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Pensão militar: a legalidade da concessão às filhas maiores de 21 anos e capazes e a controvérsia da ordem de prioridades para seu deferimento

Pensão militar: a legalidade da concessão às filhas maiores de 21 anos e capazes e a controvérsia da ordem de prioridades para seu deferimento

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É legal a manutenção do benefício às filhas de militares que aderiram à regra de transição criada pela Medida Provisória nº 2.215-10/01.

RESUMO: A pensão militar conta com especificidades inerentes ao regime especial destinado aos membros das forças armadas, diferindo substancialmente dos outros regimes previdenciários do Brasil. O objetivo do presente estudo é realizar uma análise descritiva dos aspectos inerentes à concessão da pensão militar às filhas maiores de 21 anos e capazes bem como sua ordem de vocação. Em que pese a disposição sobre a igualdade entre os sexos inaugurada pela Constituição de 1988, defende-se, com base na evolução histórica da estrutura familiar brasileira e da legislação aplicável à espécie, a legalidade e constitucionalidade da manutenção do benefício às filhas de militares que aderiram à regra de transição criada pela Medida Provisória 2.215-10/01, haja vista a necessidade da supressão gradual de direitos sociais. O marco teórico deste trabalho é demonstrar, através de argumentos sólidos, o entendimento de que as filhas maiores e capazes dos militares têm pleno direito à percepção da pensão vitalícia, bem como à habilitação desde a morte do militar, momento em que devem passar a receber suas cotas-partes de maneira independente, mesmo em concorrência com suas genitoras, dando-se correta interpretação ao artigo 9º, §3º da Lei Lei 3.765/60.

PALAVRAS-CHAVE: pensão militar, filhas, maiores, capazes, rateio, cotas-partes.

SUMÁRIO: Introdução; 1.Abordagem constitucional; 2.Evolução da arquitetura familiar e a pensão militar no âmbito do direito brasileiro contemporâneo; 3.Dispositivos legais aplicáveis à pensão militar: evolução histórico-dogmática; 4.Análise da ordem de vocação dos beneficiários da pensão militar; 5.Legalidade da concessão ab initio da cota-parte das filhas maiores e capazes; Considerações finais; Referências.


INTRODUÇÃO

Existem no Brasil dois sistemas de previdência: o público e o privado. Enquanto a previdência privada é um sistema complementar e facultativo de seguro, o sistema público caracteriza-se por ser mantido por pessoa jurídica de direito público, tem natureza institucional, é de filiação obrigatória e suas contribuições têm natureza tributária. O sistema público pode ser destinado aos servidores públicos e mantido pelos entes políticos da Federação, ou aos trabalhadores da iniciativa privada e administrado por uma autarquia federal – atualmente o Instituto Nacional do Seguro Social.

O sistema público de previdência subdivide-se no Regime Geral de Previdência Social, disciplinado nos arts. 201 e 202 da Constituição Federal, e no Regime Previdenciário Especial dos servidores públicos Civis e Militares, descrito no art. 40 da Constituição.

Segundo CARVALHO FILHO (2009), a pensão é o pagamento efetuado pelo Estado à família do servidor em atividade ou aposentado em virtude de seu falecimento. A finalidade da pensão é amparar e dar especial proteção à família do funcionário, devido à morte, desaparecimento ou ausência, devendo-se, todavia, observar a evolução do instituto "família" na sociedade contemporânea.

A pensão militar conta com especificidades inerentes ao regime especial destinado aos membros das forças armadas, conforme disposto no art. 142 e parágrafos da Constituição, que dispensam tratamento específico sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.

Dentre tais prerrogativas, conclui-se de modo claro que, no contexto da disciplina específica, também se insere a questão das pensões por morte dos militares, que possuem regramento diferenciado e atípico se comparadas às pensões do Regime Especial do Funcionalismo Civil da União.

Observando-se as leis pertinentes ao assunto e a própria Constituição Federal constata-se a ausência a qualquer referência a sistema ou a regime previdenciário dos militares federais. Portanto, até a presente data, não há regime previdenciário próprio dos militares estabelecido em lei, de forma que é imprecisa a referência a equilíbrio do regime previdenciário dos militares federais. A remuneração dos militares na inatividade, dos reformados e os da reserva, é total e integralmente custeada pelo Tesouro Nacional.

