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Nota sobre a evolução da jurisprudência do STF acerca da hierarquia dos tratados de direitos humanos

Nota sobre a evolução da jurisprudência do STF acerca da hierarquia dos tratados de direitos humanos

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SUMÁRIO: 1.Introdução. O julgamento dos Recursos Extraordinários 349703 e 466343 e do Habeas Corpus 87585 2. Jurisprudência anterior do STF acerca da hierarquia dos Tratados de Direitos Humanos. Equiparação à lei. 3. Jurisprudência atual do STF acerca da hierarquia dos Tratados de Direitos Humanos. Caráter supralegal. 4. Conclusão. Referências.


1. Introdução. O julgamento dos Recursos Extraordinários 349703 e 466343 e do Habeas Corpus 87585

Exatamente uma semana antes do aniversário de 60 (sessenta) anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu um importante avanço na tutela dos direitos humanos no Brasil.

Com efeito, no dia três de dezembro de 2008, o Plenário do STF, por maioria, restringiu a prisão civil por dívida apenas à hipótese do inadimplente de prestação alimentícia, em razão do disposto no parágrafo 7º do artigo 7º do Pacto de São José da Costa Rica sobre Direitos Humanos, [01] não obstante o preceito contido no inciso LXVII do art. 5º da Carta Magna. [02] Referida decisão histórica ocorreu no julgamento dos Recursos Extraordinários (RE) 349.703 e 466343 e do Habeas Corpus (HC) 466343, onde se discutia a prisão civil de alienante fiduciário infiel. No ensejo, ainda foi revogado o Enunciado nº 619 da Súmula de jurisprudência do STF, segundo o qual "a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito".

O resumo do julgamento foi exposto em notícia divulgada no sítio do STF na rede mundial de computadores (internet), que se reproduz abaixo:

"Quarta-feira, 03 de Dezembro de 2008

STF restringe a prisão civil por dívida a inadimplente de pensão alimentícia

Por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) arquivou, nesta quarta-feira (03), o Recurso Extraordinário (RE) 349703 e, por unanimidade, negou provimento ao RE 466343, que discutiam a prisão civil de alienante fiduciário infiel. O Plenário estendeu a proibição de prisão civil por dívida, prevista no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal (CF), à hipótese de infidelidade no depósito de bens e, por analogia, também à alienação fiduciária, tratada nos dois recursos.

Assim, a jurisprudência da Corte evoluiu no sentido de que a prisão civil por dívida é aplicável apenas ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia. O Tribunal entendeu que a segunda parte do dispositivo constitucional que versa sobre o assunto é de aplicação facultativa quanto ao devedor – excetuado o inadimplente com alimentos – e, também, ainda carente de lei que defina rito processual e prazos.

Súmula revogada

Também por maioria, o STF decidiu no mesmo sentido um terceiro processo versando sobre o mesmo assunto, o Habeas Corpus 87585. Para dar conseqüência a esta decisão, revogou a Súmula 619, do STF, segundo a qual "a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito".

Ao trazer o assunto de volta a julgamento, depois de pedir vista em março deste ano, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito defendeu a prisão do depositário judicial infiel. Entretanto, como foi voto vencido, advertiu que, neste caso, o Tribunal teria de revogar a Súmula 619, o que acabou ocorrendo.

As ações

Nos REs, em processos contra clientes, os bancos Itaú e Bradesco questionavam decisões que entenderam que o contrato de alienação fiduciária em garantia é insuscetível de ser equiparado ao contrato de depósito de bem alheio (depositário infiel) para efeito de prisão civil.

O mesmo tema estava em discussão no HC 87585, em que Alberto de Ribamar Costa questiona acórdão do STJ. Ele sustenta que, se for mantida a decisão que decretou sua prisão, "estará respondendo pela dívida através de sua liberdade, o que não pode ser aceito no moderno Estado Democrático de Direito, não havendo razoabilidade e utilidade da pena de prisão para os fins do processo".

