funcionamento. Nada obstante a tributação no Brasil sempre ter se mantido em graus elevados, não se pode afirmar que os serviços públicos brasileiros alguma vez tenham tido a qualidade correspondente ao seu custo.

Passando, agora, ao modelo regulador, sua característica é a diminuição do tamanho do Estado e a alteração da forma de atuação na ordem econômica: em vez da absorção, o Estado atua economicamente por meio da direção. No modelo regulador, a propriedade é estatal apenas no núcleo estratégico e nas atividades exclusivas de Estado. No outro extremo – no setor de bens e serviços para o mercado –, a produção é realizada pelo setor privado.

A privatização da prestação de serviços de utilidade pública é normalmente seguida de regulação de preços, acompanhada da introdução da concorrência. Segundo idéia disseminada entre alguns doutrinadores, pressupõe-se que as empresas serão mais eficientes se controladas pelo mercado e administradas privadamente. Daí deriva a defesa da subsidiariedade da atuação do Estado: só deve ser estatal a atividade que não puder ser eficazmente controlada pelo mercado.

Além disso, difundiu-se a idéia de que a crise fiscal retirou do Estado a capacidade de investir nas empresas estatais, o que tornaria aconselhável privatizá-las.

A falha de regulação por meio da propriedade estatal também explicaria a mudança para um modo alternativo de controle no qual os serviços públicos e outros setores, considerados importantes por afetarem o interesse público, são deixados em mãos privadas, mas sujeitos a normas elaboradas e aplicadas por agências especializadas.

Esse ideário, tal qual ora exposto, foi implantado no Brasil no curso do primeiro governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando foram promovidas as grandes privatizações e a quebra de monopólios estatais.

Ou seja, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, no âmbito da União, tanto houve a privatização de empresas estatais que exerciam atividade econômica em sentido estrito, como sucedeu com a Companhia Vale do Rio Doce, quanto de empresas estatais que prestavam atividades enquadradas como serviço público, caso das empresas do sistema Telebrás e Embratel. No mesmo passo, parte da execução dos serviços públicos passou a se dar por meio de empresas privadas a título de concessões, e não mais pelo Estado.

É verdade que já no governo do presidente Fernando Collor de Melo se instituiu o Plano Nacional de Desestatização, o que foi feito por meio da Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990. Entre os anos de 1990 e 1994, foram privatizadas 33 empresas nos setores de siderurgia, fertilizantes e petroquímica, tendo sido arrecadados US$ 8,5 bilhões (oito bilhões e quinhentos milhões de dólares).

No entanto, a maciça desestatização apenas ocorreu efetivamente a partir da Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, que, em seu art. 1º, dispunha que o Programa Nacional de Desestatização se destinava a reordenar a posição estratégia do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público. No art. 1º ainda consta expressamente a intenção de que o Estado deveria concentrar seus esforços nas atividades em que sua presença seja fundamental para a "consecução das prioridades nacionais". Assim é que se transformaram em objeto de desestatização as empresas controladas direta ou indiretamente pela União, serviços públicos objeto de concessão, permissão ou autorização, instituições financeiras públicas estaduais e, ainda, bens móveis e imóveis da União.

Realmente, a partir de 1997 foram realizadas as grandes privatizações, com a venda da Cia. Vale do Rio Doce, o término da desestatização da RFFSA com a venda da Malha Nordeste, o arrendamento do terminal de containeres 1 do Porto de Santos, a venda do Banco Meridional do Brasil S.A., com arrecadação de US$ 4.265 milhões (quatro bilhões e duzentos e sessenta e cinco milhões de dólares). Também se deu ênfase às privatizações de âmbito estadual.

A venda das empresas de telecomunicações de propriedade da União tornou-se possível com a edição da Lei Geral de Telecomunicações, em 16.07.1997. No mesmo ano foram licitadas concessões de telefonia móvel celular para três áreas do território nacional, no valor de US$ 4 bilhões (quatro bilhões de dólares).

Nos anos seguintes deu-se curso ao processo de privatização, tendo sido o ano de 2000 o de maior arrecadação, com o montante de US$ 10,7 bilhões (dez bilhões e setecentos milhões de dólares).

