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O poder de polícia da autoridade marítima brasileira.

Fundamento, características e limites

O poder de polícia da autoridade marítima brasileira. Fundamento, características e limites

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O artigo verifica a existência de um poder de polícia de segurança da autoridade marítima e os possíveis óbices ao seu exercício.

RESUMO. Este trabalho tem por objeto identificar os fundamentos, as características e os limites do poder de polícia da autoridade marítima brasileira. Compara a teoria da polícia administrativa com a teoria de segurança coletiva de Kelsen. Confronta a tese de supremacia do interesse público sobre o particular como fundamento do poder de polícia com a tese de desconstrução do princípio da supremacia do interesse público. Constata que o fundamento do poder de polícia está no bloco de legalidade. Verifica a existência de óbice ao exercício do poder de polícia administrativa da Autoridade Marítima. Conclui pela existência de um poder de polícia de segurança da autoridade marítima, que não conta com óbices para seu exercício.

Palavras-chave: Polícia administrativa. Polícia Marítima. Polícia do Tráfego Aquaviário.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. POLÍCIA E PODER DE POLÍCIA. 1.1 Polícia e Segurança Coletiva. 1.2 Polícia e irrelevância de suas classificações. 1.3 Poder de policia e a potestade pública. 1.4 Poder de polícia e o principio da legalidade. 1.5 Poder de polícia, atividade sub-legal, função administrativa. 2. PODER DE POLÍCIA DA AUTORIDADE MARÍTIMA. 2.1 Autoridade Marítima: conceituação. 2.2 Polícia administrativa do tráfego aquaviário. 2.3 Óbice ao exercício do poder de polícia do tráfego aquaviário. 2.4 Poder de polícia de segurança da Autoridade Marítima. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

Conforme ensina Cretella Júnior (1968, p. 16-31), o que se tem por objeto da atividade de polícia são as relações que asseguram o convívio dos indivíduos no Estado, bem como aquilo que ameaça ou perturba essa convivência. É do autor a definição de polícia como "conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades dos administrados, através de medidas impostas a essas atividades, a fim de assegurar a ordem pública". Ainda, segundo o autor citado, organização policial são pessoas e meios aplicados à finalidade de segurança coletiva. Mas é intuitivo que essa organização – talvez melhor fosse dizer esse sistema – é formada por certos órgãos com atribuições atinentes aos fins de ordem pública ou segurança coletiva, que lhes são específicas e com limites próprios, o que permite distingui-los e classificá-los.

A Lei Complementar nº 97/1999 estabeleceu atribuições subsidiárias das Forças Armadas e, quanto à Marinha, ao estabelecê-las, definiu o Comando da Marinha como "Autoridade Marítima", designando-lhe a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas. O que se pretende é examinar a extensão desse dispositivo. Assim, o tema delimitado deste trabalho é o poder de polícia da autoridade marítima brasileira, seus fundamentos, suas características e seus limites.

Um esclarecimento é necessário. A expressão "autoridade marítima" decorre de dispositivo legal, o art.17, caput, incisos e parágrafo único da Lei Complementar nº 97/1999, que permitem definir "autoridade marítima" como o Comandante da Marinha no exercício de atribuições subsidiárias da Força. De tais atribuições subsidiárias da Força Armada, necessariamente, resulta o poder de polícia para executá-las e oportunizam-se questionamentos quanto à sua natureza e quanto à forma dele ser exercitado. Assim, é pertinente formular a seguinte pergunta: o poder de polícia da autoridade marítima brasileira tem fundamento, características e limites específicos ou se trata do poder de polícia em geral, exercido por agentes da autoridade marítima?

A hipótese básica do presente trabalho é a de que o poder de polícia da autoridade marítima não tem natureza jurídica própria, tratando-se de meras competências para exercício de polícia administrativa especial e de polícia administrativa geral, nesta incluída a polícia de segurança, segundo a classificação de Cretella Júnior (1968, p.59-62). Essa hipótese, contudo, comporta as seguintes, secundárias:

a) a polícia administrativa exercida pela autoridade marítima não é uma atividade militar e, portanto, deve ter fundamento na lei que a estabeleceu; e

b) entretanto, a autoridade marítima, no exercício das tarefas que lhe estão atribuídas, tem âmbitos de atuação específicos, o que torna o seu poder de polícia, além de especial, característico, forçando à interpretação restritiva do comando legal que estabelece para a mesma autoridade uma atribuição genérica de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, o que se aplicaria à polícia de segurança, distinta, por fundamento e natureza, da atividade de polícia administrativa.

O objetivo geral é identificar o fundamento, as características e os limites do poder de polícia da autoridade marítima brasileira. Os objetivos específicos são definir "autoridade marítima", distinguir campos e setores de aplicação do poder de polícia da autoridade marítima e apontar fundamentos, limitações e óbices para o exercício de tal poder.

A Lei Complementar nº 97/1999 atribuiu à autoridade marítima a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual quando se fizer necessário, em razão de competências específicas. A Lei nº 9.537/1997, Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, dispõe em seu art. 3º que cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução de tal lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores, e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio.

Por seu turno, a Lei nº 2.419/1955, que instituiu a Patrulha Costeira, atribuiu à Marinha, entre outras, as tarefas de, em colaboração com outros órgãos, defender a fauna marítima, defender a flora aquática, fiscalizar a pesca no litoral brasileiro, auxiliar os serviços de repressão ao contrabando e ao comercio ilícito de tóxicos, o que se insere na moldura do art. 17, IV, da Lei Complementar nº 17/1999. O Decreto nº 5.129/2004 alterou a denominação da Patrulha Costeira para Patrulha Naval, regulando a abordagem de embarcações em atividades ilícitas nas águas jurisdicionais brasileiras com tiros de advertência e tiros diretos, sintetizando tarefas da Lei nº 2.419/1955 na genérica fórmula de implementação e fiscalização do cumprimento das leis e regulamentos nas águas nacionais. Outras leis atribuem competências à autoridade marítima e estas competências parecem adequar-se à fórmula genérica da Lei Complementar ou da Lei de Patrulha Costeira, que atribui à Marinha a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos no mar e águas interiores, como são exemplos a Lei nº 9.605/1998, que trata dos crimes ambientais, e a Lei nº 9.966/2000, que dispõe sobre a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional. Para aplicação de tais normas, ocorre certa imprecisão conceitual. Entretanto, nada das atribuições antes mencionadas se confunde com o exercício de atividade militar stricto sensu.

Há poucas obras dedicadas ao estudo aprofundado do tema. As leis mencionadas estabeleceram tarefas que eventualmente têm sido entendidas como atividades militares, quando, expressamente, a Lei Complementar 97/199 permite defini-las como atribuições subsidiárias da Marinha, configurando nítidas atividades de polícia administrativa ou de segurança.

Deste modo, podem ocorrer entendimentos conflitantes quanto à natureza jurídica da atribuição da Marinha. É, pois, adequado que se pesquise a natureza jurídica do poder de polícia exercido pela Força, apontando seus limites. O assunto tem repercussão na fiscalização do tráfego aquaviário, na formação de tripulações para embarcações mercantes, na prevenção da poluição por parte de embarcações, na fiscalização da pesca, assim como na repressão aos ilícitos praticados em nosso mar territorial, na Zona Econômica Exclusiva, no alto mar e nos rios que fazem fronteira com outros países. Daí, a utilidade da pesquisa ora conduzida.

O método utilizado para desenvolvimento do trabalho foi o dedutivo e exploratório. A técnica foi a de revisão bibliográfica doutrinária, jurisprudencial e legal, secundada por coleta de dados sobre a atividade estudada, junto à Capitania dos Portos do Rio Grande do Sul, sediada na cidade do Rio Grande, RS.

No primeiro capítulo, estuda-se a teoria da polícia administrativa e do poder de polícia, combinada com a teoria de segurança coletiva desenvolvida por Kelsen, examina-se as classificações usualmente dadas à atividade de polícia. Em seguida examina-se o fundamento, características e limites do poder de polícia, destacando as noções que veem na potestade pública o fundamento do poder de polícia para confrontá-la com a nova tendência que propõe a desconstrução do princípio da supremacia do interesse público, repelindo o pressuposto de que ele sempre deva prevalecer sobre quaisquer interesses privados, mesmo quando já haja regra constitucional específica dirimindo o conflito entre eles.

No segundo capítulo, então, passa-se ao estudo das fontes do poder de polícia administrativa da autoridade marítima, examinando a ilegalidade do Regulamento para o Tráfego Aquaviário que se pretende validar com fundamento em norma genérica da Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, segundo a qual cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução da Lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação, no mar aberto e hidrovias interiores, e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio, o que equivale ao argumento da potestade pública como fundamento do poder de polícia. A seguir, examina-se o poder de polícia de segurança atribuído à autoridade marítima com fundamento na Lei Complementar e na Lei de Patrulha Costeira, que lhe permite exercer uma atividade de segurança no mar e nas águas interiores, sem os óbices registrados para o exercício da polícia administrativa, que, contudo, revela-se competência concorrente da Autoridade Marítima e da Polícia Federal.


1 – POLÍCIA ADMINISTRATIVA

1.1 – Polícia e a segurança coletiva

É intuitivo que os homens, primordialmente, viveram isolados com interesses particulares, mas que, em seguida, precisaram agrupar-se, tentando nesses agrupamentos impor seus interesses e tendo frequentemente de ceder aos interesses alheios até que fosse logrado um equilíbrio social que permitisse a manutenção do grupo.

Nos agrupamentos humanos eclodem arbítrios e sobressaltos e isso gera um estado de guerra interna permanente, com insegurança das pessoas e de seus bens. Tal estado de coisas seria enfrentado inicialmente pela força particular de cada indivíduo e, em seguida, pela "força organizada do meio social". Em geral, "polícia é o termo genérico com que se designa a força organizada que protege a sociedade, livrando-a de toda vis inquietativa", na definição de Cretella Júnior (1968, p. 13-14). Quer dizer, polícia é o termo aplicado à centralização da força para garantir a ordem social.

Assim, se o Estado é uma ordem normativa que regula o mútuo comportamento dos indivíduos, é válido afirmar que polícia é o Estado e, num Estado de Direito, ato de polícia é o ato de fazer cumprir as leis, em prol da ordem pública, da segurança coletiva, da ordem social ou do interesse público. Todavia, as expressões "ordem pública", "segurança coletiva", "ordem social" e "interesse público" são ambíguas, cada uma delas tomada em substituição a outra, na pretensão de alterar o grau de interferência do Estado na vida das pessoas, mas, todas, em grau maior ou menor, admitindo a interferência do Estado na vida privada, sem conseguir livrar-se da concepção de que o Estado é uma ordem coercitiva, posta para controlar comportamentos prejudiciais à sociedade, admitindo-se o sacrifício de interesses minoritários em prol da coesão do grupo e da segurança comum.

A etimologia da expressão "polícia" estaria ligada à política, originada do grego, politeia, que indicava a constituição do Estado, a boa constituição, o bom ordenamento. Essa concepção teria se alterado e, na Idade Média, passou a significar a boa ordem da sociedade civil sob a autoridade do Estado. O conceito ampliou-se para abarcar toda atividade da Administração, com exclusão apenas da atividade financeira e da administração militar. Só a partir do final do século XVIII e início do XIX, encontra-se um conceito mais restrito de polícia. (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 15-16).

O campo de atuação da polícia era amplo, incluindo desde a religião até os empregados domésticos, os artesãos e os pobres, o que permitia dizer-se que "Na realidade, o objeto da atividade de polícia é, em geral, todo tipo de relações sobre as quais se funda convivência dos homens no Estado e toda a espécie de atos que ameaçam ou perturbam essa ordem." (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 16).

Quando a expressão polícia chegou à Alemanha, ela significava "bom estado da coisa comum" ("Guter Stand des Gemeinwessens"). Enfim, a polícia era entendida como um instrumento da autoridade, legitimadora, inclusive, do emprego da força:

No advento da época moderna, escreve OTTO MAYER, a polícia desempenha relevante papel, chegando até a caracterizar o Estado em todas as relações que assume para com o súdito: o exército e a justiça permanecem de lado. Tudo aquilo que fora deles pode fazer-se para fortalecer a ordem interna e consolidar a coisa comum pertence à polícia, a qual se mostra sempre infatigável na tarefa de preparar novos recursos e deixar-se guiar pela luz da economia política, ciência que acaba de desenvolver-se. Ademais, tudo o que a autoridade julga saudável pode agora a polícia realizar e, em caso de necessidade, mediante o emprego da força (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 17)

Há dificuldade em formular um conceito jurídico de polícia. Tratar-se-ia de palavra das mais genéricas e das mais ambíguas que existem. Nos dias atuais a palavra é empregada em pelo menos três acepções: como regras de polícia, como conjunto de atos de execução dos regulamentos ou como forças públicas incumbidas de promover a execução de leis e regulamentos.

No Direito francês, alemão, italiano, português e argentino, registram-se tentativas de conceituação que, essencialmente destacam como finalidade da polícia a manutenção da ordem, da segurança e da salubridade públicas. "A teoria dominante na doutrina continental européia entende por polícia uma seção qualificada da administração pública que tem por objeto a previsão ou o desvio das perturbações contra a ordem mediante a ameaça ou o emprego da coação." (CRETELLA JÚNIOR, 1968, P. 26).