Ele fundamentou seu pleito na impossibilidade de decretação da prisão de depositário infiel, à luz da redação trazida pela Emenda Constitucional 45, de 31 de dezembro de 2004, que tornou os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos equivalentes à norma constitucional, a qual tem aplicação imediata, referindo-se ao pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.

Direitos humanos e gradação dos tratados internacionais

Em toda a discussão sobre o assunto prevaleceu o entendimento de que o direito à liberdade é um dos direitos humanos fundamentais priorizados pela Constituição Federal (CF) e que sua privação somente pode ocorrer em casos excepcionalíssimos. E, no entendimento de todos os ministros presentes à sessão, neste caso não se enquadra a prisão civil por dívida.

"A Constituição Federal não deve ter receio quanto aos direitos fundamentais", disse o ministro Cezar Peluso, ao lembrar que os direitos humanos são direitos fundamentais com primazia na Constituição. "O corpo humano, em qualquer hipótese (de dívida) é o mesmo. O valor e a tutela jurídica que ele merece são os mesmos. A modalidade do depósito é irrelevante. A estratégia jurídica para cobrar dívida sobre o corpo humano é um retrocesso ao tempo em que o corpo humano era o ''corpus vilis'' (corpo vil), sujeito a qualquer coisa".

Ao proferir seu voto, a ministra Ellen Gracie afirmou que "o respeito aos direitos humanos é virtuoso, no mundo globalizado". "Só temos a lucrar com sua difusão e seu respeito por todas as nações", acrescentou ela.

No mesmo sentido, o ministro Menezes Direito afirmou que "há uma força teórica para legitimar-se como fonte protetora dos direitos humanos, inspirada na ética, de convivência entre os Estados com respeito aos direitos humanos".

Tratados e convenções proíbem a prisão por dívida

Menezes Direito filiou-se à tese hoje majoritária, no Plenário, que dá status supralegal (acima da legislação ordinária) a esses tratados, situando-os, no entanto, em nível abaixo da Constituição. Essa corrente, no entanto, admite dar a eles status de constitucionalidade, se votados pela mesma sistemática das emendas constitucionais (ECs) pelo Congresso Nacional, ou seja: maioria de dois terços, em dois turnos de votação, conforme previsto no parágrafo 3º, acrescido pela pela Emenda Constitucional nº 45/2004 ao artigo 5º da Constituição Federal.

No voto que proferiu em 12 de março, quando o julgamento foi interrompido por pedido de vista de Menezes Direito, o ministro Celso de Mello lembrou que o Pacto de São José da Costa Rica sobre Direitos Humanos, ratificado pelo Brasil em 1992, proíbe, em seu artigo 7º, parágrafo 7º, a prisão civil por dívida, excetuado o devedor voluntário de pensão alimentícia.

O mesmo, segundo ele, ocorre com o artigo 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, patrocinado em 1966 pela Organização das Nações Unidas (ONU), ao qual o Brasil aderiu em 1990.Até a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana, firmada em 1948, em Bogotá (Colômbia), com a participação do Brasil, já previa esta proibição, enquanto a Constituição brasileira de 1988 ainda recepcionou legislação antiga sobre o assunto.

Também a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena (Áustria), em 1993, com participação ativa da delegação brasileira, então chefiada pelo ex-ministro da Justiça e ministro aposentado do STF Maurício Corrêa, preconizou o fim da prisão civil por dívida. O ministro lembrou que, naquele evento, ficou bem marcada a interdependência entre democracia e o respeito dos direitos da pessoa humana, tendência que se vem consolidando em todo o mundo.

O ministro invocou o disposto no artigo 4º, inciso II, da Constituição, que preconiza a prevalência dos direitos humanos como princípio nas suas relações internacionais, para defender a tese de que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, mesmo os firmados antes do advento da Constituição de 1988, devem ter o mesmo status dos dispositivos inscritos na Constituição Federal (CF). Ele ponderou, no entanto, que tais tratados e convenções não podem contrariar o disposto na Constituição, somente complementá-la.