Diminuiu-se, assim, o tamanho do Estado e a quantidade de atividades a seu cargo: algumas foram devolvidas integralmente à iniciativa privada; outras foram entregues à iniciativa privada por meio de concessões, restando ao Estado a regulação e a fiscalização.

Na outra ponta, no entanto, não houve diminuição da carga tributária; ou seja, apesar da diminuição do tamanho do Estado e de suas atividades, reduzindo-se presumivelmente o seu custo de instalação e de operação, não se pode afirmar que tal diminuição de custo tenha sido repassada à sociedade. Esta questão será retomada mais adiante.

Realizado breve esboço das formas de atuação do Estado brasileiro nas últimas décadas, pretendo, ao passo seguinte, analisar o Estado social e o Estado regulador frente a uma sociedade civil frágil e diante do fenômeno do patrimonialismo.


3. Sociedade civil frágil, patrimonialismo e o Estado social.

Em Raízes do Brasil, Holanda (1995) visualiza desde o início o caráter de fragilidade da sociedade civil e busca identificar as suas razões no contexto brasileiro.

Uma primeira razão para a existência de uma sociedade civil inexpressiva seria a herança de Portugal de uma cultura da personalidade, dando-se mais importância ao individual que ao coletivo.

Para Holanda (1995), "foi essa mentalidade, justamente, que se tornou o maior óbice, entre eles (portugueses), ao espírito de organização espontânea, tão característica de povos protestantes, e sobretudo de calvinistas". A unificação social seria sempre produzida por uma força externa, como o governo, a quem caberia se preocupar com o coletivo: "nelas predominou, incessantemente, o tipo de organização política artificialmente mantida por uma força exterior, que, nos tempos modernos, encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares". Apesar de todas as diferenças que as separam, a cultura brasileira absorveu da portuguesa esta cultura da personalidade.

Outras causas dessa ausência de preocupação com o coletivo e com o exercício de atividades econômicas voltadas para o coletivo seriam a lavoura latifundiária na estrutura da economia colonial e a escravidão, que teriam desestimulado "qualquer esforço sério na cooperação nas demais atividades produtoras, ao oposto do que sucedia em outros países, inclusive nos da América espanhola". No Peru, conforme relata, em sentido diferente, a organização social era tamanha na época colonial que no primeiro século da conquista de Lima já existiam grêmios de oficiais mecânicos.

O que Holanda (1995) identifica, assim, é a falta de uma capacidade livre e duradoura de associação entre os elementos empreendedores do país, o que trazia dificuldade para execução de atividades voltadas para o coletivo, como o seriam os serviços públicos.

Utilizando a imagem criada por Gramsci, pode-se comparar a sociedade brasileira nascente (e, aliás, também a sociedade brasileira de até há pouco tempo) com as sociedades orientais, na qual o Estado é tudo e a sociedade civil é primitiva e gelatinosa; não se observa autonomia da sociedade em relação ao Estado.

A sociedade civil brasileira, assim, historicamente, pouco participou da definição de seus destinos, não se podendo falar que haja conhecido longos períodos verdadeiramente democráticos. Para Mello (2004), aliás, até o momento o Brasil teve pouco mais de 35 anos de cambaleante democracia política; "democracia social não teve um único dia". Essa também era a leitura de Holanda (1995), que interpretava a democracia brasileira como artificial e imposta pelas classes dominantes conforme seus interesses.

Nesse contexto é que se deve compreender que o Estado naturalmente foi assumindo a responsabilidade pela execução de atividades que normalmente competiriam à sociedade civil, a qual não ocupou tais espaços econômicos. Ou seja, o Estado não se limitava a promover a justiça estatal, a educação, a saúde, entre outros serviços tidos como essenciais, mas passou a exercer, diretamente ou por meio de autarquias ou empresas estatais, atividades econômicas em sentido estrito e a qualificar outras tantas atividades como serviço público, executando-as também diretamente ou por meio da administração indireta. A sociedade civil brasileira permitiu que o Estado se agigantasse.

