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Ação civil pública para implantação de unidade especializada de internação de adolescente infrator

Ação civil pública para implantação de unidade especializada de internação de adolescente infrator

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Tendo em vista que adolescentes infratores estão cumprindo medida sócio-educativa juntamente com imputáveis que cumprem penas de detenção e reclusão, a Promotoria da Infância e da Juventude de Araguaína (TO) ajuizou ação civil pública contra o Estado de Tocantins para a implantação de unidade especializada de internação de adolescente infrator.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DA COMARCA DE ARAGUAÍNA/TO.

"Na opinião da Comissão (Interamericana de Direitos Humanos), o dever do Estado de proteger a integridade pessoal de toda pessoa privada de liberdade inclui a obrigação positiva de tomar todas as medidas preventivas para evitar os ataques ou atentados contra uma pessoa presa por parte de agentes do Estado ou por particulares. Tais obrigações adquirem maior severidade quando se trata de menores de idade, pois o Estado deve não somente buscar e proteger sua integridade pessoal, mas também o desenvolvimento integral de sua personalidade e sua reintegração à sociedade."

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO TOCANTINS, por estes promotores de Justiça que abaixo subscrevem, com apoio nos artigos 127 e 129, incisos II e III, da Constituição Federal e art. 201, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente, e usando da via processual eleita nos artigos 212 e art. 213 da Lei Federal 8.069/90, vêm, perante Vossa Excelência, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA para cumprimento de obrigação de fazer, bem como de não fazer, COM PEDIDO DE LIMINAR, em desfavor do ESTADO DO TOCANTINS, pessoa jurídica de direito público interno, com sede na Praça dos Girassóis, em Palmas, sendo representado por seu Procurador-Geral do Estado - atualmente o senhor Hércules Ribeiro Martins -, que poderá ser encontrado na sede da Procuradoria-Geral do requerido, situada na ACSE 11, 106 Sul, Conj. 03, L. 32, também na Capital, pelas razões de fato e de direito doravante delineadas.


1) DOS FATOS.

O Ministério Público foi procurado por parentes de adolescentes que cumprem medida sócioeducativa de internação (provisória ou definitiva), os quais narraram, com detalhes, a situação de penúria e de descaso com que os infratores juvenis estão sendo cuidados durante o período de internação na cidade de Ananás/TO (única Cadeia disponível para os adolescentes apreendidos em Araguaína).

Após tomar ciência destes fatos, foi instaurado o procedimento administrativo n° 001/06 com o objetivo de apurar qual a dimensão da omissão do Estado em desfavor dos jovens infratores. Ao final, descoberta a precária situação dos mecanismos de atuação da Justiça da Infância e Juventude desta Comarca, não sobrou nenhuma opção a estes promotores de Justiça, senão ajuizar a presente ação contra o Estado do Tocantins para que este cumpra seu mister e proteja seus filhos da lastimável posição que se encontram.

Os Municípios de Nova Olinda, Santa Fé do Araguaia, Araguanã, Aragominas, Muricilândia, Carmolândia e Araguaína, compõem a Comarca de 3ª Entrância de Araguaína, talvez a mais movimentada deste Estado, ressaltando que na Vara da Infância e Juventude estão tramitando mais de quinhentos processos referentes à apuração de atos infracionais cuja prática é atribuída a adolescentes.

Ademais, diariamente novos procedimentos são instaurados, tanto pela Delegacia de Polícia da Infância e Juventude, quanto pelo Ministério Público, perante esse Juízo, buscando a aplicação, aos respectivos transgressores, das medidas cabíveis, dentre estas as de internação e regime de semiliberdade, previstas no art. 112, V e VI, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Entretanto, em razão da omissão do réu, esta Comarca não dispõe de programa de internação e (regime de semiliberdade) para adolescentes infratores, nem mesmo de unidade especializada para sua implantação.

Resumindo, a Comarca de Araguaína não dispõe de local adequado para se fazer cumprir as medidas de internação (e de semiliberdade), malgrado a existência de compromisso de ajustamento de conduta já firmado entre o Ministério Público e o Governo do Estado com o desiderato de se implantar o regime de semiliberdade nesta Comarca (fls. 33/34). Vale ressaltar que referido termo de ajustamento de conduta está vencido desde 15 de janeiro de 2.007, data em que se fez possível o ajuizamento de ação de execução do título executivo firmado. No entanto, com o objetivo de se construir apenas um centro para cumprimento de medidas de segregação da liberdade de jovens infratores, o qual deverá ser implantado de forma organizada, planejada, resguardando todos os direitos dos adolescentes, é que se aguardará a implantação desse centro único (nos moldes do CASE – implantado em Palmas/TO), conciliando-se as medidas de internação e de semiliberdade, pois a criação de centro com a finalidade de se implantar apenas o regime de semiliberdade, seria total desperdício de dinheiro público diante da ineficácia da medida, uma vez que a emergência se encontra na falta de um centro para, no mínimo, efetuar-se a internação provisória de adolescentes aprendidos em flagrante na Comarca de Araguaína.

Assim é que, para manter apreendidos os adolescentes infratores, seja quando do cumprimento da medida de internação (definitiva), seja apenas provisoriamente, o Estado se vale, atualmente, da Comarca de Ananás, utilizando-se de duas celas, uma com capacidade para 04 adolescentes e a outra para 03 jovens, ambas localizadas no interior da cadeia pública local. Saliente-se que o citado município está a 160 km de distância desta Comarca, o que dificulta sobremaneira a visita dos parentes a seus filhos, sobrinhos, netos, etc, principalmente, em virtude da precariedade econômica e financeira que normalmente acompanha estas famílias (fls. 51).

Neste sentido, adolescentes e presos adultos dividem os espaços internos da cadeia pública de Ananás, sendo separados apenas pelas paredes divisórias, mantendo, entretanto, contato visual e comunicação com os presos adultos. Não foi esta a meta traçada pelo legislador para o cumprimento de medidas sócio-educativas (fls. 52).

É de conhecimento geral dos tocantinenses que nunca existiu um local específico para receber estes adolescentes em conflito com a lei. Num passado próximo, estes infratores já foram depositados nas cidades de Santa Fé do Araguaia, Darcinópolis, Wanderlândia, entre outras, sempre de forma emergencial e desprovida de qualquer coordenação, organização ou com qualquer seriedade (fls. 53).

Nenhum destes locais propiciou aos adolescentes o mínimo de conforto e garantias que a lei lhes outorgou, como o direito à saúde, educação e convivência familiar para falar o mínimo necessário.

A implantação deste centro na Comarca de Araguaína deverá beneficiar, inclusive, outras cidades da região do Bico do Papagaio, pois nesta região não existe sequer um abrigo adequado para receber adolescentes infratores.

Os gestores tocantinenses nunca enfrentaram condignamente o problema do infanto-juvenil em conflito com a ordem jurídica, deixando de lado projetos de base e de educação, suficientes para evitar a criminalidade. De outro lado, sobra dinheiro para a construção de prédios públicos, compra de carros para as autoridades, verbas para publicidade, enfim, a conveniência e oportunidade estudadas no direito público acabam por vitimar o lado mais fraco da balança. Outrossim, os recursos necessários à implementação do programa acima referido devem ser obtidos junto ao orçamento do Governo do Estado, através do remanejamento dos recursos constantes do orçamento em execução, que poderão ser alocados de áreas não prioritárias (publicidade, por exemplo), conforme disposto na Lei Orçamentária e Lei de Responsabilidade Fiscal e/ou, se necessário, por intermédio da abertura de créditos orçamentários suplementares ou especiais, nos moldes do art.259, par. único, da Lei nº 8.069/90.