A CF já dispõe, no parágrafo 2º do artigo 5º, que os direitos e garantias nela expressos "não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Duas teses

O ministro Menezes Direito filiou-se à tese defendida pelo presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, que concede aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos a que o Brasil aderiu um status supralegal, porém admitindo a hipótese do nível constitucional delas, quando ratificados pelo Congersso de acordo com a EC 45 (parágrafo 3º do artigo 5º da CF).

Neste contexto, o ministro Gilmar Mendes advertiu para o que considerou um "risco para a segurança jurídica" a equiparação dos textos dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil é signatário ao texto constitucional. Segundo ele, o constituinte agiu com maturidade ao acrescentar o parágrafo 3º ao artigo 5º da CF.

No mesmo sentido se manifestaram os ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia, além de Menezes Direito. Foram votos vencidos parcialmente - defendendo o status constitucional dos tratados sobre direitos humanos os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie.". [03]

Dentre as diversas questões que poderiam ser abordadas em face do mencionado julgamento, uma, em especial, nos chamou a atenção: a inegável evolução da jurisprudência da Suprema Corte acerca da hierarquia dos tratados humanos no direito brasileiro.


2 Jurisprudência anterior do STF acerca da hierarquia dos Tratados de Direitos Humanos. Equiparação à lei.

Em trabalho específico sobre os tratados de direitos humanos no direito brasileiro, [04] tivemos a oportunidade de expor que existem quatro correntes acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos: a) caráter meramente legal ou da paridade hierárquica entre tratados de direitos humanos e lei federal; b) caráter constitucional dos tratados de direitos humanos; c) caráter supralegal dos tratados de direitos humanos; e d) caráter supraconstitucional dos tratados de direitos humanos.

Naquela oportunidade, defendemos que a jurisprudência majoritária do STF filiava-se a primeira corrente acima exposta, ou seja, àquela que equipara a força normativa dos tratados à lei. Por esta corrente, os tratados internacionais, sejam de direitos humanos ou não, possuem a mesma hierarquia de lei ordinária federal [05] e, no conflito entre esses diplomas, aplicam-se os princípios da "lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível" (lex posterior derrogat priori) ou da especialidade, ressalvada, ainda, a possibilidade de responsabilização do Estado no plano internacional.

De fato, a jurisprudência do STF alterou-se a partir de 1977, quando, no julgamento do precedente RE nº 80.004, se firmou o entendimento de que os tratados internacionais estão em paridade com a lei federal, apresentando a mesma hierarquia que esta.

Tal entendimento foi, posteriormente, confirmado, inclusive em relação aos tratados de direitos humanos, nos precedentes HC nº 72.131-RJ (DJ 20.9.1996), ADI nº 21/600 (DJ 21.11.1997), ADI nº 939-7 (DJ 18.3.1994), HC nº 730442 (DJ 20/9/1996), HC nº 76561-3 (DJ 2.2.2001), RE nº 206482-3 (DJ 5.9.2003), e RHC nº 79785-7 (DJ 22.11.2002). Neste último, que envolvia o alcance interpretativo do princípio do duplo grau de jurisdição, previsto pela Convenção Americana de Direitos Humanos, pode-se ter uma noção clara do entendimento do STF com uma simples leitura do seguinte trecho da ementa do referido julgado, verbis:

"4. Prevalência da Constituição, no Direito brasileiro, sobre quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos humanos, que impede, no caso, a pretendida aplicação da norma do Pacto de São José: motivação. (...) 2. Assim como não o afirma em relação às leis, a Constituição não precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita em preceitos inequívocos seus, como os que submetem a aprovação e a promulgação das convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição e menos exigente que o das emendas a ela e aquele que, em conseqüência, explicitamente admite o controle da constitucionalidade dos tratados (CF, art. 102, III, b)" (PLENO, RHC nº 79.785-RJ, Relator: Min. Sepúlveda Pertence, DJ: 22.11.2002).