Moreira Neto (2005, p. 395-396), mais recente, apresenta um conceito de "função administrativa de polícia, por meio da qual o Estado aplica restrições e condicionamentos legalmente impostos ao exercício das liberdades e direitos fundamentais, tendo em vista a assegurar uma convivência social harmônica e produtiva", mas cita conceitos propostos por Otto Mayer, Marcelo Caetano e Caio Tácito, que enfatizam como finalidade da atividade de polícia, a defesa da "boa ordem da coisa pública", a prevenção de "danos sociais" e o "interesse público".

Caio Tácito (2001, p. 18), lembra que o poder de polícia classicamente referia-se ao dever geral de não perturbar, o que se colocaria acima da liberdade individual e serviria para limitá-la. Citando Otto Mayer, esclarece o professor que:

Em seu conceito clássico o poder de polícia é simples processo de contenção de excessos do individualismo. Consiste, em suma, na ação da autoridade pública para fazer cumprir por todos os indivíduos o dever de não perturbar. Um dos mestres do direito administrativo alemão assim definia o papel da administração "O resultado de cada aplicação do poder de polícia não será mais outro: que este homem não perturbe. (CAIO TÁCITO, p. 18)

Na Doutrina brasileira, até a década de sessenta, predominantemente, conceituava-se polícia com destaque para a sua finalidade de manutenção da ordem pública. Os elementos integrantes da definição são o subjetivo, o objetivo e o teleológico, ao que correspondem, respectivamente, o Estado, as limitações à liberdade, e a segurança coletiva e individual. Com essa estruturação, Cretella Júnior propõe uma definição jurídica de polícia: "conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades dos administrados, através de medidas impostas a essas atividades, a fim de assegurar a ordem pública." (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 31) ou, mais recentemente, "conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades do cidadão mediante restrições legais impostas a essas atividades, quando abusivas, a fim de assegurar-se a ordem publica" (CRETELLA JÚNIOR, 1985, p. 125). Destaca-se aqui a mudança de posição do autor que passa a incluir no conceito o requisito de legalidade das restrições a serem impostas às atividades dos cidadãos, bem como o requisito de que as restrições se apliquem apenas às atividades abusivas, que, todavia, se resolve na legalidade, uma vez que abusivo é o que é contra direito. De qualquer, modo, em uma e em outra ocasião, o autor destaca a particular perspectiva em que se coloca ao elaborar o conceito: a de quem vê na polícia um conjunto de meios e de pessoas direcionados à finalidade de segurança coletiva.

Quando se emprega a expressão "segurança coletiva", cogita-se de medida autoritária, para obtenção de certa ordem social ou para repressão de alguma agressão externa. Isto, em parte, seria tarefa das forças de segurança pública e em parte seria tarefa das Forças Armadas. Mas, afinal, a segurança coletiva é a finalidade da ordem jurídica e, assim, é finalidade da atividade de polícia.

A finalidade de conservar a ordem e a paz públicas, inerente à polícia, se traduz em segurança coletiva. O Estado se apresenta como uma ordem normativa que regula o mútuo comportamento dos indivíduos. Trata-se de uma ordem coercitiva, oposta aos comportamentos prejudiciais à sociedade. Cogita-se de segurança dos estados na comunidade internacional e de segurança individual nos limites do próprio Estado. Estes níveis de segurança não são opostos, isto porque a segurança de um Estado é a segurança dos indivíduos que o compõem. Entretanto, a segurança individual é proporcionada pela lei nacional e a segurança internacional pela lei internacional. Mas, em ambos os casos, o resultado é a segurança coletiva, proporcionada pela ordem social. Pode-se supor que um indivíduo ou um Estado tente ele próprio estabelecer sua segurança, sem contar com a ordem social. Todavia, essa pretensão de segurança individual contra todos os outros é irrealizável. A segurança tem de ser coletiva. Por isso que "segurança coletiva" é um pleonasmo (KELSEN, 1957, p. 1-3, tradução nossa).

The assumption that man existed originally in a state is highly problematical. Men have probably always lived in society, and where there is society there is some kind of law – ubi societas ibi jus – although the law may be more or less effective. Transient periods of anarchy are possible and have actually existed in history. However, they are characterized by the fact that no security exists, and the attempts of single individuals to secure themselves against others are in vain. As we shall see, the same is true with respect to any attempt by an individual state to establish a non-collective security for itself. Hence, since security can be only collective, collective security is a pleonastic term. (KELSEN, 1957, p. 3)

A organização social, com suas regras, é que proporciona segurança. Isto é, a ordem jurídica proporciona a "segurança coletiva". Essa segurança consiste na proteção contra ofensas a certos interesses. Não se limita à proteção contra o uso da força física por parte dos outros indivíduos. Veda-se qualquer conduta de um indivíduo que cause prejuízos a outros e essa vedação se exerce independente da vontade dos sujeitos. Exercita-se uma força não necessariamente física, mas, principalmente, sanções centralizadas, como as que se observam no direito de um estado moderno. Ocorre, portanto, um uso simbólico da "força". Mas isto ainda é "força". Nesse caso, os indivíduos aos quais essas sanções são dirigidas, normalmente, não oferecem resistência, porque sabem que ela será ineficaz. Assim, Hans Kelsen (1973, p. 11-12) nos conduz ao entendimento de que qualquer delito, assim como qualquer sanção da ordem jurídica, é um uso de "força". O conceito de "força", como o aplicado à sanção do delito, em que se usa a força para prevenir o uso da força, muda seu significado sob o efeito da centralização e a centralização proporciona um aumento da eficácia da ordem jurídica. Aumentando a eficácia da ordem jurídica, aumenta a "segurança coletiva". (KELSEN, 1957, p. 11-12, tradução nossa)

However, an action of the same kind performed against the will of a victim must certainly be considered to be an enforcement action. In this sense, force is implied in any illegal conduct of a person directed toward another person against or without the will of the latter. This means that any delict, just as any sanction, may be considered to be a use of "force". Thus the very concept of force, as it applies to the description of the essential function of the law which is to provide for a sanction against a delict – that is, to provide a use of force to prevent a use of force – changes its meaning under the influence of centralization. Such centralization results in greater effectiveness of the law and the collective security guaranteed by it. (KELSEN, 19578, p. 11)

O que se percebe é que o significado de "força" pode se alterar. A "força" se torna simbólica, permanecendo latente, pronta para emprego, nos limites que a sociedade entende necessários. O que convém apontar é que esta "força centralizada" se organiza para dar proteção contra ofensas a certos interesses, logicamente os interesses hegemônicos na sociedade. Ora, desta forma, há coincidência entre os fins da polícia e a segurança coletiva. A "segurança coletiva", resultado do exercício da força centralizada contra a força de indivíduos que possam causar prejuízos aos outros, é, também, o fim da polícia, pois "o regime de Estado tem por objetivo fazer reinar a ordem e a paz pela aplicação preventiva do Direito; num sentido elevado, é isso que recebe o nome de policia" (CRETELLA JUNIOR, 1968, p. 21).

De tal forma, em um Estado de Direito, a força só pode ser empregada conforme dispõe o ordenamento jurídico. Ainda que com fundamento na noção de segurança coletiva se é obrigado a condicionar o exercício de algum poder de polícia à sua previsão pelo ordenamento jurídico. Não há espaço para um poder de polícia autônomo. Por isso que, mesmo na perspectiva de quem vê na polícia um conjunto de meios e pessoas direcionados à finalidade de segurança coletiva, é incompleto o conceito de polícia segundo o qual esta seria o "conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades dos administrados, através de medidas impostas a essas atividades, a fim de assegurar a ordem pública." (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 31), impondo-se o esclarecimento de que esses poderes coercitivos se exercem mediante restrições legais, como reconhecido em definição mais recente, já citada, segundo a qual polícia é o "conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades do cidadão mediante restrições legais impostas a essas atividades, quando abusivas, a fim de assegurar-se a ordem publica"(CRETELLA JÚNIOR, 1985, p. 125).

1.2 – Polícia e a irrelevância de suas classificações

Uma das classificações utilizadas para a atividade de polícia leva em conta o momento da atuação. Desse modo, identifica-se uma polícia preventiva, que atuaria antes do evento danoso e uma polícia repressiva, que atuaria após. A polícia preventiva é classificada como polícia administrativa e a repressiva é classificada como polícia judiciária. Ainda tem sido ensaiada uma divisão nas categorias de polícia de segurança e polícia administrativa, criticada porque tal classificação interessaria à natureza da medida, mas não serviria para delimitar a área de atuação da autoridade (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 31-37).

A polícia administrativa é constituída pelas atividades de polícia relacionadas aos vários ramos da administração e a polícia de segurança é um ramo da polícia administrativa que tem por objeto a tutela de direitos individuais em oposição à proteção de bens, objeto de outra espécie de polícia. A polícia administrativa poderia ser dividida em ramos que correspondem aos ramos da Administração. Uma primeira divisão indica dois ramos da polícia administrativa, o geral e o especial. A polícia administrativa geral atenderia a fins preventivos desvinculados de outro serviço público e teria por escopo a segurança, a tranqüilidade e a salubridade públicas. A polícia administrativa especial seria acessória de outros serviços públicos (CRELLA JÚNIOR, 1968, 59-62).

Essa divisão também é admitida por Hely Meirelles (2006, p. 131) que relaciona polícia administrativa especial a "setores específicos da atividade humana que afetem o interesse coletivo, tais como a construção, a indústria de alimentos, o comércio de medicamentos, o uso das águas, a exploração das florestas e das minas, para os quais há restrições próprias e regime jurídico peculiar".

Retornando a Moreira Neto, antes citado, colhe-se a observação de que a polícia judiciária é espécie do gênero polícia, destacado da polícia administrativa. A polícia administrativa incide nas atividades das pessoas, em suas liberdades e direitos fundamentais. A polícia judiciária incide nas pessoas, no direito de ir e vir, dirigindo-se à repressão de comportamentos típicos. Então, à polícia administrativa incumbe exercer as atividades preventivas e repressivas não atribuídas à polícia judiciária. Hely Meirelles (2006, p. 131) adota concepção semelhante, destacando que a polícia administrativa incide sobre bens, direitos e atividades, enquanto a polícia judiciária e, também, a polícia de segurança se exerce sobre as pessoas, individual ou indiscriminadamente.

Há uma polícia administrativa geral, como se viu. Mas, também há uma polícia administrativa especial, relacionada a específicos serviços públicos. Pode-se ainda classificar a atividade de polícia em ramos, campos e setores de atuação. A polícia de segurança, a de salubridade, a de decoro e a de estética, podem ser vistas como ramos (CRETELLA JUNIOR, 1968, p. 60-61) ou como campos de atuação (MOREIRA NETO, 2005, p. 401-403). Uma outra classificação distingue campos ou setores de atuação da polícia. Com isso, é possível distinguir-se, por exemplo, atividades de polícia sanitária, de polícia ambiental, de policia edilícia, de polícia da propriedade, das construções, do trânsito, de estrangeiros, das profissões, do comércio, dos costumes, de comunicação, de viação, de comércio, de indústria. A dificuldade, adverte Cretella Júnior (1968, p. 61), não está em relacionar os possíveis campos de atuação da polícia administrativa, mas em encontrar um critério que leve seguramente à classificação sistemática e suficiente de todas as espécies que o gênero polícia administrativa comporta.

Há alguma imprecisão nas classificações sugeridas. É de se observar que polícia administrativa ora é espécie do gênero polícia e ora é gênero de outras espécies. O que se entende como campo de atuação pode ser considerado setor de atuação, este definido como subdivisão daquele. De qualquer modo, não parece que tal sistematização tenha efeito prático considerável. Como já referido, essas divisões interessam à natureza da medida, mas não servem para delimitar a área de atuação da autoridade. Fica a compreensão de que polícia administrativa, polícia de segurança e polícia judiciária se revelam como espécies do gênero polícia, não sendo relevante as distinções peculiares, relacionadas a específicos serviços públicos.

Até mesmo a classificação da polícia em geral e especial não interessa ao nosso Direito. Vem da doutrina francesa a distinção entre polícia geral, concernente à tranqüilidade, à segurança e à salubridade públicas, e polícia especial, concernente aos outros campos de atuação. No direito francês, a Administração é autorizada a intervir por meio de regulamentos autônomos, quando se trata de segurança, tranqüilidade e salubridade públicas, e permanece submetida às leis que regulam seus poderes nas outras intervenções. Ora, no nosso Direito, "foge à alçada regulamentar inovar na ordem jurídica", os regulamentos existem para dar fiel cumprimento às leis, não se admitindo regulamento autônomo. Então, não nos interessa a distinção entre polícia de segurança, tranqüilidade ou salubridade e a concernente aos outros campos de atuação da Administração, porque todas as intervenções devem se dar no mesmo nível.(BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 830-831).

Mas polícia é expressão possível de entender-se como "regra de polícia", vista esta como um conjunto de normas impondo certas condutas aos cidadãos, nas relações interpessoais ou no exercício de atividades. Em sentido amplo, regra de polícia seria regra de direito. Direito e polícia, seriam uma mesma coisa, como sustentava Montaigne. Entretanto, em uma segunda acepção, polícia estaria referida aos atos de execução das leis e dos regulamentos e "Se a polícia é uma atividade ou um aparelhamento, o poder de polícia é o princípio jurídico que informa essa atividade, justificando a ação policial, nos Estados de Direito." (CRETELLA JUNIOR, 1968. p. 50-51, grifos do autor).