A omissão detectada vêm se estendendo desde o ano de 1.990, ou seja, passados mais de 17 anos e o Estado do Tocantins ainda não teve verba para construir um centro especializado para internação de adolescentes? No mínimo, deveria haver 03 centros deste porte, nas Comarcas de Gurupi, Palmas e Araguaína, de forma a abrigar estes jovens próximos de suas famílias. Não é justo deslocar um adolescente que comete ato infracional, por exemplo, em Araguatins/TO, a cerca de 660 km da capital, para cumprir sua internação em Palmas, único centro especializado do Estado.

A dotação orçamentária acima referida deve ser independente da necessária destinação de recursos próprios para o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que serão utilizados para ações e programas de caráter emergencial, não contemplados no orçamento, de acordo com as deliberações do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que é o seu gestor (conforme art.88, inciso IV, da Lei nº 8.069/90).

O réu não pode, de forma alguma, sustentar ignorância quanto ao tema, muito menos surpresa com o ajuizamento da presente ação, pois é fato público e notório a falta de local adequado para internar os adolescentes infratores. Não bastasse esse argumento, foram juntados diversos ofícios encaminhados, por ordem de V. Exa., para a Secretaria de Segurança Pública, bem como a outros órgãos ligados ao Governo dando ciência do descaso que a Comarca se encontra no que concerne ao tratamento de adolescentes (fls. 60/63/69).

Os ofícios encaminhados pelo Ministério Público para a Assembléia Legislativa, para o Governador do Estado, para o deputado relator da Lei Orçamentária Anual e para a Prefeitura Municipal desta cidade apenas reforçaram o conhecimento que todas estas autoridades tinham da situação da Comarca de Araguaína/TO, que não tem um só local para apreender, ao menos em flagrante, um jovem infrator (fls. 21/22/28/29/30).

Para refutar qualquer tipo de argumento de defesa a respeito de falta de orçamento (cláusula da reserva do possível), basta visualizar as folhas 33/34 do presente procedimento administrativo. Neste, foi juntado TAC firmado entre o Ministério Público e o atual Governador do Estado, no sentido de, até a data de 15 de janeiro de 2007, alocar recursos do orçamento para a criação do regime de semiliberdade nesta Comarca, bem como em Palmas e Gurupi. Neste contexto, é lógico que houve muito tempo para se organizar, acaso fosse de interesse político, e incluir na lei orçamentária deste ano verba suficiente para se construir, em Araguaína/TO, um centro especializado para adolescentes infratores.

Quer dizer, na atual situação, adolescentes e criminosos acabam por ocupar o mesmo prédio, mantendo contato uns com os outros, surgindo oportunidade para que os primeiros assimilem comportamentos e idéias que não aproveitam a suas necessidades, acarretando-lhes um agravamento da degeneração do caráter.

Decorre daí a frustração de qualquer expectativa de serem alcançados os resultados almejados pelo diploma legal ali referido, mesmo tendo este estabelecido uma política de atuação estatal destinada a promover a proteção aos adolescentes, voltada a prevenir a prática de atos infracionais e a propiciar àqueles que transgrediram oportunidade de alcançarem o reajustamento do processo de formação do caráter sem se submeterem a constrangimentos evitáveis.

Mas não é só isso!

Em certas ocasiões, aquelas duas celas destinadas para os jovens infratores chegam a abrigar mais de dez adolescentes, que permanecem dia e noite amontoados, entre paredes umedecidas, mictório exalando odor desagradável, roupas sujas, roupas molhadas, falta de colchões, garrafas d´água e vasilhas de comida espalhados pelo piso, apenas a espera do passar das horas, sendo-lhes negado o acesso à escola ou ao aprendizado de qualquer ofício.

Referido local é absolutamente inóspito à permanência dos infratores.

Esse quadro deprimente foi constatado pelo Conselho Tutelar de Araguaína, bem como pelo próprio Diretor do estabelecimento, conforme se vê dos relatórios anexados a esta, e das várias fotografias que os acompanham (fls. 53/59).

Estamos falando de uma realidade que se constitui numa humilhação, imposta a toda a comunidade das cidades que compõem esta Comarca.

Por sua vez, a Justiça da Infância e Juventude, em face da absoluta falta de opção, se vê diante do constrangimento de tolerar a permanência de adolescentes naquele recinto, ou mesmo em celas improvisadas dentro do 2° BPM, até como único meio de resguardar a integridade física daqueles ou mesmo de terceiros. Ou seja, a Justiça está sendo premida a sopesar dois males e optar pelo menos nefasto aos interesses dos adolescentes (vide ofício 228/2006 oriundo da DP da Infância e Juventude local solicitando, vergonhosamente, uma vaga para um adolescente aprendido – fl. 72).

Chegamos ao ponto de não possuirmos sequer um local adequado para manter a apreensão em flagrante de um adolescente infrator, na hipótese de superlotação das celas do 2° BPM e de Ananás.

Esse estado de coisas faz com que, em muitos casos, já se saiba de antemão que o processo não produzirá nenhum efeito prático, e reflexo disso é o alto índice de reincidência. O sentimento de impunidade é a mola propulsora da criminalidade.

E a situação tende a agravar-se ainda mais.

Com efeito, certidões do Cartório da Vara da Infância e Juventude, anexadas a esta, dão conta da existência de inúmeros processos tramitando por ali, de diversos mandados de busca e apreensão aguardando cumprimento, muitos deles, com certeza, relacionados a processos envolvendo infrações que justificam a aplicação de medida sócio-educativa de internação ou semiliberdade, e noticiam superlotação, agressões físicas entre adolescentes no interior da cela e até prática de fato correspondente a atentado violento ao pudor (vide fotos inclusas demonstrando marcas de violência na pele dos adolescentes – fls. 48, 49, 57, 58).

A conclusão a qual se chega é que a essa categoria de adolescentes o Poder Público estadual se preocupou apenas em dispensar uma Delegacia de Polícia e agentes para capturá-los e mantê-los em um cubículo, furtando-se ao dever de propiciar-lhes meios e estímulo para que façam o caminho de volta.

Administrativamente, tentativas foram feitas objetivando a solução do problema, com o encaminhamento de várias solicitações ao réu para que este tornasse efetiva, nesta Comarca, a execução, de forma humana e eficiente, daquelas medidas sócio-educativas, mas todas foram em vão, pois o mesmo sempre adiou o cumprimento do seu dever, apesar das promessas de ocasião. Até parece que, para o réu, parte do ECA, em vigor desde 1.990, ainda não entrou em vigência.

E se é verdade que o Estado, conforme noticia a propaganda oficial, tem desenvolvido projetos em favor de crianças e jovens, ressaltando, dentre outras, sua preocupação em oferecer-lhes formação moral e intelectual e uma subsistência mais digna, por que então esquecer o outro lado da moeda?

É da consciência geral a compreensão de que é praticamente inviável o afastamento desses infratores da vida perniciosa que estão levando, apenas trancafiando-os numa cadeia de uma pequena cidade (Ananás), onde experimentam todo tipo de privação, sem lhes propiciar qualquer perspectiva que os motive a readquirirem o gosto por atividades produtivas, como estudar, trabalhar e conviver em família.

Da mesma forma, nenhum resultado interessante adviria caso permanecessem perambulando pelas ruas; mas do jeito que as coisas estão evoluindo, chegará o momento em que tal opção se apresentará mais recomendável que a atual.