Em outras sociedades, como é o caso da norte-americana, historicamente, o Estado pouco tem se preocupado com a execução direta de atividades econômicas, já que a sociedade civil é organizada ao ponto de atender a quase todas as suas necessidades.

Enfim, o que se deve ressaltar é que, responsável por um grande leque de atividades, o Estado viu-se na contingência de ter que tributar em graus elevados para fazer frente às grandes despesas e investimentos a si atinentes.

E, nada obstante o Estado brasileiro tenha se tornado uma grande estrutura, com grande poder político frente a uma sociedade civil amorfa ao longo dos tempos, com graus elevados de tributação (carga tributária em elevação nos anos recentes) e, assim, representando um custo elevado para os brasileiros, cabe perguntar porque nem assim as suas obrigações mais básicas foram cumpridas. Ou seja, cabe perguntar porque educação e saúde de qualidade não foram postas à disposição da totalidade da população, porque não houve redistribuição de renda por meio da tributação e de programas sociais e assistenciais.

É evidente que a resposta a essas perguntas não é simples nem algo evidente. Se o fosse, já teríamos há muito a respondido e encontrado o caminho da justiça social. Mas, no meu entender, é certo que parte da resposta pode ser reputada ao que Holanda (1995) chama de patrimonialismo.

Holanda (1995) inicia a exposição com a descrição do círculo familiar típico formado no Brasil, que era aquele constituído nos domínios rurais pelos senhores de engenho, em um primeiro momento, e pelos barões do café, em momento posterior. Esse círculo familiar, desenvolvido distante dos centros urbanos, se organizava segundo as normas do velho direito romano-canônico, também herança ibérica, no qual era característica a imensa autoridade do pater familias. A entidade privada representava uma instituição tão estruturada e organizada que resultaria natural que tivesse mais importância que a esfera pública.

Segundo análise feita pelo próprio autor, o "resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família".

Tal invasão do público pelo privado, ou seja, da familiarização do Estado, teria ocorrido sobremaneira quando da chegada da família portuguesa ao Brasil em 1808, momento a partir do qual o Brasil ganhou importância política e em que se revelou necessária a formatação de uma burocracia administrativa. Naturalmente que os filhos da "nobreza" nativa ocuparam tais espaços, imbuídos, evidentemente, do espírito "familiar" no qual haviam sido criados, o que, para Holanda (1995), era algo inevitável: "não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público".

Desse modo, a burocracia administrativa e a classe política brasileira nasceram a partir das famílias da classe dominante. Havia como que uma descendência em linha reta da família para o Estado, e não uma oposição entre ambos. O Estado, portanto, não era uma instituição supra-familiar, transcendente da família, mas se encontrava envolvido com a família de modo inseparável.

Frente a essas constatações é que Holanda (1995) faz uma consideração bastante veemente, melhor entendida quando lida em suas próprias palavras:

No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados "contatos primários", dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.

Com efeito, o patrimonialismo tem se manifestado ao longo de nossa história de forma bastante visível no Estado brasileiro. Inúmeros seriam os exemplos à disposição, tão conhecidos de todos, mas dois bastante claros são os seguintes: a possibilidade, antes da Constituição Federal de 1988, da nomeação de servidores públicos efetivos sem concurso, ao bel prazer das autoridades, e, mesmo após a CF/88, a existência de enorme quantidade de cargos de provimento em comissão na estrutura administrativa brasileira.

Nesse aspecto, é de se notar que, quanto maior o tamanho do Estado, mais espaço existe para a prática do patrimonialismo.

Assim é que a adoção de um modelo de Estado social veio a coincidir com o anseio de alguns grupos familiares pela conquista de espaço público. Quanto mais cargos, contratos e financiamentos para dividir entre os familiares e amigos, mais destaque teria o grupo do poder.