Então, o que se mostra relevante é o fundamento do poder de polícia. Promover a execução das leis é dever da Administração. Para cumprir tal dever, a Administração é compelida a exercer a autoridade, nos limites impostos pelas leis, "indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam sujeitos ao império destas leis". Tal é a "supremacia geral" da Administração. "O poder, pois, que a Administração exerce ao desempenhar seus encargos de polícia administrativa repousa nesta, assim chamada, ‘supremacia geral’, que, no fundo, não é senão a própria supremacia das leis em geral, concretizada através de atos da Administração." (BANDEIRA DE MELLO, 2009. p. 816-817, grifos do autor).

Entende Cretella Júnior (1968, p. 43-45) que o poder de polícia é inerente ao Estado, sendo este inseparável daquele. Mas, deve-se destacar que poder de polícia não é uma velha expressão, pois teve origem na Jurisprudência norte-americana onde o "police power" foi cunhado em decisão que data de 1853. Aí, além da segurança, da salubridade e da moralidade, o poder de polícia se aplicaria à regulação econômica e ao bem-estar social.

Nos países europeus construiu-se uma doutrina associando o poder de polícia à defesa da ordem pública, da segurança e da salubridade, chegando-se ao entendimento de que, enquanto polícia é "um conjunto de regras impostas pela autoridade pública aos cidadãos", poder de polícia nada mais é do que o poder de fazer cumprir essas regras (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 46).

1.3 Poder de polícia e a potestade pública

Entre nós, já se definiu poder de polícia como "a manifestação do poder público tendente a fazer cumprir o dever geral do indivíduo", segundo Aurelino Leal; "a faculdade ou poder jurídico de que se serve a Administração para limitar coercitivamente o exercício da atividade individual, em prol do benefício coletivo, assecuratório da estabilidade social", segundo Matos de Vasconcelos;"exercício do poder sobre pessoas e coisas, para atender ao interesse público" e "faculdade de manter os interesses coletivos, de assegurar os direitos individuais feridos pelo exercício de direitos individuais de terceiros", segundo Brandão Cavalcanti; "poder que tem por seu imediato objeto promover o bem comum subordinado a ele, restringindo em seu benefício os direitos privados", segundo Guimarães Menegale; "conjunto de atribuições concedidas à administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequado, direitos e liberdades individuais", segundo Caio Tácito; "expressão em que se costuma sintetizar a competência discricionária da Administração, para quanto concerne à segurança, à ordem, à saúde e ao sossego públicos", segundo Seabra Fagundes; e "faculdade discricionária da administração de limitar a liberdade individual em prol do interesse coletivo", segundo Cretella Junior. (CRETELLA JUNIOR, 1968, p. 48-56).

"Podem variar as aplicações do poder de polícia, de sistema para sistema, de governo para governo, mas a potestas politiae é imutável, de nada depende, porque é princípio que se exaure em si mesmo, pondo-se como pedra angular do mundo jurídico, fiel de balança que impede a confusão entre o arbitrário e o discricionário, autorizando a ação policial, mas limitando-a, permitindo que a atividade do particular se exercite ao máximo, sem que interfira, porém, com a atividade conferida a outro particular, de tal modo que se concilie o arbítrio de um com o arbítrio de outro, numa expressão total de esforços disciplinados." (CRETELLA JUNIOR, 1968. p. 56)

Autores modernos, tanto quanto os antigos, coincidem em conceituar o poder de polícia como faculdade da Administração Pública de restringir direitos individuais em beneficio do "interesse público". Hely Meirelles (2006, p. 131) define poder de polícia como "faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais em benefício da coletividade ou do próprio Estado". Bandeira de Mello (2009, p. 815) expõe que "A atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-a aos interesses coletivos designa-se poder de polícia.".

Carvalho Filho (2008, p. 68) conceitua poder de polícia como "prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade". Di Pietro (2005, p. 109-111) esclarece que na conceituação clássica, poder de polícia era "atividade estatal que limitava o exercício dos direitos individuais em beneficio da segurança" enquanto que, na conceituação moderna, trata-se de "atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público", tendo o poder de polícia por fundamento "o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração posição de supremacia sobre os administrados".

Hely Meirelles (2006, p. 132), sustentando-se em autores norte-americanos, descreve o poder de polícia (police power), em sentido amplo, como toda regulamentação interna do Estado, visando tanto assegurar a ordem pública quanto prevenir conflitos de direitos. Cita a definição de Caio Tácito que, como se viu, apresenta como finalidade do poder de polícia a restrição de direitos individuais em benefício do interesse público e destaca que a conceituação assim elaborada pela Doutrina, essencialmente, foi encampada pela legislação nacional, como consta do Código Tributário Nacional:

Art. 78 - Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão do interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício das atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

O interesse social motiva o poder de polícia, cujo fundamento é a supremacia do Estado, expressa em normas restritivas de direitos individuais. A cada restrição de direito individual se aplica um correspondente poder de polícia capaz de torná-la efetiva. "As liberdades admitem limitações e os direitos pedem condicionamento ao bem-estar social" e "Essas restrições ficam a cargo da polícia administrativa" (MEIRELLES, 2006. p. 133).

A exemplo da doutrina alemã, italiana e espanhola, pode-se distinguir supremacia geral e supremacia especial da Administração. A supremacia especial se dá nas relações em que o administrado voluntariamente se submete ao estatuto das instituições, caso em que seria admitida a modulação do princípio da legalidade. A supremacia geral é a exercida em relação a todo e qualquer cidadão pela simples razão de ele fazer parte de uma comunidade, prescindindo de relação estatutária entre ele e a instituição. A regra a observar é que, com fundamento na supremacia geral, não há poder para a Administração agir, além do expresso em lei. (BANDEIRA DE MELLO, 2009. p. 817-821).

É também este o entendimento de Vitta (2003, p. 84), lembrando que só a lei pode obrigar o cidadão a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Nenhuma norma, além da legal, pode estabelecer sanções ou definir infrações a que aquelas se aplicam, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade.

Na denominada supremacia geral, em que a sujeição do particular não se atém a determinado liame, por intermédio do qual o indivíduo ingressa na intimidade da organização administrativa, o princípio da legalidade vige na sua mais ampla acepção; apenas a lei formal, editada pelo Legislativo poderá estabelecer infrações e sanções administrativas. (VITTA, 2003, p. 84)

Moreira Neto (2005, p. 395-396), não dedica um capítulo ou um título de sua obra ao "poder de polícia". Refere-se à polícia, destacando a evolução histórica do instituto e o constitucionalismo norte-americano, onde foi cunhada a expressão poder de polícia. Ressalta que "Chegou-se, assim, ao atual conceito de função administrativa de polícia, por meio da qual o Estado aplica restrições e condicionamentos legalmente impostos ao exercício das liberdades e direitos fundamentais, tendo em vista a assegurar uma convivência social harmônica e produtiva". Adverte o autor que, na nossa ordem jurídica, o "emprego do poder estatal para restringir e condicionar liberdades e direitos individuais é uma exceção às suas respectivas afirmações constitucionais" e tal seria a razão desse emprego só poder ocorrer "sob reserva legal". Enfim, édo legislador a atribuição de criar normas de polícia "para alterar e adequar os direitos individuais ao convício social".

Com este esclarecimento sobre o que se deve entender pela difundida expressão, poder de polícia, chega-se a um conceito didático que põe em evidência a característica de instrumentalidade acima sublinhada: denomina-se polícia à função administrativa que tem por objeto aplicar concreta, direta e imediatamente as limitações e os condicionamentos legais ao exercício de direitos fundamentais, compatibilizando-os com interesses públicos, também legalmente definidos, com a finalidade de possibilitar a convivência ordeira e valiosa. (MOREIRA NETO, 2005. p. 396).

A apontada instrumentalidade do poder de polícia, que se estima coerente com a sistematização dos direitos fundamentais, parece confrontar noções mais antigas e o desacordo seria quanto ao emprego da expressão "supremacia do interesse público".

Em Cretella Junior (1972, p. 55-58), encontra-se a tese de oposição entre a pessoa jurídica de direito público e a pessoa jurídica de direito privado, que seria demonstrada, especialmente, pela criação, pela finalidade e pela capacidade, justificando prerrogativas ou privilégios da pessoa de direito público, um poder de imperium, uma vontade imperante, razão de ser dos atos de potestade pública que os órgãos do Estado praticam, exorbitando o direito comum. Haveria um princípio das prerrogativas públicas, traduzido como "faculdades especiais conferidas à Administração, quando se decide a agir contra o particular". O conjunto das prerrogativas e privilégios usufruídos ao agir para efetivar o interesse geral comporia a potestade pública."Da potestade pública ou potestas imperii advém a situação privilegiada da Administração, desnivelando-a diante do particular e tornando-a idônea para impor, em condição bastante vantajosa, sua vontade, em nome do interesse público." A finalidade da Administração é a satisfação dos interesses coletivos, que, não raro, cobram o sacrifício do interesse particular, ressalta o autor. Mas a Administração seria paralisada se, sempre que pretendesse agir, fosse obrigada a consultar interesses particulares. Assim, o Estado teria dotado a Administração de potestade pública, regime jurídico caracterizado por prerrogativas e sujeições. As prerrogativas têm fundamento no interesse público, "impõem-se sem prévia consulta ao administrado", derrogam o direito comum e "põem em evidência o traço de império da Administração". As sujeições, ou restrições, obrigam o administrador a agir com impessoalidade. Por fim, diz Cretella Junior, o fundamento da potestade pública é o interesse público: "Salus reipublicae suprema lex esto"

Então, é na potestade pública que se fundamentaria o poder de polícia segundo a maior parte das definições antes apresentadas, as quais, essencialmente, se referem a ele como atividade, faculdade ou prerrogativa da Administração de restringir, condicionar ou limitar direitos individuais em beneficio da coletividade, do Estado ou do interesse público.

O poder de polícia serve para impedir que os indivíduos perturbem a ordem pública. É uma noção afinada com o conceito de potestade pública e que não se distancia da definição de Cretella Junior (1968, p. 56): "Poder de polícia é faculdade discricionária da administração de limitar a liberdade individual em prol do interesse coletivo".

Bandeira de Mello (2009, p. 58-62) informa que é inválido todo ato administrativo contrário ao interesse público. Por sua vez, o "interesse público" não se trataria de algo autônomo. Seria o interesse do todo uma qualificação dos interesses das partes. Mesmo que possa acontecer do interesse público contrariar determinado interesse individual, não é lógico afirmar a existência de um interesse do todo ao mesmo tempo contrário ao interesse da cada uma de suas partes. Interesse público é "o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem". Isto é, segundo Bandeira de Mello, o interesse público não é desvinculado dos interesses individuais, sendo-lhes, porém, superior, porque se trata de uma qualificação deles.

1.4 Poder de polícia e o princípio da legalidade

Mas há uma corrente que propõe a desconstrução do princípio da supremacia do interesse público e não partilha da opinião de que a potestade pública ou o interesse público fundamenta o poder de polícia, por entender que "é ainda comum a invocação do ‘interesse público’ como meio de justificar qualquer medida restritiva das liberdades públicas [...]". O argumento fundamental dessa corrente é o de que se devem levar em conta os interesses públicos, estatais e sociais, na ponderação de interesses, mas que isso não justificaria, "partir do pressuposto de que sempre deva prevalecer sobre quaisquer interesses privados, mesmo quando já haja regra constitucional específica dirimindo o conflito entre eles.". (ARAGÃO, 2007)

Nesse mesmo rumo, Daniel Sarmento (2007) opõe-se à tese de que a supremacia do interesse público possa tratar-se de um axioma do Direito Público. O entendimento de que haja interesse público que não se confunde com interesses individuais dos componentes de uma sociedade e que lhes é superior, constituiria uma idéia organicista, insustentável no Estado Democrático de Direito. Adverte, então, para a impossibilidade de a tutela de interesses coletivos autorizar restrições a direitos fundamentais:

Recorde-se, por outro lado, que a compreensão sobre a preeminência dos direitos fundamentais na ordem jurídica tem levado a melhor doutrina administrativista a repensar a definição clássica de poder de polícia, que, infelizmente, ainda hoje se pode encontrar na maioria dos manuais nacionais, segundo a qual tratar-se-ia de atividade administrativa voltada à submissão dos direitos individuais aos interesses da coletividade. Esta, na verdade, era uma concepção própria do Estado de Polícia, e que não se concilia com o ideário do Estado de Direito, que postula a plena vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais.[..] (SARMENTO, 2007)

A "suposta supremacia do interesse público sobre o particular" não legitima restrições a direitos fundamentais. Os limites aos direitos fundamentais são estabelecidos diretamente na Constituição, ou dispostos em leis restritivas autorizadas pela Constituição, ou decorrentes de restrições a que o texto constitucional não se referiu expressamente. Destas hipóteses, só a última poderia se intentar associar a uma supremacia do interesse público. Entretanto, em tal caso, só se justificaria alguma restrição a direito fundamental para proteção de outro direito fundamental ou de algum interesse do Estado ou da coletividade, com envergadura constitucional. Se assim não for, estar-se-ia admitindo que interesses de nível legal ou infralegal se sobrepusessem à tutela dos direitos constitucionais (SARMENTO, 2007)

Esta é, aliás, uma razão adicional para a recusa à admissão de um princípio da supremacia do interesse público como critério de limitação de direitos fundamentais. Como nem todo interesse público possui berço constitucional, não há como postular sua prevalência sobre tais direitos. (SARMENTO, 2007).

