RESUMO
O presente artigo visa definir os conceitos de maus antecedentes, bem como sugerir novos paradigmas de aplicação.
O art. 59 do Código Penal arrola os antecedentes do agente como circunstância judicial a afetar a dosimetria da pena, na primeira etapa do sistema trifásico. Como a legislação penal não conceitua o que venha a ser antecedente, coube à doutrina e à jurisprudência definir seus contornos. No conceito de J. A. Paganella Boschi, "antecedentes são todos os fatos pretéritos ao crime, praticados pelo réu, que lhe retiram a condição de primário". [01] Já os tribunais superiores assentaram que "inquéritos policiais ou ações penais em andamento (inclusive, sentenças não transitadas em julgado) não podem ser levados em consideração para fixação da pena-base, em respeito ao princípio constitucional do estado presumido de inocência". [02]
Portanto – por ora –, é certo dizer que configura os maus antecedentes a existência de condenação trânsita em julgado, anterior ao fato novo, [03] desde que tenham transcorridos mais de cinco anos entre a data do cumprimento ou extinção da pena e o novo fato, [04] limitados ao início da imputabilidade do agente. [05]
A incidência da prescrição da pretensão punitiva [06] afasta o reconhecimento dos maus antecedentes; mas a prescrição executória não afasta. [07]
No entanto, também é certo que a agravante genérica da reincidência (vide art. 61, inc. I, do Código Penal) também exige que a condenação anterior seja forjada pelo trânsito em julgado. [08] Assim, é possível a incidência simultânea dos maus antecedentes e da reincidência, desde que assentados em fundamentações distintas, [09] sob pena do bis in eadem.
Apesar de abalizado posicionamento no sentido de que o acatamento dos maus antecedentes deveria ter limitação temporal [10] (assim como ocorre com a reincidência – vide art. 64, inc. I, do Código Penal), firmamos posição contrária. Mesmo apresentando "menor expressão jurídica" frente à agravante da reincidência, os maus antecedentes revelam a tendência do agente à prática delitiva, e não considerar seu passado dedicado ao crime – independentemente do lapso temporal – seria equiparar um delinquente renitente àquele que praticou único fato delitivo; e tal postura representaria incentivo ao crime. Acreditamos que a distância temporal entre os delitos demonstra que o agente não se intimidou perante a primeira intervenção do Estado-juiz, ao condená-lo.
Não se nega que o decisum condenatório de primeira instância gera o título executivo judicial penal frente ao processado; [11] devendo, portanto, conter todo o delineamento da sanção imposta. [12] Apesar de a garantia do duplo grau de jurisdição submeter toda a matéria a nova análise, com a possibilidade de reverter-se a condenação, também é certo que os pronunciamentos das instância superiores (TJ, STJ, STF) podem manter inalterada a decisão combatida. Frise-se bem: o simples fato de manejar recurso não desqualifica a existência e validade de uma sentença condenatória, [13] posto que esta somente será alterada com o posicionamento positivo da instância superior. [14]
Aqui começa a abordagem que pretendemos apresentar. Exemplo paradigmático: condenado em primeira instância, "A" manejou apelação incontinenti, e algum tempo depois (sem o julgamento final do recurso), praticou outro crime. O agente é submetido a nova ação penal, e o Magistrado está prestes a condená-lo pelo segundo crime.
Diante dos já citados posicionamentos da doutrina e da jurisprudência, a nova sentença condenatória não poderá considerar a condenação anterior como mau antecedente, visto que não houve trânsito em julgado desta última. O cometimento do segundo crime seria um indiferente penal na dosimetria da nova sentença.
No entanto, assim como o acusado tem o direito de ter sua sentença revista (buscando sua absolvição), ao Estado foi incumbido o dever de salvaguardar a coletividade, por meio da persecução penal, diante do Pacto Social. Desconsiderar os maus antecedentes daquele cuja sentença pende de trânsito em julgado significa afronta ao princípio da individualização da pena, repercutindo na prevenção geral e especial (seja em seus aspectos positivos como negativos).
A questão se põe nos seguintes termos: finalmente confirmada a decisão que condenou o agente pelo primeiro crime, acaso os maus antecedentes não sejam reconhecidos no momento da segunda condenação, não o poderão ser reflexamente impostos com o trânsito em julgado da primeira sentença, pois o segundo título executivo já estaria hermeticamente formalizado. Noutras palavras, não é o status de trânsito em julgado que formaliza e delimita o conteúdo da sentença condenatória, mas ela mesma.
O que sustentamos é a legalidade do acatamento dos maus antecedentes quando a(s) condenação(ões) anterior(es) estiver(em) pendente(s) de trânsito em julgado, [15] não havendo afronta ao princípio da presunção de inocência, por já existir uma decisão judicial prévia [16] que, mesmo passível de revisão, gera efeitos processuais e materiais.