O professor GEORGE GALINDO resume os principais argumentos lançados pela tese vencedora no STF, a saber:

"1) o caráter constitucional dos tratados de Direitos Humanos minimizaria a soberania brasileira; 2) sendo normas meramente legais, é possível o controle de constitucionalidade dos tratados de direitos humanos; 3) tal como outros tratados internacionais, o critério para solucionar antinomias entre normas de mesmo patamar (lei e tratado) seria o princípio lex posterior derrogat priori; 4) o ordenamento jurídico brasileiro subordinaria o ordenamento internacional; 5) tratados internacionais não podem impedir o Parlamento de legislar; 5) tratados não implicam emendas constitucionais; 6) Haveria em jogo um verdadeiro direito fundamental dos credores de dívidas oriundas de descumprimento de contratos de alienação fiduciária a sobrepor-se ao direito de os devedores de não serem submetidos à prisão civil." [06]

Não obstante, já àquela época existiam vozes dissonantes no âmbito da Excelsa Corte. Com efeito, o eminente ministro aposentado CARLOS VELLOSO defendia o caráter constitucional dos tratados de direitos humanos. É o que se extrai do seguinte excerto de seu voto no HC nº 82.424-RS, onde igualmente se discutia a validade da prisão no contrato de alienação fiduciária em garantia, ante o Pacto de São José da Costa Rica, in verbis:

"se é certo que é preciso distinguir os direitos fundamentais materiais dos direitos fundamentais puramente formais, não é menos certo, entretanto, que, no caso, estamos diante de direito material fundamental, que diz respeito à liberdade. Assim, a Convenção de São José da Costa Rica, no ponto, é vertente de direito fundamental. É dizer, o direito assegurado no art. 7º, item 7, da citada Convenção, é um direito fundamental, em pé de igualdade com os direitos fundamentais expressos na Constituição" (PLENO, HC nº 72.131-RJ, Relator: Min. Marco Aurélio, DJ: 1.8.2003).

O também já aposentado Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, por sua vez, adotava a tese do caráter supralegal dos tratados de direitos humanos, consoante se extrai do seguinte excerto do seu voto no referido RHC nº 79785-7RJ:

"(...) parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5º, § 2º, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização de direitos humanos." (PLENO, RHC nº 79.785-RJ, Relator: Min. Sepúlveda Pertence, DJ: 22.11.2002).

O panorama jurisprudencial da Suprema Corte acima mencionado, contudo, mudou substancialmente após o julgamento dos RE 349.703 e 466343 e do HC 466343, conforme se passa a demonstrar.


3. Jurisprudência atual do STF acerca da hierarquia dos Tratados de Direitos Humanos. Caráter supralegal.

Com o julgamento dos citados precedentes RE 349.703 e 466343 e do HC 466343, formaram-se duas teses na composição atual do Excelso STF acerca da posição hierárquica dos tratados de direitos humanos. Por apertada maioria, sagrou-se vitoriosa a tese do caráter supralegal dos tratados de direitos humanos, com votos dos Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Menezes Direito e Cármen Lúcia.

Os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie, por sua vez, ficaram vencidos no tema em comento, dando aos tratados a qualificação constitucional.

Assim, até o presente momento, a jurisprudência majoritária da Suprema Corte reconhece o caráter supralegal dos tratados de direitos humanos, ou seja, que estes ingressam no ordenamento jurídico brasileiro com hierarquia infraconstitucional, mas com status superior ao da lei. A tese foi capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, que chegou a advertir que é um "risco para a segurança jurídica" a equiparação dos textos dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil é signatário ao texto constitucional. [07]

Observe-se, porém, que o quorum não estava completo quando do julgamento dos citados precedentes. Apenas nove ministros votaram, não havendo a participação dos eminentes Ministros Joaquim Barbosa e Carlos Britto, tidos como julgadores da ala progressista do Supremo Tribunal Federal.

Dessa maneira, é bastante provável que o Supremo Tribunal Federal avance ainda mais na questão, de modo a reconhecer o caráter constitucional dos tratados de direitos humanos de que o país seja parte, o que sem dúvida representará uma tutela ainda mais efetiva dos direitos humanos no Brasil.