As restrições a direitos fundamentais devem emanar de lei "geral, abstrata e suficientemente densa e determinada", que permita previsibilidade e segurança jurídica. Não são válidas restrições a direitos fundamentais que se apresentam com excessiva vagueza. Cláusulas "muito gerais" violam o princípio da reversa legal, por transferir para a Administração a atribuição de estabelecer concretamente os limites ao exercício de direitos fundamentais. Tal prática também interfere na sindicabilidade judicial dos direitos fundamentais, na medida em que priva os julgadores dos parâmetros objetivos de controle. Mas, o que é pior, o princípio da supremacia do interesse público não se compatibiliza com o princípio da proporcionalidade, porque afasta a possibilidade de ponderação por afirmar, a priori, a supremacia daquele interesse sobre o interesse particular. Ainda assim, advoga-se a defesa do princípio a supremacia do interesse público sobre o particular, numa "versão mais fraca", adotando-a como regra de precedência prima facie no caso de conflito entre ambos os interesses. Nessa concepção, o interesse público prevaleceria sobre o privado, sendo possível ocorrer o inverso, com o ônus argumentativo maior para defesa do interesse particular. Isso, porém, também fragiliza os direitos fundamentais, desconsiderando o status constitucional deles. Então, tanto a concepção "forte", quanto a "fraca" devem ser descartadas (SARMENTO, 2007).

E mais, por todas as razões acima aventadas, entendemos que, diante de conflitos entre direitos fundamentais e interesses públicos de estatura constitucional, pode-se falar, na linha de Alexy, numa ‘precedência prima facie’ dos primeiros. Esta precedência implica na atribuição de um peso inicial superior a estes direitos no processo ponderativo, o que significa reconhecer que há um ônus argumentativo maior para que interesses públicos possam eventualmente sobrepujá-los. Assim, o interesse público pode até prevalecer diante do direito fundamental, após um detido exame calcado sobretudo no princípio da proporcionalidade, mas para isso serão necessárias razões mais fortes do que aquelas que permitiriam a ‘vitória’ do direito fundamental. E tal idéia vincula tanto o legislador – que se realizar ponderações abstratas que negligenciarem esta primazia prima facie dos direitos fundamentais poderá incorrer em inconstitucionalidade – como aplicadores do Direito – juízes e administradores – quando se depararem com a necessidade de realização de ponderações in concreto (SARMENTO, 2007).

Deve-se questionar se seria admissível a supremacia do interesse público sobre interesse particular sem status de direito fundamental. Desta feita o que se descarta é a primazia incondicional do interesse público. Terá de incidir o princípio da legalidade administrativa opondo-se ao generalizado apelo aos interesses públicos para restrição de interesses individuais. O Estado só pode agir quando autorizado pela lei. Logo, os interesses públicos só podem ser alegados em detrimento de interesses particulares, consoante previsão legal.

É verdade, contudo, que no contexto atual de separação do legicentrismo, a vinculação do administrador à lei foi substituída pela sua subordinação ao ordenamento jurídico como um todo, no qual despontam, com importância capital, a Constituição e seus princípios. Assim, a exigência de lei formal para autorização da ação administrativa foi mitigada, admitindo-se hoje que a própria Constituição, pela força normativa que desfruta, possa fundamentar a atuação da Administração, independentemente de mediação legislativa. Entende-se assim que a Administração Pública encontra-se vinculada não apenas à lei, mas antes a todo um "bloco de legalidade", que incorpora princípios, objetivos e valores constitucionais, e a esta nova formulação tem se atribuído o nome de princípio da juridicidade, ou da legalidade em sentido amplo. Trata-se, contudo, de uma idéia de mão-dupla, pois da mesma forma que se presta para fundamentar, a partir da Constituição, ações da Administração Pública, ela serve também para limitá-la, impondo o acatamento imediato dos princípios e valores constitucionais. (SARMENTO, 2007)

Assim, considerada a inadmissibilidade da supremacia do interesse público sobre direitos fundamentais e considerada a necessária submissão da Administração ao princípio da legalidade, ainda que seja um interesse privado não incluído no catálogo dos direitos fundamentais, parece descartável a noção de supremacia do interesse público. Do que se deve cogitar no conflito entre interesse público e interesse privado é da aplicação do princípio da proporcionalidade, do que pode resultar o destaque de um ou de outro, não sendo correto aventar-se uma primazia incondicional do interesse público.

Humberto Ávila (2007) entende que a supremacia do interesse público não é uma norma-princípio, uma vez que a sua descrição abstrata não admite graduação, apresentando a sua prevalência como única possibilidade de aplicação. A supremacia do interesse público seria "uma regra abstrata de preferência no caso de colisão ("Kollisiononspräferenzregel) em favor do interesse público, nunca, porém, uma norma-princípio prima facie". Mas, à regra faltaria fundamento de validade. A Constituição protege a liberdade, a igualdade, a cidadania, a segurança e a propriedade com tanta ênfase que se regra abstrata e relativa de prevalência houvesse, seria em favor dos interesses privados. Dessas garantias constitucionais deriva um ônus de argumentação em favor dos interesses privados e em prejuízo dos interesses coletivos. Logo, em iguais condições, prioritários serão os interesses privados. De certo modo, assim tem se manifestado a Jurisprudência. Constata o autor que as decisões do STF não têm se referido diretamente à existência ou não de uma supremacia do interesse público. "Não obstante, demonstram a necessidade de previsão normativa para qualquer intervenção estatal, ficando o ‘interesse público’ sem significado autônomo".

Mas "não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público" (BANDEIRA DE MELLO, 2009. p. 65). Com isso se quer destacar a existência dos interesses primários do Estado que correspondem aos interesses públicos propriamente ditos e interesses secundários, que são particulares da pessoa jurídica Estado, similares aos interesses individuais, lembrando que só os interesses primários têm supremacia sobre interesses privados. Todavia, a individualização dos interesses públicos estaria no Direito Positivo. A qualificação de tais interesses radicaria na Constituição. Com esse pressuposto, a proteção de interesse privado segundo previsão da Constituição também constituiria um interesse público a resguardar. É o que ocorre na indenização do desapropriado e de quem sofre lesão causada pelo Estado (BANDEIRA DE MELLO, 2009. p. 68-69).

Só mesmo em uma visão muito pedestre ou desassistida do mínimo bom senso é que se poderia imaginar que o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado não está a reger nos casos em que sua realização traz consigo a proteção de bens e interesses individuais e que, em tais hipóteses, o que ocorre...é a supremacia inversa, isto é, do interesse privado! (BANDEIRA DE MELLO, 2009. p. 69)

A propósito do texto transcrito, é de aceitar que, de fato, num Estado que tem por mandamento constitucional a tarefa de proteger e defender direitos fundamentais, garantir esses direitos é interesse público, conforme registra Daniel Sarmento (2007, p. 83).

Todavia, vale a ressalva de que se o interesse público e o privado não podem separar-se conceitualmente, então não pode um prevalecer sobre o outro, nem eles podem estar em contradição. "Interesse público como finalidade fundamental da atividade estatal e supremacia do interesse público sobre o particular não denotam o mesmo significado.". Por isso, a constatação de que cabe à Administração atender ao interesse público não pode levar à conclusão de que há prevalência do interesse público sobre o privado. (AVILA, 2007, p. 191).

Ora, derradeiramente, deve-se reconhecer que o interesse público acaba sendo o interesse hegemônico em uma comunidade. Pode-se afirmar que é interesse do todo, função qualificada dos interesses das partes, o que, logicamente, não pode ser ao mesmo tempo contrário ao interesse de cada uma das partes (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 59). Então, pode-se dizer que o interesse público há de corresponder a uma vontade geral da comunidade, mas, não necessariamente.

Para se ter um interesse público, basta ele se apresentar como vontade da maioria. Interesse público é o interesse majoritário. É possível, portanto, que parte da comunidade, a minoria, não veja no interesse público uma correspondência com o próprio interesse individual. Mesmo assim, a minoria contribuirá para a concretização do interesse majoritário, ou será compelida a fazê-lo. Nos regimes totalitários o interesse público é definido pelo governo, pela Administração, pelo Estado e não corresponde à noção antes delineada, própria de um Estado Democrático, "porquanto falta a coincidência com os interesses majoritários". (SILVA, 2004, p. 207)

Também parece claro que o interesse público não corresponda ao interesse da totalidade dos cidadãos que compõem determinada comunidade, os quais, em regra, colidem, pela própria característica de uma sociedade pluralista, como é a brasileira. Cumprir o interesse público não é atender ao interesse comum de todos os cidadãos – o que seria impossível -, mas beneficiar uma coletividade de pessoas que tenham interesses comuns, ainda que estes não correspondam à soma dos interesses individuais. O interesse público é despersonalizado. (SILVA, 2004, p. 209)

1.5 Poder de polícia, atividade sub-legal, função administrativa

Vista a controvérsia que cerca o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, destacada sua feição de interesse majoritário imposto às minorias, é oportuno examinar a assertiva que bem representa a expressiva maioria da Doutrina nacional, segundo a qual "O fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração posição de supremacia sobre os administrados" (DI PIETRO, 2005, p. 109, grifo da autora).

Afirmar-se que o fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, com o esclarecimento de que o interesse público é o interesse majoritário imposto às minorias, provoca a comparação com o conceito inicialmente exposto de segurança coletiva como fim da polícia, esta entendida como centralização da força para garantir a ordem social. Resulta que, muito mais do que o termo "poder de polícia", o fundamento a ele atribuído tem conotação autoritária, fazendo retomar, como se disse ao início, a concepção de que o Estado é uma ordem coercitiva, posta para controlar comportamentos prejudiciais à sociedade, com o sacrifício de interesses minoritários em prol da coesão do grupo e da segurança comum.

Afirma Sundfeld (1997, p. 11) que há na noção de Poder de Polícia uma conotação autoritária, presente em conhecida formulação de Otto Mayer, segundo a qual "Poder de Polícia consiste na ação da autoridade para fazer cumprir o dever, que se supõe geral, de não perturbar de modo algum a boa ordem da coisa pública". Isso faz parecer que a atividade de polícia pode ser algo mais do que a função de aplicar leis reguladoras de direitos, única acepção em que se pode tomar a expressão "poder de polícia" num Estado de Direito.

O poder de polícia surge, nessa definição, como correlato do dever (não expresso na lei, mas suposto) de os particulares respeitarem dado valor, jurídico por natureza: a boa ordem da coisa pública. A competência para cuidar dele é implícita, parecendo normal que, além de dispor de todos os instrumentos para fazê-lo, a Administração defina com autonomia seu conteúdo. Daí a admitir, mesmo inconscientemente, a existência de poderes não previstos em lei, mas supostos na competência para cuidar da boa ordem da coisa pública é um passo. O grande problema é que nada disso se compatibiliza com o princípio da legalidade administrativa. (SUNDFELD, 1997, p. 11)

A conotação autoritária tem levado à proposta de abandono da expressão "poder de polícia". Para afastar essa idéia, tem-se utilizado mais frequentemente a expressão "polícia administrativa", evitando empregar a palavra poder. A expressão "poder de polícia" tem carga negativa e os riscos de sua utilização mantêm-se nos dias atuais. Basta atentar-se para a rápida ampliação das funções do Poder Público com vista à proteção dos consumidores, do patrimônio cultural e do meio ambiente, o que estaria servindo de pretexto a imposições diversas com relação à liberdade e à propriedade, sem a específica fundamentação legal. "A tendência natural, inclusive pela simpatia em torno desses valores, é de esquecer o princípio da legalidade". Todavia, a Constituição não concedeu poderes indefinidos à Administração e, no vácuo legal, preferiu a liberdade à proteção de certos bens (SUNDFELD, 1997, p. 11-12).

É essa crua realidade que o conceito de poder de polícia – ainda mais adoçado com a troca da boa ordem da coisa pública, por defesa do consumidor, do meio ambiente, do patrimônio cultural, etc. – teima em obscurecer. Destarte, é forçoso descartá-lo, em busca de outro modo, mais feliz, de designar atividade que, como todo agir administrativo, significa aplicação da lei, e nada mais do que isso. (SUNDFELD, 1997, p. 13)

A expressão "poder de polícia" não é atualmente uma noção autônoma, porque essa função se espraiou por toda a atividade do Estado, não se limitando às clássicas e bem delimitadas áreas de segurança, salubridade e moralidade. A coerção estatal continua presente, mas não há uma atividade específica dos órgãos públicos a que se possa distinguir com a denominação de "poder de polícia". É equivocado querer fundamentar uma limitação de direito individual nesse conceito. As limitações aos direitos individuais devem sustentar-se concretamente em disposições constitucionais e em princípios jurídicos e não na noção de "poder de polícia" (GORDILLO, 2003. p. 13).

Com a mesma orientação, Grau (1993) informa que não existe um Poder de polícia. Essa expressão evocaria uma noção de prerrogativa da Administração que igualmente inexiste. Não há prerrogativas intrínsecas da Administração que embasem um poder de polícia ou que dele emanem. "O poder de polícia, em verdade, não é nem prerrogativa nem mera faculdade da Administração, porém função dela, dever-poder que vincula sua vontade. Daí dela dizer-se que consubstancia atividade sub-legal". Na noção de Otto Mayer, citado pelo autor, o poder de polícia se prestaria à realização de um "dever geral, que incumbe ao súdito, de não perturbar a coisa pública". Ora, dever é pressuposto que prescinde de disposição legal. Como competiria à Administração zelar pela ordem da coisa pública, então haveria uma competência reunindo poderes nem sempre expressos em lei, mas imanentes. Entretanto, ressalta o articulista, no Estado de Direito, com a adoção do princípio da legalidade, desloca-se o "ponto de sustentação do poder de polícia "de uma ‘natural e imanente’ competência da Administração para o "bloco de legalidade", isto é, para o conceito de legalidade, referido à totalidade do ordenamento jurídico.