As empresas estatais, responsáveis pelo exercício de atividades econômicas ou de serviços públicos, foram particularmente utilizadas conforme os interesses dos ocupantes do poder e de seu grupo. E, segundo Mello (2004), a razão é simples: as empresas estatais surgiram como figuras híbridas, ou seja, públicas na essência do capital, mas privadas na forma de atuação. Assim é que durante muito tempo se tentou fazer, com sucesso, que as empresas estatais escapassem das amarras impostas à Administração Pública em geral, como a obrigatoriedade de licitar, de admitir trabalhadores exclusivamente por concurso público, controle pelos Tribunais de Contas, entre outras.

Também inúmeros seriam os exemplos de utilização de recursos públicos com finalidade exclusivamente privada, utilizando-se para tanto empresas estatais, merecendo destaque um caso mais emblemático e outro mais recente: os bancos estatais foram utilizados durante muito tempo para conceder empréstimos baratos aos produtores de cana-de-açúcar, que não honraram a dívida e deixaram prejuízo de mais de R$ 2 bilhões de reais; mais recentemente, pode-se citar a utilização de empresas estatais no financiamento de campanhas políticas no Rio Grande do Sul.

Ou seja, o que pretendo enfatizar é que a cultura do patrimonialismo encontrou um habitat propício para se desenvolver no modelo de Estado social. Não que o Estado social traga, em si, o mal – peso desarrazoado para a sociedade e ineficiência – que acometeu o Estado brasileiro. Na experiência brasileira, a cultura do patrimonialismo foi o que corroeu as forças do Estado, desviando-as do atendimento de necessidades públicas e colocando-as a serviço de interesses particularizados.

Visto isso, cabe-nos analisar, ao passo seguinte, qual a repercussão de uma sociedade civil frágil e da cultura do patrimonialismo no âmbito do Estado regulador.


4. Sociedade civil frágil, patrimonialismo e o Estado regulador.

De início, deve-se falar que o advento do Estado regulador poderia representar um amadurecimento institucional para o Brasil. Poderia, mas não representou. E não representou, em primeiro lugar, porque a mudança de atuação e de intervenção estatal na economia não foi debatida nem decidida com a participação ativa da sociedade. É que a alteração na forma de atuação e de intervenção do Estado na economia foi imposta de cima para baixo, contrariamente ao que ocorreu em outros países, tornando evidente, mais uma vez, a fragilidade da sociedade civil, excluída, neste caso, da definição de seu próprio destino.

Majone (1997) relata que, na Europa, a opção pelo Estado regulador foi feita pelos eleitores, os quais foram convencidos da necessidade de se apoiar um novo modelo de governança que incluísse a privatização de muitas partes do setor público, mais concorrência em toda a economia pelo lado da oferta e reformas de longo alcance no Estado do bem-estar.

Ultrapassada esta questão preliminar, cumpre-nos indagar qual a influência de uma sociedade civil frágil e da cultura do patrimonialismo no âmbito do Estado regulador.

De início, no entanto, é importante ressaltar o fortalecimento da sociedade civil brasileira a partir de meados da década de 1980. Segundo Cardoso (2007), a liberdade individual e a inovação tecnológica possibilitaram novas formas de ação política, realizadas fora dos partidos políticos e sindicatos, o que, sem dúvida, teria fortalecido a sociedade frente ao Estado. Para ele, "os cidadãos são, hoje, mais informados e participantes. Têm múltiplos interesses e identidades".

Sorj (2007) concorda com o fortalecimento da sociedade civil brasileira, principalmente a partir da década de 1980, e ressalta o papel importante da difusão das organizações não-governamentais, as quais se caracterizariam pela defesa de interesses difusos, como a ordem moral, por exemplo.

Seguindo adiante, deve-se relembrar que a fragilidade da sociedade civil requer ou possibilita a atuação do Estado nos espaços deixados em aberto por ela. No modelo social, o próprio Estado preenche os espaços vazios. Já no modelo regulador, cabe ao Estado, em regra, promover a sua ocupação pela iniciativa privada, sob a sua regulação e fiscalização.

Assim, um fenômeno que poderá se revelar no Estado regulador, frente a uma sociedade civil relativamente frágil, será o excesso de regulação, ou seja, excesso na expedição de normas para regular as atividades econômicas e mediar os conflitos existentes entre a sociedade civil consumidora e os prestadores de serviços. Também se dá o nome de juridificação a tal fenômeno.