Ressalte-se que, à medida que não se dispensa o devido tratamento aos infratores, a maioria destes tende a reincidir, passando a praticar condutas mais graves e violentas que as anteriores, resultando em mais sofrimento para as vítimas e aumento da sensação de insegurança para toda comunidade.

Interessa mencionar que, dentro do possível, a sociedade tem tentado dar a sua contribuição às causas que envolvem a infância e juventude. Então, como aceitar que o Estado, provido de muito mais meios e recursos, permaneça de olhos fechados diante dessa realidade?

Negando-se a implantar o programa de internação e regime de semiliberdade, em unidade especializada, o Estado está a afrontar preceitos que lhe impõem a obrigação de assegurar proteção integral à criança e ao adolescente, colocando-os a salvo de "toda forma de violência, crueldade e opressão", a exemplo do disposto no artigo 127 da Constituição Federal, bem como no seu § 3°, que determina obediência, dentre outros, ao princípio do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação, àqueles, de qualquer medida privativa de liberdade.

Da mesma forma, a inércia estatal representa um verdadeiro acinte à Lei n° 8.069/90, ao inviabilizar a preponderância dos princípios por ela ditados, como os anunciados nos artigos 17 e 24, que se apresentam absolutamente incompatíveis com o horizonte sombrio que se nos apresenta, e ainda no art. 123, que dispõe:

"A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração." (grifamos)

E nem mesmo a possibilidade de responsabilização daquele que não disponibiliza ao adolescente privado de liberdade escolarização e profissionalização, prevista no art. 208, inciso VIII, é capaz de mover o réu.

A omissão estatal está a descortinar uma rotina de sacrifícios de direitos dos adolescentes que já se encontram inadequadamente "internados", bem como de toda a coletividade, composta também por crianças e adolescentes, que é obrigada a conviver com os reflexos negativos gerados pela falta de execução da política que a legislação de regência estabeleceu para os infratores juvenis.

Diante desse contexto, restou ao Ministério Público, no cumprimento de sua missão institucional, como decorre dos artigos 127 e 129, incisos II e III, ambos da CF, art. 201, inciso V, do ECA e art. 25, inciso V, "a", da Lei Federal n° 8.625/93, valer-se da via judicial eleita, conforme autorizam os artigos 148, inciso IV, art. 208, inciso VIII, art. 212 e art. 213 também do diploma infanto-juvenil, para que o réu seja compelido a cumprir a parcela de responsabilidade que lhe toca, vez que nenhuma circunstância pode justificar a continuidade de tamanho descaso.

Ressalte-se que, no caso, não detém o réu poder discricionário tão amplo que lhe autorize eleger, apenas segundo sua própria conveniência, a oportunidade para implantar o programa de internação e regime de semiliberdade de modo a atender o previsto nos artigos 94, 120, §2°, e 124, todos do ECA.

Aqui, o dever decorre de preceitos constitucionais (artigo 127, caput, e em seu § 3°), que impõem ao requerido, é bom relembrar, a missão de assegurar ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à dignidade, ao respeito etc., e colocá-lo a salvo de toda negligência, discriminação, violência, crueldade etc., e, quando da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade, respeitar a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Já o artigo 124 do Estatuto estabelece que são direitos do adolescente privado de liberdade, dentre outros, os de permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável (inciso VI), habitar alojamento em condições de higiene e salubridade (inciso X), receber escolarização e profissionalização (inciso XI).

Tais normas são claras ao exigir uma atuação positiva do Poder Público, não cabendo a este permanecer inerte a seu bel prazer, sob eventual alegação de que ainda não é conveniente ou oportuna a observância das mesmas, mormente diante de uma realidade objetiva que aponta a providência aqui reclamada como prevalecente, ainda mais em vista dos valores consagrados pelo sistema jurídico. De outra banda, não cabe ao administrador se valer da "Cláusula da Reserva do Possível" diante do Princípio da Proteção Integral destinada aos adolescentes, pois como valor intrínseco, esta norma prevalece diante daquela.

Não se trata, portanto, Excelência, de meras recomendações; são determinações para que o requerido resguarde, prioritariamente, direitos fundamentais do adolescente infrator, não restando margem para que estes sejam colocados no fim da fila, aguardando que aquele se desincumba de todas as outras responsabilidades que lhe são afetas.

E recursos financeiros não o faltam para enfrentar o problema, pois é notório que, conforme dá conta propaganda oficial, verbas públicas estão sendo aplicadas em várias finalidades, como o asfaltamento de várias rodovias, patrocínio de clubes de futebol, variados eventos esportivos e de muitos outros entretenimentos, que, se submetidas ao critério da prioridade, teriam de ceder a oportunidade para implantação do programa de internação e regime de semiliberdade aqui reclamado.

Se necessário for, para fins de adequação à Lei de Responsabilidade Fiscal, o réu deverá tomar as providências a que alude o art.23, §1º da citada Lei Complementar, bem como art.169, §3º, inciso I da Constituição Federal de 1988.

Vejamos o que diz a jurisprudência acerca da situação aqui debatida:

"Ação Civil Pública. Adolescente infrator. Art. 227, caput, da CR/88. Obrigação de o Estado-membro instalar e manter programas de internação e semiliberdade para adolescentes infratores.

1. Descabimento de denunciação da lide à União e ao Município. 2. Obrigação de o Estado-membro (fazer as obras necessárias) e manter programas de internação e semiliberdade para adolescentes infratores, para o que deve incluir a respectiva verba orçamentária. Sentença que corretamente condenou o Estado a assim agir, sob pena de multa diária, em ação civil pública movida pelo Ministério Público. Norma constitucional expressa sobre a matéria e de linguagem por demais clara e forte, a afastar a alegação estatal de que o Judiciário estaria invadindo critérios administrativos de conveniência e oportunidade e ferindo regras orçamentárias. Valores hierarquizados em nível elevadíssimo, àqueles atinentes à vida e à vida digna dos menores. Discricionariedade, conveniência e oportunidade não permitem ao administrador que se afaste dos parâmetros principiológicos e normativos da Constituição Federal e de todo o sistema legal..." (Apelação Cível nº 596.017.897/Santo Ângelo – Apelante: Estado do Rio Grande do Sul, Apelado: Ministério Público, r. p.p., Rel. Sérgio Gschkow Pereira).

Diante de situação equivalente, tratada em ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, em face do Estado e o Município, "onde se buscava, lê-se no acórdão, compelir os Poderes Públicos a prestar assistência social básica à população de rua na Capital do Estado", conforme consta da obra Ação Civil Pública, Lei 7.347/85 – 15 anos, p. 749, coordenada por Edis Milaré, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu "não se estar violando a disposição constante do artigo 2º da Constituição da República, mesmo porque cabe exclusivamente ao Poder Judiciário dizer o Direito. E na hipótese concreta outra coisa não se está fazendo senão dizer o Direito, determinando seja cumprida a Constituição da República em sua inteireza. Existindo norma constitucional determinando seja prestado o atendimento social, não há que falar em opção da Administração, pois a liberdade do administrador cessa ante o texto expresso de lei."

E com igual acerto, como já enunciado acima, em face de demanda em que a postulação era a mesma que a presente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sendo relator o desembargador Sérgio Gischokow Pereira, emitiu acórdão, cuja ementa é a seguinte: "A CF, em seu art. 227, define como prioridade absoluta as questões de interesse da criança e do adolescente; assim, não pode o Estado-membro, alegando insuficiência orçamentária, desobrigar-se da implantação de programa de internação e semiliberdade para adolescentes infratores, podendo o Ministério Público ajuizar ação civil pública para que a Administração Estadual cumpra tal previsão legal, não se tratando, na hipótese, de afronta ao poder discricionário do administrador público, mas de exigir-lhe a observância de mandamento constitucional" (Ap. 596.017.897, 7ª Cam. J. 12.03.1997, v.u., RT 743/132).