O poder de polícia consubstancia atividade sub-legal, função administrativa, dever-poder. A Administração, pois, no seu exercício, está abrangida por um vínculo imposto a sua vontade (dever). Deve exercitá-lo prestando devido acatamento à legalidade, regra de conteúdo de sua atuação. Ou não deve – isto é, não pode – exercitá-lo. Se o caso de dever exercitá-lo – isto é, se houver norma dispondo neste sentido – pode, ao fazê-lo, fazer tudo quanto deva fazer: mas apenas isso, nada mais. Não pode fazer mais do que deva fazer. (GRAU, 1993)

É, portanto, conclusivo que a Administração não dispõe de um poder de polícia que se traduza em prerrogativas ou faculdades imanentes autorizando-a a restringir, condicionar ou limitar direitos individuais, seja a que pretexto for, inclusive o da controvertida supremacia do interesse público. Poder de polícia tem de significar exercício de "função administrativa por meio da qual o Estado aplica restrições e condicionamentos legalmente impostos ao exercício das liberdades e direitos fundamentais, tendo em vista a assegurar uma convivência social harmônica e produtiva", como define Moreira Neto, antes citado. Nessa direção seria possível falar-se em potestade pública, desde que ressaltado que só a potestade expressa em lei pode municiar a Administração.

O princípio da legalidade da Administração, com o conteúdo explicado, se expressa num mecanismo técnico preciso: a legalidade atribui potestades à Administração, precisamente. A legalidade outorga faculdades de atuação, definindo cuidadosamente seus limites, delega poderes, habilita a Administração para sua ação conferindo-lhe a tal efeito poderes jurídicos. Toda ação administrativa apresenta-se-nos assim como exercício de um poder atribuído previamente pela lei e por ela delimitado e construído. Sem uma atribuição legal prévia de potestades, a Administração, simplesmente, não pode atuar. (ENTERRIA e FERNANDEZ, 1990, p. 376-377)

Deste modo, conforme Enterría e Fernandez (1990, p. 383-395), a Administração só dispõe de potestades expressamente atribuídas pelo ordenamento jurídico, situação que decorre do princípio que exige delegação positiva de poderes para que a Administração possa agir, ainda que alguma concessão se faça à doutrina dos poderes implícitos, excepcionalmente inferidos da interpretação das normas. A atribuição de potestades à Administração também deve ser específica, o que obriga a que os poderes atribuídos pela lei tenham contorno concreto e determinado. Poder jurídico indeterminado seria ilimitado e, por isso, incompatível com o ordenamento, pois a falta de limites impossibilitaria os demais direitos. Não se concebe poder ilimitado da Administração quando o Estado reconhece os direitos fundamentais que, logicamente, limitam aquele. "Não há, pois, poderes administrativos ilimitados ou globais; todos são, e não podem deixar de ser, específicos e concretos, medidos, com um âmbito de exercício lícito (agere licere) detrás de cujos limites o poder desaparece pura e simplesmente". Entretanto, há os "conceitos jurídicos indeterminados". Enquanto para os conceitos determinados a lei delimita as hipóteses fáticas com precisão, para os conceitos indeterminados não há contornos de realidade bem delimitados. A imprecisão acontece porque, nesses casos, o legislador lida com conceitos que não admitem uma exata quantificação. De qualquer maneira, são hipóteses da realidade e, apesar da indeterminação com que são enunciados, tais conceitos podem ser determinados no momento da aplicação ao caso concreto. Assim, a indeterminação do enunciado não leva à indeterminação da aplicação, sendo admitida uma única solução justa para cada caso.

Assim, conceitos como urgência, ordem pública, justo preço, calamidade pública, medidas adequadas ou proporcionais, inclusive necessidade pública, utilidade pública e até interesse público, não permitem em sua aplicação uma pluralidade de soluções justas, senão uma só solução em cada caso. Observação com a qual se teriam convertido virtualmente (e a última doutrina alemã aceita esta solução extrema) a generalidade das potestades discricionais em reguladas, já que, explícita ou implicitamente, todas as potestades discricionais se outorgam para alcançar um interesse público, conceito indeterminado cuja aplicação só permitiria em cada caso uma única solução justa. (ENTERRIA e FERNANDEZ, 1990, p. 395)

Neste aspecto, é oportuna a definição de Bandeira de Mello (2009, p. 816):

O poder expressável através da atividade de policia administrativa é o que resulta de sua qualidade de executora das leis administrativas. É a contraface de seu dever de dar execução a estas leis. Para cumpri-lo não pode se passar de exercer autoridade – nos termos desta mesmas leis – indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam sujeitos ao império destas leis. Daí a "supremacia geral" que lhe cabe.

Resulta que o poder da Administração no exercício da atividade de polícia tem fundamento na "supremacia geral" das leis e não no controvertido princípio da predominância ou supremacia do interesse público sobre o privado. Retomando Kelsen, o Estado é a ordem normativa que regula o mútuo comportamento dos indivíduos, uma ordem coercitiva, oposta aos comportamentos prejudiciais à sociedade a fim de proporcionar a segurança coletiva. Por sua vez, "polícia é o termo genérico com que se designa a força organizada que protege a sociedade, livrando-a de toda vis inquietativa",na definição de Cretella Júnior (1968, p. 13-14). A força organizada que protege a sociedade é a sua ordem normativa, então, poder de polícia é o poder da ordem normativa.

Por isso, conforme Grau (1993), "poder de polícia" refere-se a uma atividade sub-legal, função administrativa, dever-poder, que a Administração é obrigada a exercer, quando há previsão legal para fazê-lo, e é proibida de exercer, na falta de previsão legal. Presentes essas noções, é possível afirmar que é irrelevante omitir-se a palavra "poder" ao designar a atribuição de polícia da Administração. O emprego da palavra não autoriza a Administração a agir sine lege e a sua omissão não a impede de agir segundo a lei. Assim, é na lei que o "poder de polícia" encontra seu fundamento e é na lei que estão os limites do seu exercício.


2. PODER DE POLÍCIA DA AUTORIDADE MARITIMA

2.1 Autoridade Marítima: conceituação

A revogada Lei Complementar nº 69, de 23 de julho de 1991, dispunha sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, estabelecendo como atribuições subsidiárias da Marinha as descritas no art. 9º, a seguir transcrito:

Art. 9ºCabem às Forças Armadas as seguintes atribuições subsidiárias:

I - como atribuição geral: cooperar com o desenvolvimento nacional e a defesa civil;

II - como atribuições particulares da Marinha:

a) orientar e controlar a Marinha Mercante e suas atividades correlatas, no que interessa à defesa nacional;

b) prover a segurança da navegação aquaviária;

c) contribuir para a formulação e condução de políticas nacionais que digam respeito ao mar; e

d) implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e águas interiores; e

A Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, revogou a Lei Complementar nº 69/91, mantendo as mesmas atribuições subsidiárias da Marinha, e definindo a "Autoridade Marítima" [1] conforme se vê do seu art. 17, caput, incisos e Parágrafo único:

Art.17 – Cabe à Marinha, como atribuições subsidiárias particulares:

I – orientar e controlar a Marinha mercante e suas atividades correlatas, no que interessa à defesa nacional;

II – prover a segurança da navegação aquaviária;

III – contribuir para a formulação e condução de políticas nacionais que digam respeito ao mar;

IV – implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual quando se fizer necessário, em razão de competências específicas.

Parágrafo único. Pela especificidade dessas atribuições, é da competência do Comandante da Marinha o trato dos assuntos dispostos neste artigo, ficando designado como "Autoridade Marítima" para esse fim.

Desta forma,é possível conceituar "Autoridade Marítima" como o conjunto de competências subsidiárias atribuídas ao Comandante da Marinha para formulação e condução de políticas nacionais a respeito do mar ou para execução da polícia administrativa do tráfego aquaviário, com a finalidade de salvaguardar a vida humana e garantir segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores; e de prevenir a poluição ambientalpor parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio, ou conforme a Lei nº 9.966/2000, art. 2º, inciso XXII:

XXII – autoridade marítima: autoridade exercida diretamente pelo Comandante da Marinha, responsável pela salvaguarda da vida humana e segurança da navegação no mar aberto e hidrovias interiores, bem como pela prevenção da poluição ambiental causada por navios, plataformas e suas instalações de apoio, além de outros cometimentos a ela conferidos por esta Lei;

Pode-se verificar que as Forças Armadas têm, na normalidade institucional, a específica destinação constitucional de defesa da Pátria e garantia dos poderes constitucionais, como expresso no artigo 142, caput, da CF/88:

Art. 142 - As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

A missão clássica das Marinhas é "assegurar o uso dos oceanos para sua própria nação e estar em condição de tentar evitar que outras nações utilizem os oceanos de maneira desvantajosa para o seu país." (BOOTH, 1989, p. 52).

Todavia a missão da Marinha também é cumprida em tempo de paz, quando o que se executa não é uma atividade classicamente militar. Trata-se, então, do emprego da Marinha em tempo de paz. Conforme Lafayette Pinto (1989, p. 23-60), há interesses da Nação, presentes e futuros, que as normas jurídicas são insuficientes para assegurar. Daí, a necessidade do emprego ou demonstração de força para garantia desses interesses. É o que se dá com o Direito do Mar, especialmente na Zona Econômica Exclusiva e na plataforma continental, onde tais interesses podem ser a proteção aos pesqueiros nacionais, a segurança do tráfego marítimo, a proteção à pesquisa ou a manutenção da integridade das instalações marítimas, como terminais, portos e plataformas petrolíferas.

De qualquer forma, quando se fala de atividade marítima, geralmente pensa-se em Marinha de Guerra. Isso é razoável em países menos desenvolvidos, nos quais a manutenção de uma Força Naval pode ser muito cara, levando à compreensão de que os custos podem ser amortizados pelo emprego em atividades administrativas. Semelhante demanda também ocorre com as grandes Marinhas, pois, assim como é comum se ver navios de guerra de Marinhas menores prestando apoio a regatas, não é incomum ver navios de Marinhas maiores dedicando-se a recolher foguetes e cápsulas espaciais (LAFAYETTE PINTO, 1989. p. 57).

De um modo geral, as Marinhas exercem várias tarefas subsidiárias, algumas de forma permanente, seja pelo interesse do Estado, seja pela falta de órgãos ou empresas pertinentes. As mais comuns e tradicionais se relacionam ao salvamento marítimo, combate ao contrabando, assistência às populações ribeirinhas, fiscalização da poluição, entre outras, que para algumas Marinhas assumem papel destacado. Entretanto, à medida que a tecnologia vai permitindo ampliar o campo de atuação humana no mar, os interesses marítimos aumentam e passam por sua vez a demandar mais as Marinhas. Por um lado requerem atividades que se enquadram como subsidiárias mas, por outro, passam também a exigir proteção e segurança, aí sim pertinentes às Marinhas de Guerra. Enquanto as subsidiárias podem e são em muitos casos atendidas por instituições ou órgãos afins, como as Guardas Costeiras, por exemplo, as relativas à proteção devem ser exercidas pelas Marinhas de Guerra. (LAFAYETTE PINTO, 1989. p. 58)

Nos dias atuais, cada vez mais, a preservação dos recursos naturais e a prevenção da poluição ambiental são tão relevantes quanto o domínio do espaço marítimo. Assim, naturalmente, incumbe à Marinha a execução de tarefas que não se ajustam à concepção clássica de atividade militar, constituindo-se numa atividade de polícia administrativa especial.

Por oportuno, cabe ressaltar que em países onde não há Marinha de Guerra, e que possuem organizações marítimas paramilitares, como por exemplo Guarda Costeira, é válido o raciocínio expresso quanto à necessidade de marcar presença em águas sob jurisdição nacional, para evitar atividades irregulares perpetradas por intrusos. Na prática, a polícia marítima, ou organizações semelhantes, acaba por desempenhar um papel similar ao das Marinhas, no que diz respeito à salvaguarda dos recursos naturais da Zona Econômica Exclusiva, à segurança do mar territorial e à fiscalização das atividades marítimas, chegando mesmo a exercer um controle da área marítima sob sua responsabilidade, ainda que em nível de polícia. (LAFAYETTE PINTO, 1989. p. 59)

A constituição e a manutenção de um Poder Naval têm custo elevado e a sua implementação exige considerável esforço do país, o que deve ser retribuído com o adequado emprego da Força Naval. Por conseqüência, a Marinha não pode deixar de aplicar suas forças na proteção dos interesses marítimos nacionais, mesmo quando eles ainda não estão ameaçados, mesmo que se trate de atribuição subsidiária da Força. De outra parte, por exemplo, "defender um campo petrolífero no mar não significa dispor de um grupo de embarcações dedicadas exclusivamente a essa tarefa". O importante é que, com o emprego freqüente das forças navais, logra-se a presença naval, que é dissuasória, e que, complementarmente, serve à proteção dos interesses marítimos, uma situação conveniente para Marinhas menores. (LAFAYETTE PINTO, 1989. p. 60).

Trata-se, portanto, do típico emprego da Força com uma finalidade de proporcionar a segurança coletiva. Então, admitindo a validade do conceito de segurança coletiva ao início apresentado, há nessa atividade uma estrita vinculação legal. Não se trata de operação militar que admitiria um poder de fato, mas de atividade de polícia, onde se exerce poder de polícia com fundamento no bloco de legalidade.