Diante de tais peculiaridades, propõe-se um exame detalhado sobre a legislação aplicada à pensão militar, com enfoque na legalidade da regra de transição estabelecida pela Medida Provisória 2.215-10 de 2001, que manteve o pensionamento vitalício para as filhas maiores e capazes dos militares, bem como a questão da incorporação da cota-parte, a que fazem jus, à parte destinada às suas genitoras quando estas também forem beneficiárias da pensão militar.

O objetivo do presente estudo é realizar uma análise descritiva dos aspectos inerentes à concessão da pensão militar às filhas maiores de 21 anos e capazes bem como sua ordem de vocação, matérias que foram sensivelmente alteradas nos últimos anos, principalmente após o advento da Constituição de 1988, e têm levado a debates controvertidos quanto a sua constitucionalidade e intepretação.


2. ABORDAGEM CONSTITUCIONAL

Após o advento da Constituição de 1988, tornou-se controversa a concessão da pensão militar às filhas maiores de 21 anos e capazes, sob o argumento de afronta ao princípio da igualdade entre homens e mulheres, expresso no art. 5º, I do Diploma Maior.

Em que pese o comando constitucional formador do instituto da igualdade formal - consagrada no liberalismo clássico - deve-se aqui buscar o alcance da igualdade material, presente em diversos diplomas infraconstitucionais (v.g. art. 100, Inciso I; CPC) e na própria Constituição, tendo em vista que a igualdade material tem como objetivo orientar as leis, para que tratem igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade.

O próprio constituinte mitiga o princípio da igualdade estabelecendo desigualdades entre homens e mulheres em direitos e obrigações, destacando-se as seguintes diferenciações: a) art. 5º, L (condições às presidiárias para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação; b) art. 7º, XVIII e XIX (licença-maternidade e licença-paternidade); c) art. 7º, XX (dispõe sobre a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei); d) art. 143, §§1º e 2º (serviço militar obrigatório); e) arts. 201, §7º, I e II; 201, §8º; art. 9º da EC n. 20/98; art. 40 da CF/88; art. 8º da EC n. 20/98; arts. 2º e 6º da EC n. 41/03 – Reforma da Previdência – dentre outros (regras sobre aposentadoria).

Diante de tais hipóteses, o cerne da questão consiste em definir até que ponto a desigualdade não gera inconstitucionalidade.

Conforme demonstram ARAÚJO e NUNES JÚNIOR (2006), "... o constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender, mereceriam tratamento diverso... buscando concretizar, uma igualdade de oportunidades com os indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições" [01]. Enfocando tais grupos a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação, chamadas discriminações positivas ou affirmative actions, presentes em dispositivos constitucionais e infraconstitucionais.

Exemplificando a hipossuficiência histórica da mulher, apontamos seu enquadramento no mercado de trabalho brasileiro. É sabido que as mulheres encontraram muitas dificuldades no estabelecimento de sua autonomia profissional, recebendo salários muito inferiores aos dos homens, exercendo em sua grande maioria atividades de média e baixa qualificação. Além dessas dificuldades, ainda enfrentam muitas vezes a dupla jornada de trabalho ou trabalho redobrado (no emprego e no lar).

Além de receberem baixos salários e de exercerem a dupla jornada de trabalho, as mulheres foram e ainda são vítimas de preconceitos (por exemplo, o da chamada "inferioridade" do sexo feminino em relação ao masculino) e abusos (por exemplo, o assédio sexual no trabalho) que mostram claramente o tratamento desigual a que estavam sujeitas. Ainda hoje, apesar de grandes conquistas, o caráter patriarcal e machista da sociedade brasileira está na base da marginalização profissional da mulher [02].

Cabe aqui ressaltar, como mais um exemplo da dificuldade de inserção da mulher no mercado de trabalho, a indicação de Ellen Gracie Northfleet ao STF. Tomando posse em 14.12.2000, foi a primeira mulher a integrar a Suprema Corte brasileira, após quase 200 anos desde sua instituição (como Casa da Suplicação do Brasil, ainda na fase colonial em 10.05.1808, e Supremo Tribunal de Justiça, em 09.01.1829).