Não custa lembrar que vivemos num Estado de Direito, não podendo o réu furtar-se aos deveres decorrentes do mesmo, dentre os quais o de sujeitar-se aos parâmetros da legalidade.

Os Autores desta ação afiançam a Vossa Excelência que não pretendem, absolutamente, impugnar o juízo de conveniência e oportunidade próprio da administração pública. Ao contrário. O que se busca é tão-somente a aplicação da Lei. Pensamos que nem seria necessário lembrar que, num Estado Democrático de Direito, o poder discricionário da Administração Pública está condicionado pela obediência absoluta ao princípio da legalidade. E que, desse modo, qualquer ato administrativo discricionário só é válido e legítimo se praticado dentro dos parâmetros fixados pela Lei.

Nas lições de Thales Tácito Pontes de Pádua Cerqueira acerca da "cláusula da reserva do possível", em sua obra ECA – Teoria e Prática, 2005, p. 400/401, ensina o autor que "pela teoria portuguesa do "mínimo necessário à existência condigna" existe um limite à reserva do possível onde, pelo princípio constitucional da proporcionalidade/razoabilidade é possível remanejar verbas não vinculadas como publicidade para o atendimento de necessidades básicas do cidadão (deficientes, idosos, criança e adolescente), sob pena de improbidade administrativa ou crime de responsabilidade do Presidente da República (aliás, inclusive em casos de acordos stand-by com o FMI de forma irracional)".

Continua ele a dizer que "nas verbas rubricadas, portanto, como educação e saúde, o Executivo deve cumprir a Constituição e nas verbas não rubricadas não pode alegar a "reserva do possível" quando presente "o mínimo necessário para a existência condigna" (teoria de Portugal, lastreada no princípio também da Constituição brasileira da dignidade da pessoa humana – art. 1º, III, da CF/88)".

E o que se espera é que o Poder Judiciário deste Estado, ao analisar a presente, adote o mesmo desprendimento dos seus pares paulista e sul-rio-grandense, nos casos já citados, dispensando às normas constitucionais e do ECA o prestígio que elas realmente merecem.

Neste aspecto, considerando que em quase todas as decisões exaradas por V. Exa. costuma ser oficiada a Secretaria de Segurança Pública e Cidadania e Justiça, entre outros órgãos, noticiando a "falta de estabelecimento adequado", bem como apontando o "completo desaparelhamento da Comarca de Araguaína no que se refere a entidades de atendimento a crianças e adolescentes infratores, estando hoje os adolescentes infratores de Araguaína depositados na Cadeia Pública da Comarca de Ananás, o que constitui vergonhoso despautério, posto que o comum é o pequeno município socorrer-se do grande e aqui ocorre o inverso", percebe-se que V. Exa. também já não se conforma com a situação que esta Comarca enfrenta, razão pela qual aguardamos uma decisão enérgica da justiça tocantinense.

Entretanto, bem o sabemos da dificuldade em se construir um centro sócioeducativo nos moldes do criado em Palmas, afinal, além de a própria construção demandar tempo e verba pública, é necessária a abertura de concurso público para provimento de servidores preparados para atuar com jovens infratores, além de uma gama de serviços públicos que devem suprir as necessidades destes internos, tudo de forma a garantir-lhes o direitos preconizados no art. 124 do ECA. É neste sentido que deve-se oportunizar o prazo de 12 meses para a construção, provimento de cargos, entre outras demandas, enfim, para o integral funcionamento deste Centro. Vale ressaltar que o TAC firmado entre o "Parquet" e o Governo do Estado já exigia verba para a construção de um centro para cumprimento de medida sócioeducativa de semiliberdade, ou seja, o réu já deveria estar preparado, financeiramente, para custear esta obra. Porém, diante da ineficácia de se construir um centro apenas com a finalidade acima descrita, é que estamos ajuizando a presente demanda.

Sabemos que em tese, por já haver um título executivo vencido contra o réu (TAC – fls. 33/34)), obrigando-lhe a construir um centro sócioeducativo para cumprimento de medida de semiliberdade, não haveria interesse de agir quanto a este pedido. Entretanto, diante do princípio da proporcionalidade, da razoabilidade e de princípios econômicos, deve-se construir apenas um centro, o qual deverá atender aos internos que cumprem internação e os infratores em regime de semiliberdade.


2) DO DIREITO.

A rigor, nem seria necessário desenvolver este tópico, pois pensamos que a leitura dos artigos precedentes já seria suficiente para divisar a violação da ordem jurídica brasileira perpetrada pelo Réu.

Todavia, em respeito ao art. 282, inciso III, do Código de Processo Civil, sistematizamos, abaixo, as normas violadas.

2.1. Normas constitucionais desobedecidas.

2.1.1. Legalidade.

A destinação de um prédio público, construído com a finalidade contratual específica de abrigar presos adultos, para internar adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa, representa inequívoca afronta ao princípio da legalidade (CR, art. 37, caput), ao qual a Administração deve estar adstrita.

Alexandre de Moraes, atualmente ocupando cargo de conselheiro do CNJ, aliás, adverte, em sua popular obra Direito Constitucional:

"O administrador público somente poderá fazer o que estiver expressamente autorizado por lei e nas demais espécies normativas, inexistindo, pois, incidência de sua vontade subjetiva, pois na administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza (...). Esse princípio coaduna-se com a própria função administrativa, de executor do direito, que atua sem finalidade própria, mas sim em respeito à finalidade imposta pela lei, e com a necessidade de preservar-se a ordem jurídica".

2.1.2. Dignidade da pessoa humana e direito a não ser vítima de tortura ou tratamento desumano ou degradante.

Ao promover a inserção de adolescentes em locais tão inapropriados quanto o mostrado pelas fotos, bem como diante de tantas marcas de violência nos corpos dos infratores, privá-los do contato familiar, e mantê-los nas condições de detenção já expostas, o Réu contraria o próprio fundamento da República brasileira: o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CR, art. 1º, III).

As fotografias juntadas aos autos não deixam dúvidas de que foi o Estado-réu o algoz desses jovens. Não é demais lembrar que, nos termos do art. 5º, incisos III e XLIX, da Constituição de 1988, é dever do Estado assegurar a integridade física e moral daqueles que estão sob sua custódia. In verbis:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

(...)

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

2.1.3. Reserva legal em matéria penal.

Os adolescentes que estão em Ananás praticaram ato infracional, e por isso o Estado lhes impôs, ao cabo de um processo judicial, a medida sócio-educativa de internação, inteiramente regulada pelos artigos 121 e ss. do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90).

Como é sabido, a internação possui regime jurídico completamente distinto da pena de reclusão, regulada pelo art. 34 do Código Penal e pela Lei de Execuções Penais (Lei Federal n.º. 7.210/84).

Ora, se está em vigor, no Estado do Tocantins, a regra de que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (CR, art. 5º, XXXIX), não está o Réu, a seu bel prazer, autorizado a mudar as regras do jogo e impor a seus cidadãos pena mais gravosa do que aquela definida em lei.

Não obstante, foi exatamente isso que fizeram: colocaram jovens que deveriam cumprir medida sócio-educativa em uma instituição adequada, onde lhes é imposto regime prisional muito semelhante ao aplicado aos condenados à pena de reclusão.