Ademais, em muitos casos, o recurso pendente não questiona a condenação em si, mas tão-somente a dosimetria da pena, a imposição de regime prisional mais severo, dentre outros, não atacando a constituição do título condenatório; por via de conseqüência, não se arrimando no princípio da inocência.
A tese ora sustentada encontra guarida nos seguintes julgados do STJ:
"(...) Finalmente, no tocante ao argumento de que não poderia ter sido considerada condenação anterior para efeitos de antecedentes, mais uma vez não assiste razão ao impetrante. Embora a condenação anterior não transitada em julgado não macule a primariedade do réu, pode, sim, servir como base na apuração e valoração dos antecedentes. (...)" (HC 11958/MS – grifamos)
"(...) A existência de condenações anteriores contra o réu, mesmo sem trânsito em julgado, configura maus antecedentes para efeito de exacerbação da pena-base. (...)" (REsp 236681/MG – grifamos)
"(...) Não é possuidor de bons antecedentes quem, embora tecnicamente primário, ostenta condenação anterior, relevando personalidade dirigida à atuação criminosa, impondo-se a sua submissão à custódia processual. (...) (HC 11061/SC)
A admissão do posicionamento proposto em nada prejudica o recorrente/condenado em eventual execução provisória – em casos de réus presos – pois, em vingando o recurso favorável ao réu, o Juízo da Execução desconsideraria o aumento pelos maus antecedentes, [17] a exemplo do que ocorre nos casos de abolitio criminis, por exemplo.
Por outro lado, a prevalecer o entendimento ora vigente, privilegiam-se injustamente uns em detrimento de outros; [18] o que não acontece com a proposta acima, pois todos teriam o mesmo tratamento.
Notas
- Das penas e seus critérios de aplicação. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 201.
- Vide HC 94956/DF, STJ. No mesmo sentido, inquéritos policiais arquivados ou processos penais que resultaram em absolvição não configuram antecedentes (vide RMS 15634/SP, STJ).
- Vide HC 104047/RS, STJ.
- Vide HC 81867/DF, STJ.
- Atos infracionais não seriam considerados maus antecedentes (vide HC 81866/DF, STJ, Rel. Minª Jane Silva).
- Considerando que a prescrição da pretensão punitiva oblitera o caráter delitivo da conduta, tal fato não poderia ser considerado antecedente (vide HC 88961/SP, STJ).
- Vide HC 70752/SP, STF. Em sentido contrário: HC 47714/PE, STJ. Levando-se em conta que a prescrição da pretensão executória fataliza tão-somente o direito do Estado de executar a pena, restando incólume o título executivo judicial, tem-se que o caráter criminoso do fato não é obliterado.
- Para a configuração dos maus antecedentes, não importa se o delito anterior foi contravenção ou crime; para a reincidência, somente vale o "crime anterior", em razão do texto do art. 63 do Código Penal.
- Vide REsp 1029249/SP, STJ.
- J. A. Paganella Boschi, Op. cit., pg. 203.
- Aliás, a sentença condenatória também gera efeitos de natureza material, tais como: (a) interrompe o curso do prazo prescricional (art. 117, inc. IV, do Código Penal), (b) gera novo parâmetro para contagem da prescrição da pretensão punitiva (art. 110 do Código Penal), (c) torna certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, inc. I, do Código Penal) etc.
- Ressalvados os casos de exasperamento da condenação em segunda instância.
- Se, por exemplo, o recurso não atende às regras processuais, a via recursal sequer será conhecida.
- A partir deste momento, passa a ser do recorrente o ônus de demonstrar o equívoco da sentença combatida.
- O texto do art. 63 do Código Penal é óbice à aplicação da dinâmica proposta ao reconhecimento da agravante da reincidência, pois se exige que o novo crime seja cometido "depois de transitar em julgado a sentença que o tenha condenado pelo crime anterior".
- Diferentemente dos processos penais em andamento, a ação penal que chega à sentença condenatória conclui a prestação jurisdicional. Tanto que, não havendo recurso – ou não sendo este admitido ou conhecido –, o trânsito em julgado se impõe sem a manifestação das instâncias superiores. Como já dissemos antes, a via recursal visa à desconstituição da sentença; praticando um raciocínio inverso, somente se desconstitui algo já foi constituído.
- Considerando que as majorações e/ou reduções são fundamentadas pelo Juiz (tanto em seu acatamento como no coeficiente aplicado), basta simples operação matemática para se neutralizar o exasperamento pelos maus antecedentes.
- Imagine-se o seguinte exemplo: "A" e "B" são co-réus em uma ação penal que culminou na condenação de ambos, tendo os mesmos recorrido. O recurso de "A" tem tramitação mais rápida e acaba por confirmar a sentença condenatória, transitando em julgado. Algum tempo depois, os mesmos indivíduos praticam novo crime; em caso de nova condenação, "A" será considerado como reincidente (e/ou detentor de maus antecedentes, acaso tenha outra condenação), não acontecendo o mesmo com "B".