Nesse particular, pode-se falar que já há sinais da juridificação no Brasil. Efetivamente, apenas considerando o âmbito federal brasileiro, são muitos os entes a exercitarem o poder normativo em áreas específicas, deles sendo exemplos: Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), Agência Nacional do Petróleo (ANP), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Para se ter noção da dimensão da atividade normativa da Administração Pública federal brasileira, vale destacar os seguintes dados:

1. Entre janeiro de 2004 e março de 2007, a ANEEL editou 257 resoluções normativas;

2. Entre fevereiro de 1997 e março de 2007, a ANATEL editou 459 resoluções normativas;

3. Entre janeiro de 2004 e março de 2007, a ANP editou 127 resoluções de caráter normativo;

4. Entre outubro de 1992 e março de 2006, a ANVISA editou 48 instruções normativas;

5. Entre abril de 1978 e fevereiro de 2007, a CVM editou 448 instruções de caráter normativo;

6. Entre maio de 1992 e fevereiro de 2007, o CADE editou 44 resoluções normativas.

7. Entre fevereiro de 2002 e dezembro de 2006, a ANS editou 49 instruções normativas e 148 resoluções normativas.

Partilhando do mesmo entendimento quanto ao excesso de normas regulatórias, Falcão (2008) chama atenção para o problema ao registrar que:

Em 2007, o Congresso aprovou 198 leis. Em compensação, apenas três das principais agências reguladoras produziram 1.965 resoluções. A Agência Nacional de Energia Elétrica editou 635, a Agência Nacional de Transportes Terrestres, 726, e a Agência Nacional de Águas, 604. Mesmo sem considerar resoluções das outras sete agências federais (ANVISA, ANS, ANCINE, ANATEL, ANP, ANTAQ e ANAC), são quase dez vezes mais atos normativos. Nos estados, o cenário se repete. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a AGERGS produziu 580 resoluções enquanto a Assembléia Legislativa gaúcha elaborou apenas 188 leis estaduais. Existem agências em 19 estados e também no Distrito Federal. Em alguns, mais de uma, como São Paulo e Rio.

Uma sociedade civil frágil também pode conduzir a outras perplexidades no âmbito do Estado regulador. É que o processo de decisão das agências reguladoras envolve, em regra, procedimentos de audiência e consulta públicas, nos quais são ouvidos os agentes do mercado e os consumidores quanto às normas a serem aplicadas a determinadas relações econômicas e de consumo. Quando a sociedade civil não está estruturada a ponto de participar tecnicamente do debate, haverá um confronto desigual com os agentes do mercado, os quais certamente disporão de todos os argumentos técnicos a favor de suas posições.

Caso emblemático é o das revisões tarifárias dos contratos de distribuição de energia elétrica. Essas revisões envolvem elementos tão complexos (parcela A e parcela B da tarifa, empresa de referência, fator X, perdas comerciais, conta de desenvolvimento energético – CDE, contratos de longo prazo, pool, etc.) que, supondo-se que haja um grave erro em sua elaboração pela Agência Nacional de Energia Elétrica, ao consumidor leigo não seria dado entender a questão e pleitear pela correta revisão. Apenas a organização da sociedade civil a ponto de dispor de consultoria especializada possibilitaria a defesa de seu ponto de vista, em busca da modicidade tarifária.

Como não temos, em regra, a efetiva participação da sociedade civil nos procedimentos decisórios das agências reguladoras, a sua presença nesses procedimentos não significa que os seus interesses estejam resguardados.

De outro lado, a cultura do patrimonialismo, apesar de encontrar seu habitat no modelo de Estado social, em razão da dimensão da propriedade pública, pode se manifestar de forma diferente no Estado regulador, mas ainda assim encontra condições para se fazer presente.

É que a forma de nomeação dos dirigentes das agências reguladoras propicia composições políticas com a finalidade de conduzir a tais posições de autoridade pessoas comprometidas com determinados grupos ou interesses.