Tais fatores históricos, conjugados a quase 20 anos de governo ditatorial militar no Brasil justificam a constitucionalidade da concessão de pensão vitalícia às filhas maiores e capazes de militares, que, diferentemente dos outros indivíduos, ainda sofreram culturalmente e socialmente no seio familiar, pressões, oriundas dos resquícios da ditadura e repressão à sua independência e inserção no mercado de trabalho.

Por sua vez, o instituto de previdência e assistência social possui caratér de direito social, amparado pelo art. 6º da Constituição, e reconhecido como direito fundamental, sua supressão arbitrária ou de seus benefícios, em qualquer aspecto, acarretaria em ilegalidade frente ao princípio da vedação ao retrocesso social [03].

O conteúdo negativo, subjacente a qualquer princípio - que, no caso, prevalece sobre o positivo - refere-se à imposição ao legislador de, ao elaborar os atos normativos, respeitar a não-supressão ou a não-redução, pelo menos de modo desproporcional ou irrazoável, do grau de densidade normativa que os direitos fundamentais sociais já tenham alcançado por meio da legislação infraconstitucional, isto é, por meio da legislação concretizadora dos direitos fundamentais sociais insertos na Constituição.

Afirma-se, com efeito, que o princípio da proibição de retrocesso social é um princípio constitucional, com caráter retrospectivo, na medida em que tem por escopo a preservação de um estado de coisas já conquistado contra a sua restrição ou supressão arbitrárias.

Em verdade, a proibição do retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional (como o direito à previdência social), impedindo, em conseqüência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses — como observado na espécie — em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais [04].

Sendo assim, é oportuno que se entenda que a proteção especial conferida às filhas de militares através da pensão militar, constitui, sem dúvida, um direito social garantido pelo Estado, de modo que sua supressão deve operar-se de modo gradativo, e não arbitrário, de modo a não violar o núcleo essencial dos direitos constitucionalmente assegurados.

Em que pese os divergentes julgados da justiça federal, em primeira e segunda instâncias, a administração pública, através do Tribunal de Contas da União, já se pronunciou nos Acórdãos nº 797/2005 e nº 2.886/2006 acerca da constitucionalidade e legalidade da concessão [05].

Além do TCU, o Superior Tribunal de Justiça, teve a oportunidade de manifestar-se sobre o tema, opinando, majoritariamente, pela constitucionalidade da concessão do benefício [06].

Segundo etendimento do Ministro Nilson Naves, não devem prosperar as alegações de não-recepção da Medida Provisória de 2001, uma vez que presente alguma antinomia com a Carta Magna, dever-se-ia reconhecer a inconstitucionalidade da Medida. Ainda em seu voto, destaca os retro citados acórdãos do TCU pela constitucionalidade da Medida Provisória 2.215-10/01 e frisa a presença da norma de transição, que não deve ter sua eficácia negada.

Conforme do voto do Ministro Paulo Galloti: "A redação do art. 31 da MP nº 2.215/2001 deixa clara a intenção do legislador de assegurar ao militar o direito à manutenção dos benefícios previstos na Lei nº 3.675/1960, dentre os quais se inclui o pensionamento das filhas maiores de 21 anos".

Finalmente, o Ministro Hamilton Carvalhido reitera o entendimento acerca da norma de transição, votando pela sua legalidade e vai além, ensinando que a invocação da igualdade entre os sexos, conduziria ao reconhecimento do direito aos excluídos e não o contrário, ou seja, para fazer valer o comando constitucional da igualdade, dever-se-ia garantir o benefício aos beneficiários maiores do sexo masculino em vez de excluir os do sexo feminino.

Com relação à ordem de prioridades da concessão da pensão, deve-se, sob a nova ótica constitucional, priorizar a família socioafetiva, à luz da dignidade da pessoa humana, com destaque para a função social da família, consagrando a igualdade absoluta entre os cônjuges (art. 226, §5º) e os filhos (art. 227, §6º).