2.1.4. Direito à proteção especial.

Tais violações se mostram ainda mais graves diante do fato de que foram cometidas contra adolescentes, jovens em condição de especial proteção, nos termos do art. 227 da Constituição brasileira, adiante aduzido:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

(...)

§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

(...)

V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e RESPEITO À CONDIÇÃO PECULIAR DE PESSOA EM DESENVOLVIMENTO, QUANDO DA APLICAÇÃO DE QUALQUER MEDIDA PRIVATIVA DA LIBERDADE (...).

Nenhum desses direitos está sendo satisfatoriamente garantido pelo Réu. A inexistência de medidas sócio-educativas, a quase insuperável distância que separa os internos de Ananás de seus pais, o regime prisional imposto e todas as outras ilegalidades relatadas nesta ação evidenciam o total desrespeito à norma contida no art. 227 da Constituição da República.

Fossem esses adolescentes filhos da elite nacional, talvez tivessem tratamento mais compatível com a dignidade humana. Mas não são. Talvez por esse motivo, o Réu pense que está autorizado a ignorar explicitamente o texto constitucional, e agir tão-somente de acordo com as suas próprias conveniências.

2.2. Normas do Estatuto da Criança e do Adolescente violadas.

A permanência dos adolescentes na cadeia pública de Ananás (ou de qualquer cidade) contraria as seguintes normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n.º 8.069/90):

2.2.1. Cumprimento de medida de internação em estabelecimento prisional.

O art. 123 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que "a internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes". Em total consonância com essa norma, o art. 185 da mesma lei ordena que "a internação, decretada ou mantida pela autoridade judiciária, não poderá ser cumprida em estabelecimento prisional".

Seja em razão da arquitetura do prédio (construído, convém repetir, para abrigar presos em regime prisional fechado), seja pelo tratamento dispensado aos jovens internados, não há a menor dúvida de que regime existente naquela penitenciária é prisional.

Portanto, obrigar esses jovens a cumprirem pena privativa de liberdade, em regime fechado, importaria em negar vigência aos artigos 123 e 185 do Estatuto da Criança e do Adolescente e ao próprio artigo 228 da Constituição brasileira ("São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial").

Ademais, o E. Supremo Tribunal Federal, nos autos do Habeas Corpus n.º 81.519/MG, declarou que a internação de adolescentes em local diverso daquele a que se refere o art. 123 do Estatuto da Criança e do Adolescente somente poderá ser admitida se esse recolhimento for efetivado em instalações apropriadas, o que obviamente não é o caso.

2.2.2. Direito à convivência familiar.

O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece, em seu art. 124:

Art. 124. São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes:

(...)

VI - permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável (...).

Na mesma direção é a norma do art. 94 do Estatuto:

Art. 94. As entidades que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras:

(...)

V - diligenciar no sentido do restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares (...).

Como é do conhecimento de Vossa Excelência, a maioria absoluta dos pais desses jovens é muito pobre. Para exercer o direito de visita que lhes é assegurado por lei, deverão viajar, NO MÍNIMO, durante DUAS HORAS. Quando chegam na cadeia, só estão autorizados a permanecer algumas horas em companhia de seus filhos. Depois, deverão retornar às suas cidades de origem.

Indagamos, mais uma vez, se o tratamento dispensado pelo Réu aos adolescentes e às suas famílias é compatível com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

2.3. Outras normas do ECA violadas.

a) Contrariando o disposto no art. 125 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a integridade física e mental dos internos aprisionados em Ananás não está sendo assegurada pelos Réus;

b) Contrariando o disposto no art. 124, inciso XV, os adolescentes foram despojados de suas roupas e acessórios pessoais;

c) Os arts. 94, inciso VII, e 124, inciso IX, obrigam a entidade que desenvolve programas de internação a oferecer os objetos necessários à higiene pessoal; segundo os adolescentes entrevistados, porém, a obrigação não está sendo cumprida pela administração da cadeia, a qual confessa às fls. ;

d) O inciso VIII do art. 94 obriga a entidade que desenvolve programas de internação a oferecer alimentação suficiente e adequada à faixa etária dos adolescentes atendidos, o que também não está ocorrendo;

e) o inciso seguinte do mesmo artigo obriga a entidade que desenvolve programas de internação a oferecer cuidados médicos, psicológicos, odontológicos e farmacêuticos aos internos, o que também, nem de longe, está sendo cumprido. Como já foi relatado, não há nem ao menos um médico, psicólogo ou odontólogo, na cadeia para atender aos internos;

f) o inciso IX do mesmo artigo e também os arts. 123, parágrafo único, e 124, inciso XI, exigem que a entidade que desenvolva programas de internação propicie escolarização e profissionalização aos internos. Os adolescentes que lá estão presos nunca receberam a visita de um professor, ou seja, nenhum tipo de escolarização ou profissionalização lhes é destinado;

h) O inciso seguinte do mesmo artigo, e também o art. 124, inciso XII, obrigam a entidade que desenvolve programas de internação a propiciar atividades culturais, esportivas e de lazer aos internos. Como já relatado, os jovens permanecem poucas horas diárias fora das celas; durante esse período não desenvolvem nenhum tipo de atividade cultural, esportiva ou de lazer;

i) O inciso XVII obriga a entidade que desenvolve programas de internação a "manter programas destinados ao apoio e acompanhamento de egressos". Não temos notícia de nenhum programa desse tipo desenvolvido na cadeia de Ananás;

j) O art. 124, inciso XIII, assegura aos adolescentes internos acesso aos meios de comunicação social. Como já mencionado, não foram avistados livros, jornais, revistas, rádios ou televisores no local.

2.4. Tratados internacionais desobedecidos.

As ações executadas pelo Réu representam não apenas o desrespeito à ordem jurídica nacional, mas também aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Convém lembrar que esses tratados obrigam o Estado brasileiro perante os demais Estados e perante os organismos internacionais. O descumprimento das normas acordadas pode acarretar a imposição de sanções econômicas e políticas ao nosso país, no âmbito do direito internacional.

2.5. Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos.

No âmbito do sistema de proteção vinculado à Organização das Nações Unidas (o chamado de "sistema global de proteção aos direitos humanos") houve o descumprimento, pelo Réu, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, da Convenção contra a Tortura, da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e das Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados da Liberdade.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado pela Resolução nº 2.200-A da Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, e ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, estatui:

Art. 9º. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém poderá ser privado de sua liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.

Art. 10.1. Toda pessoa privada de liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana.

(...)

O regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e reabilitação moral dos prisioneiros. Os delinqüentes juvenis deverão ser separados dos adultos e receber tratamento condizente com a sua idade e condição jurídica.

Esses direitos básicos - de ser tratado com dignidade e de acordo com as leis previamente estabelecidas – estão sendo desobedecidos na Cadeia de Ananás, na medida em que os jovens lá aprisionados permanecem trancados, com pouca comida, e sem os produtos necessários à manutenção de um ambiente salubre.

Vale destacar ainda que a imposição de regime prisional fechado a jovens que foram condenados a cumprir medida sócioeducativa viola o devido processo legal e o paradigma de tratamento diferenciado aos jovens delinqüentes, previsto no artigo 10.3 acima transcrito.

Descumpre, do mesmo modo, o art. 15 (1) do Pacto:

Art. 15. 1. Ninguém poderá ser condenado por ato ou omissões que não constituam delito de acordo com o direito nacional ou internacional, no momento em que foram cometidos. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito.

Não há como deixar de reconhecer a inclusão em regime prisional de adultos configura execução de pena mais gravosa do que a estipulada em sentença, configurando, desta forma, violação de obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro.