Nesse contexto, destaque-se que a maioria das Constituições latino-americanas conferem um caráter especial ou diferenciado acerca dos tratados de direitos humanos de que o respectivo país seja signatário. Apenas a título de exemplo, observe-se que as Constituições do Peru, da Argentina, da Venezuela e da Nicarágua atribuem hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos, ao passo que as Cartas de Guatemala, Colômbia e Chile lhes atribuem hierarquia especial, com preeminência sobre a legislação ordinária e o restante do direito interno. [08]

No Brasil, poder-se-ia chegar à conclusão do status constitucional dos tratados de direitos humanos antes mesmo da inclusão do § 3º, do art. 5º, da CF/88, pela Emenda Constitucional nº 45/2004. [09] Isso porque o § 2º do mesmo dispositivo já preceituava que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte." (destaques nossos).

Nesse sentido, pontua a ilustre professora FLÁVIA PIOVESAN que a previsão da cláusula aberta inserta no § 2º do art. 5º da CF/88 "está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Esse processo de inclusão implica a incorporação pelo Texto Constitucional de tais direitos" [10].

Também com fundamento no citado § 2º do art. 5º da CF/88 o futuro juiz do tribunal de Haia, [11] ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, acentua o caráter constitucional dos tratados de direitos humanos, in litteris:

"Assim, a novidade do art. 5º (2) da Constituição de 1988 consiste no acréscimo, por proposta que avancei, ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, dos direitos e garantias expressos em tratados internacionais sobre proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte. Observe-se que os direitos se fazem acompanhar necessariamente de garantias. É alentador que as conquistas do direito internacional em favor da proteção do ser humano venham a projetar-se no direito constitucional, enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista.". [12]

Portanto, pela regra do § 2º do art. 5º da CF/88, os tratados de direitos humanos teriam a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais, integrando o que o professor lusitano CANOTILHO denomina de bloco de constitucionalidade. [13] Tal interpretação é consonante, inclusive, com o princípio da máxima efetividade, pelo qual, à norma constitucional, especialmente a que define direitos e garantias fundamentais, deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê [14].

Verifique-se, ainda, a pertinente observação do professor INGO SARLET, ao argumentar com uma necessária interação entre os direitos fundamentais constitucionais e os direitos humanos internacionais, verbis:

"À luz dos argumentos esgrimidos, verifica-se que a tese da equiparação (por força do disposto no art. 5º, § 2º, da CF) entre os direitos fundamentais localizados em tratados internacionais e os com sede na Constituição formal é a que mais se harmoniza com a especial dignidade jurídica e axiológica dos direitos fundamentais na ordem jurídica interna e internacional, constituindo, ademais, pressuposto indispensável à construção e consolidação de um autêntico direito constitucional internacional dos direitos humanos, resultado da interpenetração cada vez maior entre os direitos fundamentais constitucionais e os direitos humanos dos instrumentos jurídicos internacionais." [15]

O escólio doutrinário acima mencionado, em prol da atribuição do caráter constitucional dos tratados de direitos humanos, vem sendo seguido por um expressivo número de Ministros do STF, destacando-se a posição do eminente Ministro CELSO DE MELLO, que numa atitude digna de louvor, reconheceu expressamente que evoluiu o seu entendimento a respeito do tema.

Tal fato pode ser extraído do seu exauriente e impecável voto proferido na condição de Relator do HC nº 90450/MG, em julgamento ocorrido em 23.9.2008, perante a 2ª Turma do STF. Por ser absolutamente coerente com as premissas ora destacadas, transcreve-se abaixo o seguinte excerto do seu belo voto:

"Tenho para mim, desse modo, Senhores Ministros, que uma abordagem hermenêutica fundada em premissas axiológicas que dão significativo realce e expressão ao valor ético-jurídico – constitucionalmente consagrado (CF, art. 4º, II) – da ‘prevalência dos direitos humanos’ permitirá, a esta Suprema Corte, rever a sua posição jurisprudencial quanto ao relevantíssimo papel, à influência e à eficácia (derrogatória e inibitória) das convenções internacionais sobre direitos humanos no plano doméstico e infraconstitucional do ordenamento positivo do Estado brasileiro.