O principal ponto da interpretação e aplicação do Direito de família é o princípio da dignidade humana, que deve ser usado em sua plenitude para resolver as questões pragmáticas que permeiam as relações familiares. Mais ainda, o princípio da dignidade da pessoa humana é o alicerce de um novo Direito de Famíla, pois a família passa a realizar os objetivos idealizados por cada membro, que passa a ser reconhecido na sociedade, gozando a partir de então de proteção constitucional.

A Constituição de 1988 reconhece especificamente a igualdade entre filhos havidos dentro ou fora da relação do casamento, por adoção, não se admitindo qualquer tipo de discriminação entre ambos, conforme o artigo 227, § 6°. Obedecendo o comando constitucional, não se pode admitir distinção entre os filhos legítimos, naturais ou adotivos, quanto ao nome, direito a alimentos, sucessão, pensionamento, bem como às regras do poder familiar.

A Constituição consagra a solidariedade familiar, que não pode ser pensada somente no âmbito do pagamento de alimentos ou no âmbito patrimonial, mas sim de forma afetiva e psicológica, uma vez que ela se faz necessária nos relacionamentos pessoais. Implica também em respeito e consideração mútua em relação aos membros da família.

De acordo com a lição de Cristiano Chaves de Farias, "Eleito como princípio fundamental da República, a dignidade da pessoa humana, de forma revolucionária, veio a se coadunar com a nova feição da família, passando a garantir proteção de forma igualitária todos os seus membros e descendentes".


3. EVOLUÇÃO DA ARQUITETURA FAMILIAR E A PENSÃO MILITAR NO ÂMBITO DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

A família constitui o grupamento de raça, caracteres e gêneros semelhantes, resultado da afinidade de gênios, representando gerericamente uma reunião de espécimes dentro da mesma organização social. Juridicamente, todavia, a família emana, de maneira simplista, da união de dois seres que se elegem para uma vida em comum, através de um contrato, dando origem à própria prole ou agregando outros indivíduos ao núcleo familiar pelo instituto da adoção.

O homem, dotado de maneira inata de um instinto gregário - por exigência da própria preservação da vida - viu-se, desde os primórdios da civilização, conduzido à necessidade da cooperação recíproca, a fim de sobreviver em face das circunstâncias naturais de cada fase de seu desenvolvimento: "Formando os primitivos agrupamentos em semibarbárie, nasceram os pródromos das eleições afetivas, da defesa dos dependentes e submissos, surgindo os lampejos da aglutinação familial" [07].

De acordo com lição de Cristiano Chaves de Farias , "a família na história dos agrupamentos humanos, é o que precede a todos os demais, como fenômeno biológico e como fenômeno social, motivo pelo qual é preciso compreendê-la por diferentes ângulos (perspectivas científicas), numa espécie de paleontologia social".

A palavra "família" deriva do termo em latim "famulus", que por sua vez quer dizer "escravo doméstico". Este termo foi criado na Roma Antiga de modo a designar um novo grupo social, que surgiu entre tribos latinas, ao serem introduzidas à agricultura e também à escravidão legalizada.

No direito romano, a família baseava-se no princípio da autoridade, onde o pater famílias exercia sobre os filhos direito de vida e de morte (ius vitae ac necis), prevalecendo um modelo transpessoal, hierarquizado e patriarcal. No patriarcado romano, o pai, além de encarnar a lei e a autoridade, era investido de um poder quase divino. Baseado em tal poder, ao patriarca era permitido vender os filhos, impor-lhes castigos, penas morais e corporais e até mesmo por fim às suas vidas.

Outra característica marcante da família romana, era a exclusiva administração do patrimônio pelo pater. Somente em uma fase mais evoluída do direito romano surgiram os patrimônios individuais, como os pecúlios, administrados por pessoas que estavam sob a autoridade do líder familiar. Com o tempo, a severidade das regras foi atenuada, de modo que as necessidades militares estimularam a criação de patrimônio independente para os filhos [08].

Com a ascenção da Igreja e a aceitação do cristianismo pelo imperador Constantino, durante o século IV, mudam-se os paradigmas da organização familiar, passando esta a ostentar um caráter cristão, onde predominam valores de ordem moral. Aos poucos foi então a família romana evoluindo no sentido de se restringir progressivamente a autoridade do pater, dando-se maior autonomia à mulher e aos filhos, passando estes a administrar os pecúlios castrenses (vencimentos militares) [09].