Exemplo dessa situação pode ser vista no voto do Desembargador Francisco Cavalcanti, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região quando do julgamento da apelação cível de nº 342.739/PE. Nesse caso, o TRF da 5ª Região, em ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, declarou nulo ato de designação para integrar conselho consultivo da ANATEL, na qualidade de representantes dos usuários e da sociedade, do Presidente da Tele Norte Leste Participações S/A e da Telemar Norte Leste S/A e do Presidente da Telebrasil. Certamente esse é apenas um entre vários exemplos que podem ser citados.


5. Conclusão

Após a análise feita acima, o que se observa é que a mudança da forma de atuação do Estado apenas desloca os problemas ocasionados por uma sociedade civil frágil e pela cultura do patrimonialismo para um outro centro de poder, não representando uma virada substancial na história do Estado Brasileiro.

No Estado regulador, o patrimonialismo tenderá a se fazer presente na elaboração de normas, face à supressão da propriedade pública na exploração de atividade econômica, assim como a fragilidade da sociedade mostrará a sua face também nessa mesma fase de elaboração de normas.

Se o Estado regulador possui algumas vantagens em relação ao Estado social, não se pode falar que a sociedade brasileira tenha colhido todas elas. É que, apesar de se ter notado uma melhora considerável na prestação de determinados serviços públicos por meio de empresas privadas (como é o caso da telefonia, que se revelava arcaica enquanto prestada diretamente pelo Estado), a diminuição do tamanho do Estado não representou a redução da carga tributária.

Na verdade, o Estado regulador se desincumbiu de algumas obrigações, as quais passaram a ser cobradas adequadamente pelos investidores privados, e o cidadão viu-se na contingência de ter que pagar tributos (impostos e taxas basicamente) e tarifas por serviços que originariamente eram da obrigação do Estado. Tome-se, como exemplo, a utilização de determinadas rodovias que foram privatizadas. Anteriormente à privatização, competia ao ente público a sua regular manutenção, o que se fazia com os recursos provenientes da arrecadação de impostos. Com a privatização dessas rodovias, o Estado se desincumbiu de sua manutenção, sem que, no mesmo passo, tivesse havido redução da carga tributária. No entanto, além de não ter havido a redução da carga tributária, ainda houve a necessidade de se conferir remuneração ao investidor privado por meio de tarifas. Enfim, o que deve ficar claro é que, desse processo, o único prejudicado economicamente foi o cidadão brasileiro.

Para se usar um sentido figurado, o cidadão brasileiro paga o preço de um Estado "máximo" para ter à disposição um Estado "mínimo". E, o pior de tudo, o Estado brasileiro ainda se revela ineficiente no mínimo que se dispõe a fazer, vide, por exemplo, a situação da saúde e da educação no Brasil.

Assim é que Holanda (1995) defende o ponto de vista de que a simples substituição dos detentores do poder público, com as diferentes visões quanto à atuação do Estado que possuam, é algo meramente superficial e não conduz a transformações significativas.

Adotando em parte a visão defendida por Holanda (1995), entendo que a evolução do modelo social para o regulador teve como ponto positivo a redução do tamanho do Estado, diminuindo-se o espaço para a sua utilização para fins privados. No entanto, a redução do tamanho do Estado e de seu campo de atuação deveria representar invariavelmente a redução do seu peso sobre a sociedade, ou seja, a diminuição da carga tributária. Por fim, uma das formas mais eficazes de se combater o patrimonialismo na manipulação do Estado é a estruturação de instrumentos de controle sobre a sua atuação. No modelo de Estado regulador, torna-se imprescindível a estruturação de controle efetivo sobre a atividade normativa das agências reguladoras, o que ainda não temos no Brasil, seja em razão da ausência de participação substancial da sociedade civil na produção da regulação, seja, de outro lado, em razão da inexistência de mecanismos de controle concentrado de legalidade e legitimidade dessas normas.


Referência:

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SORJ, Bernardo, OLIVEIRA, Miguel Darcy de. Sociedade civil e democracia na América Latina: crise e reinvenção da política. São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2007.