Com essa nova percepção do caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, dar-se-á conseqüência e atribuir-se-á efetividade ao sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana, reconhecendo-se, com essa evolução do pensamento jurisprudencial desta Suprema Corte, o indiscutível primado que devem ostentar, sobre o direito interno brasileiro, as convenções internacionais de direitos humanos, ajustando-se, desse modo, a visão deste Tribunal, às concepções que hoje prevalecem, no cenário internacional – consideradas as realidades destes emergentes -, em torno da necessidade de amparo e defesa da integridade dos direitos da pessoa humana.

Nesse contexto, e sob essa perspectiva hermenêutica, valorizar-se-á o sistema de proteção aos direitos humanos, mediante atribuição, a tais atos de direito internacional público, de caráter hierarquicamente superior ao da legislação comum, em ordem a outorga-lhes, sempre que se cuide de tratados internacionais de direitos humanos, supremacia e precedência em face de nosso ordenamento doméstico, de natureza meramente legal.

(...)

Como precedentemente salientei neste voto, e após detida reflexão em torno dos fundamentos e critérios que me orientaram em julgamento anteriores (RTJ 179/493-496, v.g.), evoluí, Senhores Ministros, no sentido de atribuir, aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, superioridade jurídica em face da generalidade das leis internas brasileiras, reconhecendo, a referidas convenções internacionais, nos termos que venho de expor, qualificação constitucional, como preconiza, em douto magistério, o eminente Professor LUIZ FLÁVIO GOMES (‘Estado Constitucional de Direito e a nova pirâmide jurídica’, p. 30 e ss., 2008, São Paulo, Premier Máxima)." (destaques originais).

Endossando as palavras do eminente Ministro CELSO DE MELLO, espera-se realmente que a Suprema Corte evolua ainda mais a respeito do tema, de modo a reconhecer definitivamente o caráter constitucional dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil.


4 Conclusão

Depois do julgamento dos precedentes RE 349.703 e 466343 e do HC 466343, houve uma inegável evolução da jurisprudência do STF acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no direito brasileiro. Antes equiparado à lei ordinária federal, agora prevalece o entendimento de que os tratados de direitos humanos têm status supralegal.

Há uma forte tendência de que a jurisprudência do Supremo evolua ainda mais, em prol do reconhecimento do caráter constitucional dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, seja diante da apertada votação no julgamento dos citados precedentes (5 votos contra 4), seja diante da ausência de manifestação de dois julgadores sobre o tema naquela assentada.

E assim se espera, pois, nas palavras de uma das maiores (senão a maior) sumidades do assunto: "A hierarquia de valores deve corresponder uma hierarquia de normas, nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplicadas mediante critérios apropriados. Os tratados de direitos humanos têm um caráter especial, e devem ser tidos como tais." [16]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

, Roberto. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002.

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BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, HC nº 72.131-RJ, Relator: Min. Marco Aurélio, Diário da Justiça, DF. 1 agost. 2003.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, RHC nº 79.785-RJ, Relator: Min. Sepúlveda Pertence, Diário da Justiça, DF. 22 nov. 2002.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003.

GALINDO, George Rodrigo Bandeira. O § 3º do Art. 5º da Constituição Federal: Um retrocesso para a Proteção Internacional dos Direitos Humanos no Brasil. In: Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. Ano 6, V. 6, n. 6, pp. 121-132, 2006.

FELZEMBURG, Daniel Martins. Tratados internacionais de direitos humanos no direito brasileiro: Reflexões sobre uma possível regulamentação legislativa. Prismas: Direito, Políticas Públicas e Mundialização, v. 5, n. 1, 2008.

MELLO, Celso de Albuquerque. O § 2º do Art. 5º da Constituição Federal. In: Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, pp. 1-33, 2001.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais, a Reforma do Judiciário e os tratados internacionais de direitos humanos: notas em torno dos §§ 2º e 3º do art. 5º da Constituição de 1988. In: Revista de direito do estado, n. 1, pp. 59-88, jan./mar. 2006, Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991.


Notas

  1. "7. Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.".
  2. "Art. 5º (...)
  3. (...)

    LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;" (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: 1988. 25ª ed., Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2005).