2.2 Polícia administrativa do tráfego aquaviário

Pelos motivos antes expostos, no nosso país, tradicionalmente, a Marinha é empregada em atividades subsidiárias, entre as quais a de polícia administrativa. Essa atividade era denominada Polícia Naval como constava do art. 59 do Decreto nº 5.798, de 11 de junho de 1940, que aprovou e mandou executar o Regulamento para as Capitanias de Portos:

Art. 59. Por Polícia Naval deverá ser entendida a atribuição dada às pessoas vinculadas permanente ou temporariamente à Diretoria de Marinha Mercante, para fiscalizarem e exigirem a fiel observância e o cumprimento das leis, regulamentos, disposições e ordens referentes à navegação e à Marinha Mercante e ao que preceitua este regulamento. (PINTO; DIAS, 1959, p. 1791).

O Regulamento para as Capitanias de Portos foi alterado pelo Decreto nº 50.114, de 26 de janeiro de 1961, que mudou a sua denominação para Regulamento do Tráfego Marítimo (RTM). Em seguida, o Decreto nº 50.330, de 10 de março de 1961, alterou o art. 59 do agora denominado RTM que passou a ter a seguinte redação:

"Art. 59. Por Polícia Naval deverá ser entendida a atribuição dada às pessoas vinculadas permanente ou temporariamente à Diretoria de Portos e Costas, para fiscalizarem e exigirem a fiel observância e cumprimento das leis, regulamentos, disposições e ordens referentes a navegação e à Marinha Mercante ao que preceitua este regulamento inclusive estreita cooperação com as autoridades civis, e militares na repressão ao contrabando e ao descaminho" (BRASIL, 2009)

Todavia, o Decreto nº 5.798/1940, o Decreto nº 50.114/1961, assim como o Decreto nº 50.330/1961 foram revogados pelo Decreto nº 87.648, de 24 de setembro de 1982, que aprovou o novo Regulamento para o Tráfego Marítimo, no qual a Polícia Naval passou a ser definida no art. 269, caput e parágrafo 1º:

Art. 269 - A Polícia Naval é a atividade desenvolvida pela Marinha, através da Diretoria de Portos e Costas e sua rede funcional, com o propósito de fiscalizar e exigir a fiel observância e cumprimento das leis, regulamentos, disposições e ordens referentes à navegação, à poluição das águas e à Marinha Mercante, no que preceitua este Regulamento, inclusive a colaboração na repressão ao contrabando e ao descaminho.

Parágrafo único - Para o exercício da Policia Naval, a Marinha utilizará o pessoal civil e militar lotado nas Capitanias dos Portos, Delegacias, Agências e Capatazias, devidamente credenciados para este fim. (BRASIL, 2009)

Por último, o Decreto nº 511, de 27 de abril de 1992, alterou o Art. 269 e parágrafos do RTM, dando nova definição à atividade de Polícia Naval:

Art. 269. Polícia Naval é a atividade, de cunho administrativo, exercida pela rede funcional da DPC, que consiste na fiscalização do cumprimento deste Regulamento, normas decorrentes, Convenções e Acordos Internacionais sobre navegação, ratificados pelo Brasil, e da poluição das águas causadas por embarcações e terminais marítimos, fluviais e lacustres.

§ 1° À Polícia Naval não compete a execução de ações preventivas e repressivas da alçada de outros órgãos federais, sem prejuízos da colaboração eventual, quando solicitada. (BRASIL, 1994)

O que se observa é que a Polícia Naval era originalmente uma atividade de polícia administrativa, direcionada à fiscalização de normas reguladoras da navegação e da Marinha Mercante. Com a alteração do Decreto nº 50.330/1961, a atividade passou a incluir uma estreita cooperação com autoridades civis e militares para repressão ao contrabando e ao descaminho, o que, apesar da ambigüidade, revela uma atividade de polícia de segurança. Isto foi mantido no novo Regulamento para o Tráfego Marítimo aprovado pelo Decreto nº 87.648/1982. Com o Decreto nº 511/1992, excluiu-se do dispositivo a atividade de polícia de segurança pública, mas acrescentou-se à fiscalização da navegação a fiscalização da poluição das águas causadas por embarcações e terminais marítimos, fluviais e lacustres, o que constitui atividade típica de polícia administrativa.

Por último, foi editada a Lei nº 9.537/1997, Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional. Nessa lei, substituiu-se a expressão "Polícia Naval" por "Inspeção Naval", definida no art. 2º, VII:

"VII – Inspeção Naval - atividade que consiste na fiscalização desta lei, das normas e regulamentos dela decorrentes, e dos atos e resoluções internacionais, ratificados pelo Brasil, no que se refere exclusivamente à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores, e à prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas fixas ou suas instalações de apoio" (DUARTE NETO, 1998, p. 24)

Essa mudança de denominação de "Polícia Naval" para "Inspeção Naval" teve o propósito de evitar possível confusão entre as atividades previstas na Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário e a repressão ao contrabando ou aos furtos e assaltos praticados em embarcações nos portos, como ficou registrado na tramitação da Câmara. Todavia, a Inspeção Naval, tal como era com a Polícia Naval, refere-se, enfim, ao exercício do poder de polícia administrativa atribuído à Marinha. (DUARTE NETO, 1998. p. 24-27).

O que a lei atribui à Autoridade Marítima é uma competência geral de polícia administrativa especial, porque referida a um específico setor da Administração, na qual se inserem outras atribuições específicas, como a de lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo, do art. 70 da Lei nº 9.605/1998, ou as de fiscalizar navio, plataformas e suas instalações de apoio, e as cargas embarcadas, de natureza nociva ou perigosa, do art. 27 da Lei nº 9.966/2000, que dispõe sobre a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional.

Nada mudou com a edição da Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário. Como se viu, o Regulamento para o Tráfego Marítimo ressalvava que à Polícia Naval não compete a execução de ações preventivas e repressivas da alçada de outros órgãos federais, sem prejuízo da colaboração eventual, quando solicitada e, nos termos da atual Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, a Inspeção Naval se refere exclusivamente à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores, e à prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas fixas ou suas instalações de apoio.

De qualquer maneira, observa-se a preocupação do legislador em definir na Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário a atividade da "Autoridade Marítima" como uma atividade que não deve se confundir com a polícia de segurança, que incluiria, por exemplo, a repressão ao tráfico de drogas e armas, à pirataria, ao contrabando e ao descaminho.

2.3 Óbice ao exercício do poder de polícia do tráfego aquaviário

Para bem aplicar as noções desenvolvidas no Capítulo anterior, ao examinar as características e os limites do poder de polícia administrativa da autoridade marítima, é imprescindível pesquisar sua previsão legal. Desde a Constituição de 1988, as alterações do Regulamento para o Tráfego Marítimo, por Decreto, constituiriam ilegalidades. Tendo sido editada a Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, poder-se-ia aventar a hipótese de validação do Regulamento que, contudo, foi revogado por um Decreto que aprovou o novo Regulamento para o Tráfego Aquaviário.

O relevante na comparação entre o revogado Regulamento para o Tráfego Marítimo (RTM) e Lei de Segurança do Tráfego Marítimo (LESTA) está na técnica adotada. O RTM, em 29 de seus artigos, dispunha sobre infrações ao Regulamento, com previsão de sanções administrativas. Assim, por exemplo, o art. 45 estabelecia limites de multa para as infrações às regras do cerimonial Marítimo para a Marinha Mercante, o art. 57 previa multa para a existência de tripulante sem o competente atestado médico, o art. 64 previa multa pela falta de visto anual em Caderneta de Registro de aquaviário, o art. 137 previa multa e medida administrativa para inobservância de regras de quantidade e qualificação dos tripulantes das embarcações em tráfego, os art. 156, 157 e 258 previam multas para a inobservância de regras do Regulamento para transporte de carga, inflamáveis, explosivos e produtos agressivos, o art. 352 previa multas e medidas administrativas para inobservância de regras para habilitação de amadores e condição de embarcações de esporte e recreio. Era de esperar que a LESTA, editada no intuito de superar controvérsias quanto à recepção do RTM pela Constituição, adotasse as definições de infrações do tráfego aquaviário contidas no RTM, o que, entretanto, não aconteceu. A LESTA procurou apresentar-se com modernidade, reduzindo artigos, sintetizando disposições, mas, deixou de dispor sobre infrações à Lei.

Esse é o óbice ao exercício do poder de polícia da autoridade marítima para fiscalização do tráfego aquaviário e segurança da navegação. Limitou-se a LESTA a atribuir competência à Autoridade Marítima para que esta elaborasse normas para os mais diversos assuntos afetos ao tráfego aquaviário e à segurança da navegação, assim como a dispor sobre o procedimento administrativo de aplicação de penalidades, espécies de sanções, recursos e prazos. Mas a lei não definiu o que é infração do tráfego aquaviário, quais condutas a serem reprimidas e quais as penalidades aplicáveis.

A nosso ver, deveria haver dispositivo legal estabelecendo que constitui infração (isto é, fato típico passível de punição) o descumprimento das normas estabelecidas nesta Lei, no seu regulamento de execução ou nas provenientes da autoridade marítima, a fim de que fosse observado o princípio da reserva legal segundo o qual não há delito sem lei anterior que o defina, conforme determina o item XXXIX, do art. 5º, da Constituição Federal, muito embora o regulamento com certeza venha a estabelecer quais as infrações e suas respectivas punições. [...]

De qualquer forma, em havendo lei, em sentido formal e material, como a presente, as diversas questões, que carecem de regulamentação pelo Poder Executivo, tem amparo e suporte em lei ordinária, obedecido, assim, o princípio constitucional segundo o qual ninguém fará ou deixará de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Ademais, a Lei Complementar nº 69/91, já traz em si uma série de responsabilidades subsidiárias ao Ministério da Marinha, sendo que suas atribuições estão bem definidas nesta lei de segurança do tráfego aquaviário. (DUARTE NETO, 1998. p. 63)

Pode-se concordar com a primeira parte da citação anterior. Todavia, tendo em conta o debatido no primeiro Capítulo, não é possível concordar com a segunda parte da citação, ainda que assim também pareça ter entendido o legislador. O que se discute aqui é um poder de polícia com fundamento na supremacia geral do Estado, hipótese em que "o princípio da legalidade vige na sua mais ampla acepção; apenas a lei formal, editada pelo Legislativo poderá estabelecer infrações e sanções administrativas", conforme lição antes citada de Vitta (2003, p. 84).

A preocupação do legislador, todavia, foi com a denominação da atividade de polícia administrativa da Marinha. Entende-se que a alteração da denominação, sem que, essencialmente, se mudasse a atividade, visou evitar o uso da expressão "polícia" de indesejada conotação no emprego das Forças Armadas em tempo de paz, capaz de sugerir uma destinação da Marinha de Guerra como sucedâneo das forças de segurança pública, exercendo um papel de guarda costeira destinada a reprimir delitos no mar territorial.

Alterou-se a denominação da atividade de Polícia Naval para Inspeção Naval a fim de expurgar do conceito alguma conotação de polícia de segurança pública. Todavia, a atividade seria tipicamente uma atividade de polícia administrativa e é com apelo a essa natureza que se tem julgado possível exercê-la na ausência de norma legal expressa com fundamento num genérico "poder de polícia", que estaria implícito na simples atribuição de competência à Autoridade Marítima para que elabore normas para o tráfego aquaviário e segurança da navegação. Assim, é possível encontrar argumento segundo o qual, ao dispor o art. 3º da Lei nº 9.537/1997 que cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução da mesma lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana, a segurança da navegação e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, implicitamente atribuiu-se "poder de polícia" à autoridade marítima para estabelecer restrições a direitos individuais.

Essa forma de lidar com o problema confirma o acerto das observações que apontam para uma crise da noção de "poder de polícia". Não ocorre mais que o Estado só possa estabelecer restrições a direitos individuais para assegurar apenas a segurança, a salubridade e a moralidade. Não há mais uma noção autônoma de "poder de polícia" que justifique intervenções dos órgãos estatais na esfera de interesses do indivíduo. Qualquer limitação aos interesses particulares deve estar concretamente disposta na lei. Não se caracteriza mais este poder como intrínseco a algum órgão estatal, mas se reconhece como próprio do Estado. Trata-se da aplicação da coerção do Estado, atual ou potencial, sobre interesses individuais o que não a faz diferente da atividade estatal em geral e não justifica o uso da expressão "poder de polícia". "La ‘noción’ de ‘poder de policía’, pues, es innecesaria y además perjudicial porque da lugar a una serie de dificultades para su comprensión y aplicación, precisamente por su misma ambigüedad o indefinición." (GORDILLO, 2003, p. 12-16).