Notas

  1. Informação obtida na página do BNDES na internet:

    http://www.bndes.gov.br/privatizacao/resultados/historico/history.asp

  2. Informação igualmente obtida na página do BNDES na internet:

    http://www.bndes.gov.br/privatizacao/resultados/historico/history.asp

  3. E o autor continuar a discorrer sobre as características do culto ao personalismo em Portugal: "À autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior. Por isso mesmo que rara e difícil, a obediência aparece algumas vezes, para os povos ibéricos, como virtude suprema entre todas. E não é estranhável que essa obediência – obediência cega, e que difere fundamentalmente dos princípios medievais e feudais da lealdade – tenha sido até agora, para eles, o único princípio político verdadeiramente forte. A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. As ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à desordem. Não existe, a seu ver, outra sorte de disciplina perfeitamente concebível, além da que se funde na excessiva centralização do poder e na obediência".
  4. Essa relação de causa e efeito entre a escravidão/latifúndio e sociedade civil frágil/deficiência na prestação de serviços voltados para o coletivo foi expressamente considerada em Raízes do Brasil:

    "Muitas das dificuldades observadas, desde velhos tempos, no funcionamento dos nossos serviços públicos, devem ser atribuídas sem dúvida, às mesmas causas. Num país que, durante a maior parte de sua existência, foi terra de senhores e escravos, sem comércio que não andasse em mãos de adventícios ambiciosos de riquezas e de enobrecimento, seria impossível encontrar uma classe média numerosa e apta a semelhantes serviços".

  5. "Tais equívocos seriam particularmente nocivos e perigosos, pois quaisquer enganos dos quais resultem mais poderes para o Executivo são muito bem aceitos no País. É que o Brasil mal conhece instituições políticas democráticas. Desde 1500 – quando foi descoberto – até o presente não experimentou mais do que 35 anos de cambaleante democracia política (democracia social não teve um único dia), o que ocorreu entre 1946 e 1964, e desde 1986. Com efeito, durante o período colonial e imperial é óbvio que não se cogitava de democracia. Durante a República Velha, sabidamente, também não houve espaço para sua implantação e as eleições ‘a bico-de-pena’ cuidavam zelosamente de impedir-lhe o nascimento. Sobrevindo a Revolução de 1930 e subseqüente implantação da ditadura getulista, o País continuou insciente do que seria este regime, só conhecido nos países civilizados. Finalmente, com a Constituição de 1946 desvendou-se para nós o mundo até então desconhecido da democracia. Contudo, em 1º de abril de 1964 o Golpe Militar se encarregou de desvanecer estes sonhos, implantando nova ditadura (a dos generais), que se manteve até 1986, em seu final disfarçada por configuração mais branda. Só aí então irá reencetar-se a experiência democrática, e ainda assim tisnada por uma infindável sucessão de decretos-leis, primeiramente, e depois de medidas provisórias, uns e outras de inconstitucionalidade óbvia, mas sempre recebidos com exemplar naturalidade por todo o país".
  6. "A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao mesmo como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos.

    É curioso notar que os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de inspiração intelectual, se assim se pode dizer, tanto quanto sentimental. Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política vieram quase de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência, ou hostilidade. Não emanavam de uma predisposição espiritual e emotiva particular, de uma concepção da vida bem definida e específica, que tivesse chegado à maturidade plena. Os campeões das novas idéias esqueceram-se, com freqüência, de que as formas de vida nem sempre são expressões do arbítrio pessoal, não se ‘fazem’ nem ‘desfazem’ por decreto".