O Réu também deixou de cumprir o disposto na Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Resolução nº 39/46, da Assembléia Geral das Nações Unidas, e ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989. Com efeito, a Convenção estabelece:

Art. 1º. Para fins da presente convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público, ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.

(...)

Art. 11. Cada Estado-parte manterá sistematicamente sob exame as normas, instruções, métodos e práticas de interrogatório, bem como as disposições sobre a custódia e o tratamento de pessoas submetidas, em qualquer território sob sua jurisdição, a qualquer forma de prisão, detenção ou reclusão, com vistas a evitar qualquer caso de tortura.

(...)

Art. 14.1. Cada Estado-parte se comprometerá a proibir, em qualquer território sob sua jurisdição, outros atos que constituam tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes que não constituam tortura como definida no artigo 1º.

A preocupação explícita da Convenção com a tortura infligida por agentes do Estado em sistemas prisionais não ocorre por acaso, ainda mais se considerarmos a realidade brasileira. Como é sabido, a prática da tortura - herança nefasta legada à democracia pelos regimes autoritários que governaram este país - ainda persiste nas instituições policiais e prisionais, não obstante as normas de direito interno e internacional editados nos últimos anos.

Não há a menor dúvida quanto ao fato de existirem marcas de violência nos corpos destes adolescentes, os quais estão sob a responsabilidade do Réu.

No mais, as condições em que se encontram os jovens naquele presídio configuram de per se a imposição de tratamento desumano e degradante.

A conduta da Administração também contraria normas fixadas na Convenção dos Direitos da Criança, ratificada pelo Estado brasileiro em 20 de setembro de 1990, e, portanto, incorporada ao ordenamento jurídico interno.

Com efeito, o tratado estabelece que:

Art. 37. "Os Estados-Partes assegurarão que:

(...)

b) Nenhuma criança seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária. A DETENÇÃO, A RECLUSÃO OU A PRISÃO DE UMA CRIANÇA SERÁ EFETUADA EM CONFORMIDADE COM A LEI e apenas como último recurso, e durante o mais breve período de tempo que for apropriado;

c) TODA CRIANÇA PRIVADA DE LIBERDADE SEJA TRATADA COM HUMANIDADE E O RESPEITO QUE MERECE A DIGNIDADE INERENTE À PESSOA HUMANA, E LEVANDO-SE EM CONSIDERAÇÃO AS NECESSIDADES DE UMA PESSOA DE SUA IDADE.

Em especial, toda criança privada de sua liberdade ficará separada de adultos (...).

(...)

Art. 40.1 "Os Estados-partes reconhecem o direito de toda criança, de quem se alegue ter infringido as leis penais ou a quem se acuse ou declare culpada de ter infringido as leis penais, de SER TRATADA DE MODO A PROMOVER E ESTIMULAR SEU SENTIDO DE DIGNIDADE E DE VALOR, E A FORTALECER O RESPEITO DA CRIANÇA PELOS DIREITOS HUMANOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS DE TERCEIROS, LEVANDO EM CONSIDERAÇÃO A IDADE DA CRIANÇA E A IMPORTÂNCIA DE SE ESTIMULAR SUA REINTEGRAÇÃO E SEU DESEMPENHO CONSTRUTIVO NA SOCIEDADE".

Por fim, a conduta do Réu também contraria as "Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados da Liberdade", fixadas no 8º Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente. No que se refere ao Ambiente Físico do Alojamento, lemos as seguintes especificações:

31. Os jovens privados de liberdade terão direito a contar com LOCAIS E SERVIÇOS QUE SATISFAÇAM A TODAS AS EXIGÊNCIAS DA HIGIENE E DIGNIDADE HUMANA.

32. O DESENHO DOS CENTROS DE DETENÇÃO PARA JOVENS E O AMBIENTE FÍSICO DEVERÃO CORRESPONDER A SUA FINALIDADE, OU SEJA, A REABILITAÇÃO DOS JOVENS INTERNADOS, em tratamento, levando devidamente em conta a sua necessidade de intimidade, de estímulos sensoriais, de possibilidade de associação com seus companheiros e de PARTICIPAÇÃO EM ATIVIDADES ESPORTIVAS, EXERCÍCIOS FÍSICOS E ATIVIDADES DE ENTRETENIMENTO. (...)

33. Os dormitórios deverão ser, normalmente, para pequenos grupos ou individuais, tendo presente os costumes locais. O ISOLAMENTO EM CELAS INDIVIDUAIS DURANTE A NOITE, SÓ PODERÁ SER IMPOSTO EM CASOS EXCEPCIONAIS E UNICAMENTE PELO MENOR ESPAÇO DE TEMPO POSSÍVEL. Durante a noite, todas as zonas destinadas a dormitórios, inclusive as habitações individuais e os dormitórios coletivos, deverão ter uma vigilância regular e discreta para assegurar a proteção de cada jovem. Cada jovem terá, segundo os costumes locais ou nacionais, ROUPA DE CAMA INDIVIDUAL SUFICIENTE, QUE DEVERÁ SER ENTREGUE LIMPA, MANTIDA EM BOM ESTADO E TROCADA REGULARMENTE POR MOTIVO DE ASSEIO.

Acreditamos já estar suficiente demonstrado que a conduta ilícita do Réu violou todas as normas acima citadas.

2.6. Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.

No âmbito de proteção do chamado "sistema regional" ou "sistema interamericano" de direitos humanos, houve a violação das seguintes normas, constantes da Convenção Americana de Direitos Humanos:

Art. 5º. Direito à integridade pessoal.

§ 1º. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

(...)

§ 2º. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito à dignidade inerente ao ser humano.

(...)

Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal

§ 1º. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.

§ 2º. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados Membros ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.

§ 3º. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários (Adotada na Conferência sobre Direitos Humanos realizada em San José de Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992).

(...)

Artigo 9º. Princípio da legalidade e da retroatividade.

Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinqüente deverá dela beneficiar-se.

No que se refere à proteção especial que deve ser dispensada à infância e adolescência, a Convenção dispõe:

Art. 19. Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado.

Havendo a necessidade de impor a privação da liberdade a um menor de 18 anos, o art. 19 da Convenção impõe ao Estado o dever adicional de respeitar a sua condição especial de pessoa em formação.

Foi o que decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos:

"(...) Quando o Estado se encontra na presença de crianças privadas de liberdade [...] tem, além das obrigações assinaladas para toda pessoa, uma obrigação adicional estabelecida no artigo 19 da Convenção Americana. Por um lado, deve assumir sua posição especial de garantidor com maior cuidado e responsabilidade, e deve tomar medidas especiais orientadas pelo princípio do interesse superior da criança."

Da mesma forma entendeu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos:

"Na opinião da Comissão, o dever do Estado de proteger a integridade pessoal de toda pessoa privada de liberdade inclui a obrigação positiva de tomar todas as medidas preventivas para evitar os ataques ou atentados contra uma pessoa presa por parte de agentes do Estado ou por particulares. Tais obrigações adquirem maior severidade quando se trata de menores de idade, pois o Estado deve não somente buscar e proteger sua integridade pessoal, mas também o desenvolvimento integral de sua personalidade e sua reintegração à sociedade."

Acreditamos que os fatos relatados nesta inicial são suficientes para demonstrar que nenhuma dessas recomendações e normas internacionais foram observadas pelo Réu.


3) DA COMPETÊNCIA E DA ADMISSIBILIDADE DO PRONUNCIAMENTO JUDICIAL.

Dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para:

I -...................................

IV - conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209

Art. 209. As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou omissão, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores.