Em lugar de manter uma noção de "poder de polícia" sem um fundamento jurídico positivo, estabelecendo um princípio geral de coação e poder estatal, "polícia" ou "poder de polícia", ao qual logo se procurariam restrições nos direitos individuais, o correto, num estado de direito, submetido a um regime supranacional e internacional de direitos humanos, é fixar a premissa oposta, estabelecendo a supremacia dos direitos fundamentais, para, nos casos concretos e com expressa determinação legal, opor-lhes restrições com fundamento em eventual coerção estatal. Com essa concepção, nada se poderá resolver com base num "poder de polícia". Ocorre com a noção usual de "polícia" que a administração estaria autorizada a agir nas hipóteses em que a lei a autoriza de forma expressa, ou quando a lei lhe atribui faculdades discricionárias ou, ainda, quando uma lei não autoriza de forma expressa ou razoavelmente implícita, com fundamento em um poder de polícia genérico decorrente da ordem jurídica. Entretanto, essa última hipótese não é válida porque a ordem jurídica não confere à Administração nenhum poder de polícia genérico e indeterminado que a autorize a atuar na ausência de lei. Enfim, "la aministración solo puede actuar avanzando sobre la esfera jurídica individual cuando uma ley (em forma expresa o razonablemente implícita) la autoriza, em forma reglada o discrecional, a hacerlo.". Pois, não se declara, claramente, que a "polícia" ou o "poder de polícia" autoriza atos administrativos sine legem. Mas, na prática administrativa, se admite que assim seja. Pode ocorrer inversão do procedimento, exercendo-se primeiro um "poder de polícia" para depois, complementarmente, agregar-se alguma norma que, com maior ou menor clareza, possibilite a restrição de um direito individual. (GORDILLO, 2003, p. 20-24)

Pois, no caso da Autoridade Marítima, foi o Regulamento de Segurança do Tráfego Aquaviário em Águas sob Jurisdição Nacional (RLESTA), aprovado pelo Decreto nº 2.596, de 18 de maio de 1998, que dispôs sobre infrações ao tráfego aquaviário e sobre as penalidades correspondentes.

Dispôs o Regulamento para o Tráfego Aquaviário, em seu art. 7º:

Art. 7º - Constitui infração às regras do tráfego aquaviário a inobservância de qualquer preceito deste Regulamento, de normas complementares emitidas pela Autoridade Marítima e de ato ou resolução internacional ratificado pelo Brasil, sendo o infrator sujeito às penalidades indicadas em cada artigo.

Entretanto, essa norma, extremamente vaga, de natureza administrativa, não transmite poder de polícia, segundo o que foi antes examinado, porque não é lei e não encontra amparo em norma legal, isto é, não tem sustentação no bloco de legalidade, o que é imprescindível, segundo lição de Grau (1993).

Recentemente, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o Relator da Apelação Cível nº 2006.70.08.001267-3/PR, confirmou sentença invalidando autuação e multas aplicadas pela Autoridade Marítima, com base na Lei nº 9.537/97 e no Decreto nº 2.596/98, porque a lei não tipificou as condutas ilícitas, tratando apenas das penalidades a serem aplicadas e do procedimento administrativo para impô-las. Entendeu o Relator que:

Ainda que a lei, na forma dos arts. 3º e 4º, atribua à autoridade marítima competência para promover a implementação e a execução da lei - a fim de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação -, e lhe confira atribuições para elaborar normas para habilitação e cadastro dos aquaviários e amadores, tráfego e permanência das embarcações nas águas sob jurisdição nacional, e realização de inspeções navais e vistorias, entre outras atribuições, não há, como bem referido pelo Julgador a quo, um mínimo de normatividade das infrações na lei a fim de autorizar o administrador a completar os seus termos da determinação das condutas proibidas e na escolha das penalidades aplicadas.

Só com a edição do Regulamento de Segurança do Tráfego Aquaviário, aprovado pelo Decreto nº 2596/98, houve a tipificação das infrações e as penalidades correspondentes, na forma do art. 11 e seguintes. Nessa medida, o decreto em questão preencheu o vácuo legislativo de forma ilegal, inovando na ordem jurídica, vez que somente a lei pode criar sanções administrativas e pecuniárias, como já assentado na jurisprudência pátria, sob pena de violação ao princípio da legalidade. (BRASIL. TRF4, AC nº 2006.70.08.001267-3/PR. Relator Des. Federal EDGARD ANTÔNIO LIPPMANN JÚNIOR. Julgamento 24/09/2009. Publicado DE 14/10/2008)

Com tal fundamento resultou a decisão a seguir reproduzida.

INFRAÇÕES. TRÁFEGO AQUAVIÁRIO. DECRETO Nº 2596/98. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.

Não subsistem as multas aplicadas à Parte Autora com fundamento no Regulamento de Segurança do Tráfego Aquaviário, aprovado pelo Decreto nº 2596/98, por ofensa ao princípio da legalidade.

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao apelo e à remessa oficial, tida por feita, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. (BRASIL. TRF4, AC nº 2006.70.08.001267-3/PR. Relator Des. Federal EDGARD ANTÔNIO LIPPMANN JÚNIOR. Julgamento 24/09/2009. Publicado DE 14/10/2008)

Para esta concepção tem sido oposto que, em sociedades dinâmicas, o legislador é incapaz de prever todas as situações de fato, obrigando-se a deixar espaço para atuação do Juiz ou do Administrador que poderia, não só subsumir fatos a conceitos legais, mas valorá-los, agindo semelhantemente ao legislador.

Nessa tese, o decreto regulamentar também teria a finalidade de completar o sentido da norma jurídica incompleta para esclarecer seus dispositivos. O legislador não delegaria a competência política, mas a competência técnica para formulação das normas. Nisso estaria o fenômeno da deslegalização segundo o qual a competência para regular algumas matérias complexas se desloca da lei para outras fontes normativas. Não tendo conhecimento técnico nem aproximação com os fatos a regular, o legislador faz a norma com generalidade suficiente para abrigar todas as situações.

Então, como o objeto da Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário é salvaguarda da vida humana no mar, a segurança da navegação e a prevenção da poluição por parte de embarcações, todo ato regulamentar que restringisse direitos e liberdades individuais com esse escopo seria um ato legal, uma vez observados os limites legais para eventuais sanções. E de limites legais para aplicação de penalidade a LESTA tratou.

O fundamento legal para que fossem tipificadas infrações no Decreto nº 2596/1998, que aprovou o Regulamento de Segurança para o Tráfego Aquaviário, estaria no art. 3º da LESTA, segundo o qual cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução desta Lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação, no mar aberto e hidrovias interiores, e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio.

Na mesma tese, a delegação do art. 4º da LESTA que atribuiu à Autoridade Marítima competência para elaboração de normas para segurança da navegação e para o tráfego marítimo, não é política, mas estritamente técnica. Há, pois, a possibilidade de um entendimento de que o legislador quis elaborar uma Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, com princípios e regras gerais, atento à dinâmica da navegação, deixando as particularidades para o Regulamento e para a normatização administrativa, evitando que uma desatualização precoce prejudicasse a adoção de medidas necessárias para alcançar o escopo da lei.

Assim, a LESTA conteria normas principiológicas e teria atribuído à Autoridade Marítima a disciplina dos princípios enunciados. Registrou-se em Relatório do Projeto de Lei nº 4.259/1993 que foi evitado proliferação de vinculações das penalidades com diversas infrações, transferindo-se essa incumbência ao Poder Executivo "de maneira a facilitar eventuais ajustes que se entendam necessários para abrandar ou enrijecer o tratamento dispensado aos transgressores" (BRASIL, 1993).

Todavia, essa tese não se ajusta às conclusões do primeiro capítulo desde trabalho, acerca dos fundamentos, características e limites do poder de polícia. Admitir-se uma amplitude tal da norma que permita ao Administrador tipificar condutas e estabelecer penalidades, restringindo direitos e liberdades individuais segundo princípios gerais da lei, equivale a admitir-se para fundamento do poder de polícia o vago princípio da predominância do interesse público sobre o particular e a existência de um poder de polícia genérico.

Ademais, é controverso o entendimento de que o art. 3º da LESTA, dispondo que cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução desta Lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação, autoriza a Autoridade Marítima a tipificar condutas e estabelecer penalidades, porque o que está ordenado é a implementação e a execução da lei. Se a lei não contém norma sobre infração e penalidade, não há o que implementar e executar. Por isso, é de se entender que a Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário atribuiu à Autoridade Marítima competências para elaborar normas sobre tráfego aquaviário, segurança da navegação e prevenção da poluição por parte de embarcações, mas não lhe atribuiu poder de polícia administrativa para exigir o cumprimento das normas que edite.

2.4 Poder de polícia de segurança da Autoridade Marítima

Já com a polícia de segurança atribuída à Marinha não se observa o mesmo óbice que impede o exercício regular da atividade de polícia administrativa. Há previsão do exercício do poder de polícia por parte da Autoridade Marítima na Lei Complementar, na Lei ordinária e nos Decretos que regulamentaram a Patrulha Costeira, hoje denominada Patrulha Naval, ainda que se trate de competência concorrente com competência da Polícia Federal.

Ocorre que a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, atribuída à Marinha pela Lei Complementar que trata da organização, do preparo e do emprego das Forças Armadas, corresponde a uma atividade de polícia de segurança pública ostensiva. Nesse ponto, há concorrência de competências entre Marinha e a Polícia Federal, em que pese ter sido alterada a denominação da Polícia Naval, substituída por Inspeção Naval, e os esforços para manter a Lei nº 9.537/1997, Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, na esfera da polícia administrativa. Ainda que por outro instrumento, mantém-se a Autoridade Marítima competente para atuar na repressão de delitos, no mar a e nas águas interiores, autorizada a realizar tarefa que, na competência da Polícia Federal, é intitulada de Polícia Marítima.

Dispõe a Constituição Federal:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

[...]

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

[...]

III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;

[...].

Assim, a Polícia Marítima é uma atividade de competência do Departamento de Polícia Federal (DPF). Essa atividade é exercida, em âmbito nacional, pela Divisão de Polícia Marítima, Aeroportuária e de Fronteiras da (DPMAF) do DPF e, regionalmente, por Unidades de Polícia Marítima, com atuação nos portos e mar territorial brasileiro. Tem por objetivo a prevenção e a repressão aos ilícitos praticados a bordo, contra ou em relação a embarcações na costa brasileira, e a fiscalização do fluxo migratório no Brasil, sem prejuízo da prevenção e repressão aos demais ilícitos de competência do DPF, podendo estender-se além do limite territorial, ressalvadas as normas específicas da Marinha do Brasil. Também compreende providências e medidas necessárias à segurança de portos, terminais e vias navegáveis que não constituam competências específicas das Polícias Civil ou Militar ou das Forças Armadas [2].

As tarefas de segurança pública nos portos e no mar territorial brasileiro são atribuições da Polícia Federal que constituem a Polícia Marítima. Então, a Polícia Marítima engloba atividades de polícia de segurança pública, com o policiamento ostensivo, preventivo, e de polícia judiciária, porque é atribuição do DPF instaurar os procedimentos investigatórios para apurar a prática de delitos federais.

Todavia, o DPF autolimitou sua atividade de polícia marítima aos portos e ao mar territorial. Assim, restam os demais espaços marítimos jurisdicionais brasileiros, devendo-se ter em conta a existência de áreas afastadas dos portos, dentro do mar territorial, para alcance das quais não está aparelhada a Polícia Marítima. Nesses espaços, é perceptível que só a Força Naval poderá atuar devendo-se interrogar se a ela que não está atribuído poder de polícia de mesma natureza do atribuído à Polícia Federal na área marítima.

Cabe a advertência de que as atribuições da Policia Marítima não se confundem com as atribuições cometidas à Autoridade Marítima pela Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, relacionadas, exclusivamente, à salvaguarda da vida humana, à segurança da navegação e à prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas fixas ou suas instalações de apoio. A Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, se contivesse hipóteses de infrações e sanções, legitimaria o exercício de uma polícia administrativa do tráfego aquaviário, mas não o fez.

Entretanto, a Lei Complementar nº 97/1999, em seu art. 17, inciso IV, atribuiu competência à Autoridade Marítima para implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessário, em razão de competências específicas. Esta última é uma atribuição de poder de polícia com outra natureza, pois se trata de polícia de segurança, de mesma natureza daquela que está atribuída à Polícia Federal nos portos e no mar territorial.

Para execução dessa atribuição de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, conta a Autoridade Marítima com o "Serviço de Patrulha Costeira" que tem entre seus objetivos os de colaborar com a fiscalização da pesca e com a repressão ao contrabando e ao tráfico de drogas, como dispõe o art. 1º da Lei 2.419, de 10 de fevereiro de 1955:

Art. 1º É instituído o Serviço de Patrulha Costeira com os seguintes objetivos:

a) defender, em colaboração com o Serviço de Caça e Pesca, do Ministério da Agricultura, a fauna marítima, a flora aquática e fiscalizar a pesca, no litoral brasileiro;

b) prestar assistência médica, profilática e farmacêutica, aos habitantes da zonas litorâneas desprovidas de recursos;

[...]

f) auxiliar os serviços de repressão ao contrabando e ao comércio ilícito de tóxicos;

[...]

O Decreto nº 64.063, de 05 de fevereiro de 1969, regulamentou a Lei 2.419/1955, inovando quanto a uma tarefa de "assegurar o cumprimento da Legislação Brasileira no mar territorial, zona contígua e plataforma submarina", conforme art. 2ª, alínea a.

Art. 2º Às Fôrças e Navios empregados no Serviço de Patrulha Costeira serão atribuídas as seguintes tarefas:

a) patrulhar as áreas dos Distritos Navais em que estiverem navegando, de maneira a assegurar o cumprimento da Legislação Brasileira no mar territorial, zona contígua e plataforma submarina, respeitados os acôrdos internacionais ratificados pelo Brasil;

[...]