  7. "Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a idéia de família – e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal – tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições a formação e a evolução da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos".
  8. "Em despeito dessas obviedades, durante largo tempo pretendeu-se que, ressalvadas taxativas disposições legais que lhes impusessem contenções explícitas, estariam em tudo o mais parificadas à generalidade das pessoas de Direito Privado. Calçadas nesta tese errônea, sociedades de economia mista e empresas públicas declaravam-se, com o beneplácito da doutrina e da jurisprudência (salvo vozes combativas, mas isoladas), livres do dever de licitar, razão por que os contratos para obras públicas mais vultosos eram travados ao sabor dos dirigentes de tais empresas ou mediante arremedos de licitação; recursos destas entidades passaram a ser utilizados como válvula para acobertar dispêndios que a Administração Central não tinha como legalmente efetuar, ou mesmo para custear ostensiva propaganda governamental, mediante contratos publicitários de grande expressão econômica; a admissão de pessoal, e com salários muito superiores aos vigentes no setor público, efetuava-se com ampla liberdade, sem concursos, transformando-se em ‘cabides de emprego’ para apaniguados; avançados sistemas de aposentadoria e previdência eram, por decisão interna corporis, instituídos em prol de seus agentes, em condições muito mais vantajosas do que as do sistema nacional de previdência ou do próprio regime previdenciário do setor público; despesas exageradas, úteis apenas à comodidade pessoal de seus agentes, eram liberalmente efetuadas, como, exempli gratia, suntuosas hospedagens no Exterior, quando de viagens internacionais de seus dirigentes; sempre sob argüição de serem pessoas de Direito Privado – até que a legislação explicitamente lhe impusesse sujeição de suas despesas à fiscalização do Tribunal de Contas da União –, sustentava-se que estavam livres deste controle; sob o mesmo fundamento e da correlata liberdade que lhes concerniria, multiplicaram-se sociedades de economia mista e empresas públicas, umas criando outras, surgindo, destarte, as de chamada segunda e terceira geração, aptas, pois, a prodigalizar os mesmos desmandos."
  9. Reportagem publicada na revista Veja em 28.01.1998. Página na internet: http://veja.abril.com.br/280198/p_082.html. Acesso em 17.06.2008.
  10. Página na internet: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u409862.shtml. Acesso em 17.06.2008.
  11. Vale transcrever excerto do texto de Sorj (2007):

    "O que aconteceu no Brasil nas últimas décadas? Nos anos 1970 e 1980, durante a ditadura, os grupos mais expressivos da sociedade civil eram a chamada imprensa nanica (os semanários Opinião, Movimento, O Pasquim), os centros de pesquisa, como, por exemplo, o Cebrap, as organizações profissionais, em particular a Ordem de Advogados do Brasil (OAB), as pastorais da Igreja católica, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o novo sindicalismo, especialmente o do ABC paulista. Que tipo de atores eram esses? Tratava-se de organizações que tinham uma base social bastante definida, como membros das próprias corporações profissionais, leitores dos semanários, membros da Igreja ou, no caso do Cebrap, do público universitário. Os participantes deste segmento se reconheciam como parte de uma aliança de diferentes em função de um projeto político específico: democratizar o País.

    As novas organizações, aquelas que passaram a falar em nome da sociedade civil e a ser identificadas como se a constituíssem, são, fundamentalmente, as ONG de um novo tipo. Em outro trabalho, desenvolvi em detalhe uma caracterização das novas ONG, cuja principal originalidade consiste em não possuírem uma base social definida, embora geralmente se pronunciem em nome da sociedade (ou da "sociedade organizada") e/ou de movimentos sociais. Sociologicamente, elas constituem organizações profissionais, nichos de emprego para ativistas sociais. Essas ONG se sustentam com financiamentos externos e se autolegitimam através do apelo a um discurso de ordem moral e demandador do Estado.

    mundo das ONG no Brasil e na América Latina tem se estendido enormemente. No Brasil, de acordo com o levantamento do IBGE, com dados de 2002, são 50.000 os que trabalham nos mais diversos campos de defesa de direitos (advocacy), cultura, transparência e projetos sociais. Cada vez mais, empresas privadas aderem ao discurso de "responsabilidade social" e criam suas próprias ONG, sem mencionar aquelas organizadas por políticos e partidos ou a eles associadas, usadas para canalizar recursos públicos, que muitas vezes são meras fachadas para práticas clientelísticas ou corruptas".

  12. Página na internet: http://www.cnj.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=4054&Itemid=129. Acesso em 17.06.2008.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Luiz Eduardo Diniz. Análise dos modelos de Estado social e regulador no Brasil a partir da obra "Raízes do Brasil". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1978, 30 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12026. Acesso em: 18 abr. 2024.