Josiane Rose Petry Reronese, em sua obra a Tutela Jurisdicional dos Interesses Individuais, Difusos e Coletivos da Criança e do Adolescente, leciona:

"O Estatuto resguardou à Vara Especializada da Infância e da Juventude a competência absoluta para processar e julgar as demandas identificadas no art. 208. Assim, mesmo que Estados e Municípios figurem no pólo passivo ou ativo das ações civis públicas, será aquele o competente, para o qual deverão ser encaminhadas as demandas de responsabilidade por alguma ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, (...)". (pág. 132).

Como se vê, o Estatuto excluiu apenas a competência da Justiça Federal e a competência originária do tribunais superiores.

Por outro lado, hoje, não há mais que se falar em intromissão do Poder Judiciário no poder discricionário do Administrador, em especial quando se trata de programa de promoção e proteção dos direitos de crianças e adolescentes, pois estes direitos estão protegidos pela garantia constitucional da absoluta prioridade.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), apreciando Recurso Especial (RESP 493811/SP) do Estado de São Paulo, assim se pronunciou sobre a discricionariedade do administrador:

"ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO: NOVA VISÃO. 1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador." (DJ DATA:15/03/2004 PG:00236).

Não resta dúvida, pois, da possibilidade de pronunciamento do Poder Judiciário a respeito da questão. Aliás, imperativo se faz tal manifestação, ante a inércia do Estado em, por si só, criar os regimes de internação e de semiliberdade para adolescentes infratores.


4) DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA.

O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe:

"Art. 212 - Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por esta Lei, são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes."

"Art. 213 - Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela especifica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citando o réu.

§ 2º - O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito."

"Art. 224 Aplicam-se subsidiariamente no que couber, as disposições da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985."

Os dispositivos esclarecem que, para a proteção de direitos de crianças e adolescentes, são admitidos quaisquer tipos de ação. Contudo, tem sido a Ação Civil Pública escolhida como o instrumento mais adequado, quando de pretensão aforada pelo Ministério Público.

Igualmente aplicável à presente ação por força da já citada norma de extensão contida no art. 21 da Lei Federal n.º 7.347/85.

In verbis: "Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor".

O artigo 5º, inciso XXV, da Constituição da República estabelece que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

"Uma leitura mais moderna deste inciso – observa Luiz Guilherme Marinoni – faz surgir a idéia de que a norma constitucional garante não só o direito de ação, mas a possibilidade de um acesso efetivo à justiça, e, assim, um DIREITO À TUTELA JURISDICIONAL ADEQUADA, EFETIVA E TEMPESTIVA".

"Não teria cabimento entender, com efeito, que a Constituição da República garante ao cidadão que pode afirmar uma lesão ou uma ameaça a direito apenas e tão-somente uma resposta, independentemente de ser ela efetiva e tempestiva.

Ora, se o direito de acesso à justiça é um direito fundamental, porque garantidor de todos os demais, não há como se imaginar que a Constituição da República proclama apenas que todos têm o direito a uma mera resposta do juiz. O direito a uma mera resposta do juiz não é suficiente para garantir os demais direitos, e, portanto, não pode ser pensado como uma garantia fundamental de justiça. (...) Como diz Camoglio, o problema crucial do acesso à justiça está, em última análise, na efetividade da tutela jurisdicional. Não basta reconhecer, em abstrato, a libertà di agire e garantir a todos, formalmente, a oportunidade de exercer a ação.

Limitar-se a tal configuração, no catálogo tradicional das liberdades civis, significa desconhecer o sentido profundamente inovador dos direitos sociais de liberdade, em seus inevitáveis reflexos sobre a administração da justiça. Cabe, portanto – prossegue o professor da Universidade de Pavia -, assegurar a qualquer indivíduo, independentemente das suas condições econômicas e sociais, a possibilidade, séria e real, de obter a tutela jurisdicional adequada".

Esperamos ter demonstrado a Vossa Excelência que os direitos fundamentais indisponíveis de todos os adolescentes custodiados na Cadeia Pública de Ananás estão sendo enfaticamente negados pelo Réu. Que há a prática comprovada de tortura naquele estabelecimento. Que o Estado impôs aos adolescentes que lá estão internados regime prisional mais severo do que aquele estabelecido em lei. Que os jovens estão submetidos a tratamento indigno. E, finalmente, que o Estado tem o dever e a responsabilidade de preservar a integridade física e moral de todos eles.

A presente ação busca tutelar: a) o interesse difuso, comum a todos os cidadãos que habitam esta República, de exigir de seus governantes o respeito à ordem jurídica nacional; b) o direito coletivo dos adolescentes internados na Cadeia Pública de Ananás de terem respeitados todos os direitos constitucionais e legais de que são titulares. O instrumento adequado para a proteção desses direitos metaindividuais é, sem nenhuma dúvida, a ação civil pública, regulada pelas Leis n.º 7.347/8571, 8.069/90 e 8.078/90. O Autor desta ação possue legitimidade plena para a causa, nos termos do que dispõem o art. 210 do Estatuto da Criança e do Adolescente:

Artigo 210. Para as ações cíveis fundadas em interesses coletivos ou difusos, consideram-se legitimados concorrentemente:

I - o MINISTÉRIO PÚBLICO;

II - a União, os estados, os municípios, o Distrito Federal e os territórios;

Art. 127 da CR: "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".

Art. 1º da Lei 7.347/85: "Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:

I – ao meio ambiente;

II – ao consumidor;

III – aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo (...)".

O interesse de agir do Autor é manifesto, pois o Réu se recusa a cumprir espontaneamente a vontade da lei, e, ipso facto, está desrespeitando os direitos fundamentais de diversos adolescentes que estão sob sua custódia.

Este juízo é absolutamente competente para julgar a causa, como bastante elucidado acima.

O art. 213 do Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza, expressamente, a concessão de tutela inibitória e de remoção do ilícito para assegurar a proteção dos direitos coletivos e individuais dos internos:

Tutela inibitória é aquela cujo fim é impedir a prática, a continuação ou a repetição de um ato ilícito, ainda que esse ato não seja seguido de um evento danoso concreto, conforme ensina Luiz Guilherme Marinoni, em sua obra "A Antecipação da Tutela", São Paulo, Malheiros, 1999, pp. 55 e ss. Observa este autor que "a tutela inibitória, na hipótese em que o ilícito já foi praticado, preocupa-se com o perigo da sua continuação ou repetição. Neste caso, como é óbvio, não importa que o ilícito que já foi praticado, mas apenas a probabilidade da sua continuação ou repetição. A prova do perigo é a prova da probabilidade da continuação ou da repetição do ilícito".

Também segundo Marinoni, "a tutela de remoção do ilícito visa a remover ou eliminar o próprio ilícito, vale dizer, a causa do dano; ela não visa a ressarcir o prejudicado pelo dano. No caso de tutela de remoção do ilícito, é suficiente a transgressão de um comando jurídico, pouco importando se o interesse privado tutelado pela norma foi efetivamente lesado ou ocorreu um dano. Como explica Scognamiglio, no caso de tutela reintegratória, bastando a transgressão de um comando jurídico, prescinde-se da circunstância de que tenha ocorrido um dano, enquanto na hipótese de tutela ressarcitória verifica-se a lesão de um bem do sujeito, qual pode ser determinada em concreto, considerando-se o próprio sujeito ou seu patrimônio" (A Antecipação da Tutela, op. cit., p. 78).

Art. 213. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a TUTELA ESPECÍFICA DA OBRIGAÇÃO ou determinará PROVIDÊNCIAS QUE ASSEGUREM O RESULTADO PRÁTICO EQUIVALENTE AO DO ADIMPLEMENTO.