A seguir, o Decreto nº 5.129, de 16 de julho de 2004, alterou a denominação da Patrulha Costeira para "Patrulha Naval", estabeleceu regras de abordagem e de apresamento de embarcações, bem como de uso de força, com tiros de advertência e diretos, contra embarcações infratoras, além de dispor que a Patrulha Naval tem a finalidade de "implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, em águas jurisdicionais brasileiras, na Plataforma Continental brasileira e no alto-mar", conforme Parágrafo único, do Art. 1º:

Art. 1° A Patrulha Costeira, instituída pela Lei nº 2.419, de 10 de fevereiro de 1955, passa a ser denominada Patrulha Naval.

Parágrafo único. A Patrulha Naval, sob a responsabilidade do Comando da Marinha, tem a finalidade de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, em águas jurisdicionais brasileiras, na Plataforma Continental brasileira e no alto-mar, respeitados os tratados, convenções e atos internacionais ratificados pelo Brasil.

Pode-se supor que é irregular um Decreto atribuir à Marinha um poder de polícia para abordar, visitar, inspecionar e apresar embarcações, assim como para usar a força, até o afundamento, contra embarcações infratoras. Mas deve-se recordar que o poder de polícia para execução de tais tarefas tem fundamento expresso na Lei Complementar.

Dispondo a Lei Complementar nº 97/1999, art. 17, inciso IV, sem remeter à Lei Ordinária, que cabe à Marinha implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual quando se fizer necessário, em razão de competências específicas e dispondo a Lei nº 2.419/1955 sobre a Patrulha Costeira, resulta que o Decreto nº 5.129/2004, apenas dá fiel execução à Lei. O fundamento do poder de polícia da Patrulha Naval está na Lei Complementar.

Não aproveitaria essa conclusão à tese de que caberia esse mesmo fundamento legal à polícia administrativa preconizada no Regulamento de Segurança do Tráfego Aquaviário. Diverso do comentado na seção anterior, aqui há norma legal atribuindo competência à Autoridade Marítima para exercer a atividade de polícia, determinando-lhe a implementação e a fiscalização de leis e regulamentos, em águas jurisdicionais brasileiras, na Plataforma Continental brasileira e no alto-mar. Não se está aqui falando de uma fórmula genérica e principiológica da lei, como se dá com o Regulamento para a segurança do Tráfego Aquaviário, mas de norma concreta a que há de se referir o ato administrativo. A motivação de uma abordagem de embarcações em alto mar será sempre a prática de algum ilícito tipificado em leis ou regulamentos com base legal. Então, constatada pela Patrulha Naval uma transgressão a lei ou a regulamento, por parte de embarcações, no mar, ou em águas interiores, incide a norma da Lei Complementar que o Decreto nº 5.129/2004 repete, legitimando e obrigando à atuação da Patrulha Naval, função que, inclusive, não pode deixar de ser exercida. Por outro lado, o amparo direto à intervenção está na Lei que tipifica e sanciona o delito ou a irregularidade constatada.

Isto é, enquanto a LESTA, no seu art. 3º, atribui à autoridade marítima competência para promover a implementação e a execução da própria LESTA, que, por sua vez, não estabelece infrações e sanções a serem aplicadas aos particulares, disso resultando, tecnicamente, a inexistência do poder de polícia administrativa do tráfego aquaviário, a Lei Complementar nº 97/1999 atribuiu à Autoridade Marítima a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos do Estado, no mar e nas águas interiores, o que se traduz em poder de polícia de segurança, para aplicar as sanções das leis eventualmente inobservadas. Portanto, com o comando genérico da Lei Complementar é possível a Autoridade Marítima abordar e apresar embarcações e tripulações dedicadas a prática de contrabando ou tráfico de entorpecentes, por exemplo. Mas, esse mesmo comando da Lei Complementar não fundamenta o exercício da polícia administrativa de segurança do tráfego aquaviário porque não há lei tipificando eventuais condutas contrárias às normas de segurança do tráfego aquaviário editadas pela Autoridade Marítima.

Ainda que, em eventual apresamento de embarcação pela Patrulha Naval em conseqüência da prática de ilícito, o infrator deva ser apresentado às autoridades competentes, Polícia Federal, Receita Federal ou IBAMA, permanece o poder de polícia da Autoridade Marítima para reprimir o ilícito.

É que, como se viu, incumbe à Autoridade Marítima implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas. Deste modo, é válido concluir que o poder de polícia da Autoridade Marítima na Patrulha Naval tem a mesma natureza daquele atribuído à Polícia Federal no exercício da Polícia Marítima, exceto quanto à função de polícia judiciária. Isto é, a Autoridade Marítima tem poder de polícia de segurança no mar e nas águas interiores, aí exercendo, como se viu no capítulo inicial, uma função administrativa, o que lhe impõe a interferência para repressão de ilícitos constatados.

Ainda que o fundamento do poder de polícia da Autoridade Marítima para o exercício da Patrulha Naval esteja nas leis e regulamentos do Estado, cujo cumprimento lhe compete fiscalizar e exigir na área de atuação, percebe-se que a finalidade da norma que lhe atribuiu esta competência é a segurança coletiva, função essencial do Estado como ordem normativa que regula o mútuo comportamento dos indivíduos, cogitando-se de segurança do Estado na comunidade internacional e de segurança individual nos limites do próprio Estado, buscando proteger a comunidade nacional das atividades prejudicais à ordem social.

O "poder de polícia" de que, ultimamente, se fala em conceder às Forças Armadas tem a mesma natureza daquele atribuído a outros setores da Administração Pública. É como acontece com a fiscalização sanitária, de pesos e medidas, de tráfego aéreo, tráfego marítimo, tráfego rodoviário. As Forças Armadas sempre detiveram o poder de limitar direitos e restringir liberdades, na defesa interna, em garantia da lei e da ordem, por requisição de qualquer dos Poderes do Estado. Na atual Constituição as Forças Armadas encontram respaldo para atuar na defesa e garantia dos poderes constitucionais. "Com efeito, na defesa interna as Forças Armadas sempre puderam e podem limitar a liberdade/direito de qualquer pessoa desde que necessário à ordem pública." (AMARAL, 2002).

Deste modo, atendida a previsão legal, não é inusitado o exercício de atividades de polícia pelas Forças Armadas e nem seria necessário intitular as Forças singulares de "Autoridade Aeronáutica" ou de "Autoridade Marítima" para o exercício de tais atividades. Isto é, deve-se concordar que se aplica ao exercício do poder de polícia de segurança da Marinha a constatação a seguir reproduzida:

A expressão leiga "dar poder de polícia ao Exército", ao que parece, se refere ao poder de prender alguém (dar voz de prisão). Sucede que esse poder nem mesmo a polícia judiciária detém hoje em dia. É que, o art. 5º, LXI da CF/88 determina que só juiz e mediante ordem escrita e fundamentada, pode prender alguém (ou mandar prender). A polícia, qualquer delas não prende, apenas cumpre ordem judicial de prender. Não sendo assim, só mesmo em flagrante a polícia pode prender alguém, essa prisão é deferida, também, ao cidadão comum. Nem uma outra autoridade tem esse poder de polícia estremo, ou seja, prender alguém. Todavia, a prisão em flagrante delito (ié, no ato do crime, ou logo após o seu cometimento/perseguição) sempre foi deferida a todos os cidadãos, como direito/faculdade, sendo dever legalmente imposto às autoridades da segurança pública (todos os segmentos policiais: civis, PM, federais, Forças Armadas). Esses últimos no exercício do poder-dever de garantir a lei e a ordem desde que provocadas pelos poderes constitucionais (p. ex. o Poder Executivo federal/Presidente da República).( AMARAL, 2002,)


CONCLUSÃO

Como foi possível constatar, a expressão "polícia" origina-se da palavra grega politeia. Remotamente significava a boa constituição, o bom ordenamento do Estado. A concepção alterou-se e o conceito tornou-se mais restrito a partir do século XIX. Nos dias atuais policia é entendida como força organizada do meio social para sua própria proteção. Na doutrina nacional, pelo menos até a década de sessenta, conceituava-se polícia destacando-se sua finalidade de manutenção da ordem pública e, atualmente, ela tem sido definida como função administrativa por meio da qual o Estado aplica restrições e condicionamentos, legalmente previstos, ao exercício de direitos e liberdades dos cidadãos, para garantir a ordem social. Essa noção de policia coincide com a noção de segurança coletiva desenvolvida por Kelsen para quem o Estado se apresenta como uma ordem normativa que regula o mútuo comportamento dos indivíduos. E, assim, pode-se adotar a orientação de que o que se chama de polícia é o regime de Estado que tem por objetivo fazer reinar a ordem e a paz pela aplicação preventiva do Direito. Em sentido amplo, a regra de polícia seria regra de direito.

Dentre suas classificações, a polícia pode ser classificada como polícia administrativa, que é preventiva, e polícia judiciária, que é repressiva. Ainda ocorre outra classificação que distingue policia administrativa e polícia de segurança. A polícia administrativa é relacionada aos vários ramos da Administração e a polícia de segurança é um ramo da polícia administrativa que tem por objeto a tutela de direitos individuais em oposição à proteção de bens.

Polícia é uma atividade e poder de polícia é o princípio jurídico que informa essa atividade. Polícia é um conjunto de regras impostas pela autoridade pública aos cidadãos e poder de polícia é o poder de fazer cumprir essas regras. Tem se definido poder de polícia como faculdade da Administração de restringir direitos individuais em benefício do interesse público. Mas se contesta essa concepção tendo como inadmissível a supremacia do interesse publico sobre os direitos individuais. Do confronto, resulta o esclarecimento de que o Estado só pode agir quando autorizado pela lei e de que, no conflito de interesses públicos e privados, o que cabe é a aplicação do princípio da proporcionalidade, sem primazia incondicional do interesse público. Assim, a concepção de que o fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, deve ser reavaliada para destacar que o seu fundamento, definitivamente, está no bloco de legalidade.

Nos termos da Lei Complementar nº 97/99, "Autoridade Marítima" é o conjunto de competências atribuídas ao Comando da Marinha para, dentre outras tarefas, exercer a polícia administrativa do tráfego aquaviário, com a finalidade de salvaguardar a vida humana, garantir segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores e de prevenir a poluição ambientalpor parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio. Constatou-se que o poder de polícia da autoridade marítima não tem fundamento, características e limites específicos, mas aqueles do poder de polícia em geral, encontráveis nas leis que o fundamentam. Verificou-se que o poder de policia administrativa da autoridade marítima para fiscalização do tráfego aquaviário teria sua origem na Lei Complementar e estaria regulada na Lei nº 9.537/1997, que trata da segurança do tráfego aquaviário.

Todavia, também se verificou que a Lei nº 9.537/1997 não dispôs sobre infrações às normas do tráfego aquaviário e tampouco sobre penalidades para as infrações cometidas. Esse é o óbice ao exercício do poder de polícia da autoridade marítima para fiscalização do tráfego aquaviário e segurança da navegação, que foi pretendido suprir com a edição do Decreto regulamentador. Há argumento de que o decreto poderia tipificar infrações com fundamento em comando genérico do art. 3º da lei, segundo o qual cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução da lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana, a segurança da navegação e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio. Entretanto, com sustento nas noções inicialmente examinadas, concluiu-se que o fundamento do poder polícia tem de estar no bloco de legalidade. Admitir como fundamento do poder de polícia um comando legal vago, genérico, principiológico, é o mesmo que admitir que o fundamento do poder polícia é o vago "interesse público" cuja supremacia se tem repelido como fundamento do poder de polícia. Por isso, concluiu-se que não há poder de polícia administrativo da autoridade marítima enquanto não ocorrer a edição de lei com a tipificação de infrações e a previsão de multas aplicáveis.

De outra parte, constatou-se que embora as funções de polícia marítima configurem uma atividade de segurança atribuída constitucionalmente à Polícia Federal, há competência concorrente da Autoridade Marítima e da Polícia Federal, restando à Marinha exercer a polícia de segurança nas áreas mais afastadas não alcançadas pela Polícia Marítima. Essa atividade, diferente da polícia administrativa antes comentada, conta com fundamento na Lei Complementar nº 97/99 que atribui à autoridade marítima a função de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos no mar e águas interiores. Deste modo, constatada uma transgressão à lei ou ao regulamento, por parte de embarcações, no mar, ou em águas interiores, incide a norma da Lei Complementar legitimando o poder de polícia de segurança da autoridade marítima.

De tudo, resulta que o poder de polícia da Autoridade Marítima é um poder de polícia de segurança que se exerce no mar e nas águas interiores, com fundamento na Lei Complementar nº 97/1999. Já o poder de polícia administrativa da autoridade marítima para fiscalização do tráfego aquaviário inexiste, no rigor técnico da expressão, carecendo da edição de lei que tipifique as infrações e estabeleça as específicas penalidades a serem aplicadas.


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NOTAS

[1] Expressão utilizada pela Lei nº 9.537/1997 e adotada a partir dela, segundo a qual, no art. 39: "A autoridade marítima é exercida pelo Ministério da Marinha" .

[2] Portaria nº 2, de 5 de agosto de 1999, do Departamento de Policia Federal, do Ministério da Justiça, que disciplina a organização e o funcionamento das atividades dos Núcleos Especiais de Polícia Marítima (NEPOM)


Autor

  • Darcy Fernando Brum

    Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Especialização em Politica pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Especialização em Direito Publico pela ESMAFE. Pos Graduando em Direito Ambiental pela UFPel. Advogado em São Lourenço do Sul/RS.<br><br>

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRUM, Darcy Fernando. O poder de polícia da autoridade marítima brasileira. Fundamento, características e limites. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2600, 14 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17177. Acesso em: 19 abr. 2024.