  4. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100258, acesso em 11.12.2008.
  5. FELZEMBURG, Daniel Martins. Tratados internacionais de direitos humanos no direito brasileiro: Reflexões sobre uma possível regulamentação legislativa. Prismas: Direito, Políticas Públicas e Mundialização, v. 5, n. 1, 2008.
  6. Não é demais recordar que os tratados só produzem efeitos no ordenamento jurídico brasileiro quando são celebrados pelo Presidente da República (art. 84 da CF) e são posteriormente ratificados pelo Congresso, conforme dispõe o art. 49 do Texto Maior. Por essa razão, são incorporados ao sistema jurídico com status de lei ordinária federal, à exceção do procedimento previsto no § 3º do artigo 5º da CF/88.
  7. GALINDO, O § 3º do Art. 5º da Constituição Federal: Um retrocesso para a Proteção Internacional dos Direitos Humanos no Brasil. In: Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. Ano 6, V. 6, n. 6, 2006, p. 123.
  8. Conforme extraído da notícia em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100258, acesso em 11.12.2008.
  9. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 77-80.
  10. Há quem defenda que, longe de contribuir para defesa dos direitos humanos, "em um balanço geral, o § 3º do art. 5º representa um retrocesso para a proteção internacional dos direitos humanos e fundamentais no Brasil" (GALINDO, ob. cit., p. 129).
  11. PIOVESAN, ob. cit., p. 52.
  12. "As Nações Unidas nomearam, na quinta-feira (6/11), cinco juízes para a Corte Internacional de Justiça, em Haia. Entre eles, está o brasileiro Antônio Cançado Trindade. Ele recebeu o apoio de 163 membros na Assembléia Geral da ONU, onde foi o candidato mais votado, e de 14 membros do Conselho de Segurança. Cançado teve a maior votação da história das eleições para a Corte. (...) Os juízes tomarão posse no dia 6 de fevereiro de 2009 para um mandato de nove anos. A corte tem 15 juízes, que são renovados em grupos de cinco a cada três anos. Fundado em 1945, o tribunal é o principal organismo judiciário das Nações Unidas." (Notícia extraída do sítio do Consultor Jurídico, em http://www.conjur.com.br/static/text/71529,1, acesso em 13.12.2008).
  13. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 631.
  14. "Todavia, e mais uma vez, o programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivista, ao ‘texto’ da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios da constituição, alargando o ‘bloco de constitucionalidade’ a princípios não escritos desde que reconduzíveis ao programa normativo-constitucional, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas." (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 921)
  15. Idem, pp. 58/59. Em sentido semelhante, ROBERT ALEXY sustenta um "argumento de otimização" para significar que os direitos fundamentais, em razão do seu caráter principiológico, devem ser realizados na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas. Nas palavras do autor, "los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos em diferente grado" (ALEXY, Roberto. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 86).
  16. SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais, a Reforma do Judiciário e os tratados internacionais de direitos humanos: notas em torno dos §§ 2º e 3º do art. 5º da Constituição de 1988. In: Revista de direito do estado, n. 1, pp. 59-88, jan./mar. 2006, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 75.
  17. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Memorial em Prol de uma Nova Mentalidade Quanto à Proteção dos Direitos Humanos nos Planos Internacional e Nacional. In: Anais do VI Seminário Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito da UERJ, 1997, pp. 3-48; apud MELLO, Celso de Albuquerque. O § 2º do Art. 5º da Constituição Federal. In: Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 27.

Autor

  • Daniel Martins Felzemburg

    Daniel Martins Felzemburg

    Procurador Federal, atualmente exercendo a chefia da Procuradoria Federal Especializada do INCRA no Estado do Tocantins. Graduado em Direito pela Universidade Salvador – UNIFACS (2003). Especialista em Direito Processual Civil pelas Faculdades Jorge Amado (2005), em Salvador-BA. Sócio honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil desde 2006. Pós-graduando Lato Sensu em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELZEMBURG, Daniel Martins. Nota sobre a evolução da jurisprudência do STF acerca da hierarquia dos tratados de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2308, 26 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13734. Acesso em: 26 abr. 2024.