Enfim, não há óbice algum para o deferimento dos pedidos que serão adiante formulados.


5) DA IMPERATIVA NECESSIDADE DA CONCESSAO DA TUTELA ANTECIPATÓRIA.

O parágrafo 1º do mesmo artigo 213 do Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza a concessão de tutela antecipatória nos seguintes termos:

Art. 213. (...)

§ 1º SENDO RELEVANTE O FUNDAMENTO DA DEMANDA e havendo JUSTIFICADO RECEIO DE INEFICÁCIA DO PROVIMENTO FINAL, É LÍCITO AO JUIZ CONCEDER A TUTELA LIMINARMENTE ou após justificação prévia, citando o réu.

§ 2º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 3º A multa só será exigível do réu após o trânsito em julgado da sentença favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver configurado o descumprimento.

Como se vê, há dois requisitos legais para a concessão da tutela antecipatória do provimento final: a) que o fundamento da demanda seja relevante; b) que haja "fundado receio de ineficácia do provimento final".

Pensam os Autores desta ação que a relevância desta demanda já está suficiente demonstrada. Ela busca tutelar a liberdade, a integridade física e moral e a dignidade de diversos adolescentes pobres, ilegalmente aprisionados em uma cadeia pública destinada a presos adultos, situada a mais de 160 km de distância da Comarca de Araguaína/TO.

O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva corresponde, no caso dos direitos não-patrimoniais, "ao direito a uma tutela capaz de impedir a violação do direito. A ação inibitória, portanto, é absolutamente indispensável em um ordenamento que se funda na ‘dignidade da pessoa humana’ e que se empenha em realmente garantir – e não apenas em proclamar – a inviolabilidade dos direitos da personalidade".

Para os jovens aprisionados que aguardam a corajosa manifestação de Vossa Excelência, apenas a concessão do provimento jurisdicional antecipado servirá para tutelar, de modo eficaz, os direitos fundamentais não-patrimoniais de que são titulares.

A concessão de prazo de 12 meses para a entrega do centro sócioeducativo pelo réu, não deve ser interpretado como se fosse desnecessária a tutela antecipada. Pelo contrário. A antecipação de tutela servirá como fator determinante para o início das obras, acaso não queira o Estado pagar multa diária pelo descumprimento da ordem judicial. Sabe-se, por óbvio, que uma construção de obra deste porte, bem como a contratação de servidores, por meio de concurso público, demanda tempo. Justamente por este motivo é que a antecipação de tutela se mostra inafastável, demonstrando ao bom administrador público que deve dar início, o quanto antes, aos trabalhos, para cumpri-los dentro do prazo de 12 meses.


6) DA LEGITIMIDADE ATIVA.

A legitimação do Ministério Público para a propositura da presente ação tem espeque nos arts. 127 e 129, III, ambos da Carta Constitucional, no art. 25, IV, "a", da Lei no 8.625/93 e nos arts. 201, V, e 210, V, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Diz o Estatuto:

Art. 201. Compete ao Ministério Público:

I -...........................

V – Promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência, (...);

Em face do exposto, requer:

A) Liminarmente, nos termos do § 1º do artigo 213 do ECA e art. 12, caput; da Lei n° 7.347/85 – Lei da Ação Civil Pública, após observado o disposto no artigo 2° da Lei n° 8.437/92, seja determinado que o requerido, em prazo não superior a doze meses, contados da intimação da decisão, implante, nesta Comarca, e em unidade especializada (a ser construída), programa de internação e regime de semiliberdade para adolescentes infratores, apto a propiciar o atendimento do disposto nos artigos 94, 120, § 2º, e 124, todos do ECA, bem como da respectiva demanda.

Com efeito, presentes estão os requisitos que autorizam a concessão da medida, quais sejam o fumus boni juris e o periculum in mora.

Assim é que, quanto ao fumus boni juris, vale mencionar a legitimidade passiva do réu, já que é seu o dever de implementar a providência reclamada, dos pressupostos processuais e a probabilidade de êxito da pretensão quando do provimento final, pois que, tratando-se de proteção a direitos fundamentais de adolescente privado de sua liberdade, a legislação - CF e ECA - não deixou ao Estado outra opção senão adotar a medida necessária. E mais, se a atuação em favor daquele adolescente deve ocorrer com prioridade, ao réu resta apenas agir, ou seja, disponibilizar os meios eficazes a atender aos reclames legais.

E, quanto ao periculum in mora, é certo que a postergação da determinação da atuação estatal para o provimento final significará que os direitos do adolescente sujeito ao cumprimento daquelas medidas estarão, por mais tempo, sendo sacrificados, uma vez que durante a tramitação do processo o réu não se sentirá obrigado a dar início ao cumprimento do seu dever. Soma-se a isso o fato de que o Estado poderá se valer, no exercício de sua defesa, de todos os meios possíveis de defesa, e ainda com o olhar voltado para o benefício que lhe traria o emperramento do feito, tornando inimaginável o momento do provimento final, o que descortina ainda mais o perigo de eventual negativa do deferimento da medida;

B) A fixação de multa diária no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais), a ser paga pelo requerido em caso de atraso no cumprimento da decisão, conforme autoriza o § 2º do citado art. 213 (ver ainda art. 11 da Lei 7.347/85), a ser revertida em benefício do fundo gerido pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente deste Município, conforme art. 214 do ECA.

C) A citação do requerido, na pessoa do Procurador-Geral deste Estado, identificado no preâmbulo e que pode ser encontrado no endereço ali descrito, para, querendo, apresentar contestação;

D) A produção de todas as provas em direito admitidas;

E) Seja, a final, condenado o réu na obrigação de fazer, consistente em implantar, nesta Comarca, e em unidade especializada (a ser construída), em prazo não superior a doze meses, contados da intimação da decisão judicial, programa de internação e regime de semiliberdade para adolescente infrator, apto a propiciar o atendimento do disposto nos artigos 94, 120, § 2°, e 124, todos do ECA, bem como da respectiva demanda, e, ainda, de não fazer, consistente em se abster de manter adolescente infrator apreendido, após o transcurso daquele período, em local que não o aqui mencionado.

F) A ISENÇÃO do pagamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nos termos do que dispõe o art. 219 do Estatuto da Criança e do Adolescente;

G) A INTIMAÇÃO DA UNIÃO FEDERAL para, se quiser, integrar a presente lide, na posição de litisconsorte ativa (art. 5º, § 2º, da Lei 7.347/95) ou assistente do Autor (art. 5º, parágrafo único, da Lei 9.469/97), tendo em vista seu manifesto interesse no acatamento da medida cautelar internacional, expedida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 21 de dezembro de 2004; e ainda seu interesse no cumprimento do Convênio MJ n.º 25 e dos atos normativos expedidos pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, órgão colegiado federal vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos;

H) A INTIMAÇÃO PESSOAL dos representantes do MINISTÉRIO PÚBLICO, nos termos do que dispõe o art. 236, § 2º, do Código de Processo Civil;

I) A CONFIRMAÇÃO, ao final, dos provimentos jurisdicionais requeridos nos itens acima elencados.

Dá-se à causa, considerando sua natureza, o valor de R$ 1.000,00 (mil reais).

Pede deferimento.

Araguaína, 25 de janeiro de 2.007.

Sidney Fiori Junior

Promotor de Justiça



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIORI JUNIOR, Sidney. Ação civil pública para implantação de unidade especializada de internação de adolescente infrator. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1864, 8 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16863. Acesso em: 24 abr. 2024.