As relações familiares na Idade Média passaram a ser regidas exclusivamente pelo direito canônico, que reconhecia apenas o casamento religioso, sendo este um vínculo indissolúvel. Além das regras romanas, as regras de origem germânica passaram a ter muita influência no que tange ao pátrio poder e às relações patrimoniais entre os cônjuges.

Segundo Carlos Roberto Gonçalves, a família brasileira, com sua estrutura atual, sofreu influência da família romana, da família canônica e da família germânica. O Código Civil de 1916 reconhecia apenas a família matrimonial com um modelo patriarcal e hierarquizado, patrimonialista e heterossexual, atribuindo as funções do homem e da mulher e determinando regras de conduta para cada um.

Durante essa época predominava a atividade rural familiar, transformando a família em uma "unidade de produção", de modo que quanto mais filhos, maior a força de trabalho aumentando as condições de sobrevivência, importando menos os laços afetivos. Essa forma estruturada visava ao aumento do patrimônio e sua transmissão aos herdeiros. Reflexo da família romana, a administração familiar e patrimonial ficava sobre a exclusiva autoridade do homem, que determinava o destino de todas as pessoas a ele subordinadas. À mulher cabia apenas o papel de esposa e mãe, ficando inteiramente à margem da direção familiar.

A constituição de 1988, veio dar novos contornos aos conceitos que foram sendo incorporados paulatinamente à sociedade e aos núcleos familiares, absorvendo as transformações sociais e conferindo novos valores jurídicos a tais relações.

De acordo com o valioso ensinamento de TEPEDINO (2004), a preocupação central de nosso tempo é com "a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social" [10].

A Constituição de 1988 estabelece diretrizes condizentes com o princípio da afetividade, passando a família a adotar o modelo eudemonista (doutrina segundo a qual a felicidade é o objeto maior de realização da vida humana). Busca-se assim a promoção da dignidade de cada um de seus membros, funcionando como um pilar de sustentação para o alcance da felicidade e desenvolvimento plenos.

O tratamento dispensado pelo Direito de Família atual aos novos modelos de família, está disciplinado pelos artigos 226 a 230 da Constituição Federal de 1988, desdobrando-se nos seguintes princípios protetivos: da pluralidade, ou multiplicidade da nova Família Constitucional (art. 266, §§ 3º e 4º), ; da isonomia entre homem e mulher, conferindo direitos e obrigações recíprocos (art. 266, § 5º); da igualdade entre filhos, sendo vedada qualquer tipo de discriminação entre filhos havidos dentro ou fora do casamento, ou ainda adotados (art. 227, § 6º); da facilitação da dissolução do casamento; da paternidade responsável e planejamento familiar (art. 227).

Observa-se que todos os princípios são forjados primordialmente no princípio maior da Dignidade da Pessoa Humana, modificando a concepção que reconhecia a família somente centrada no casamento e adotando o conceito de que a família é o gérmem para o desenvolvimento dos caracteres morais mais nobres do ser humano, como a solidariedade, a ajuda recíproca, a troca enriquecedora e os laços afetivos. Um verdadeiro "LAR": Lugar de Afeto e Respeito [11].

A pensão militar, no Brasil, sempre foi atrelada intimamente à estrutura famíliar, e baseada nos princípios da solidariedade e necessidade. O Estado confere, através do benefício, a assistência à família do militar ausente. Desta forma, os regulamentos fixadores das regras para concessão do benefício, habilitação de dependentes etc. devem amoldar-se de forma dinâmica à família, mormente frente às transformações de cunho social ocorridas a partir da Constituição de 1988. O fracasso do legislador em atualizar a legislação aos contornos dinâmicos da família, reflete não só um retrocesso social, mas propicia celeuma no seio familiar e muitas vezes cria rivalidade e intolerância entre seus membros.

Como exemplo da necessidade de adequação da legislação militar ao modelo familiar contemporâneo, podemos citar descompassos como a adição de cotas-partes de filhas maiores de idade e capazes ao benefício de suas mães e a falta de igualdade entre filhas concebidas no matrimônio e fora deste, no que tange à incorporação de cotas-partes.

Outro problema gerado pela evolução da estrutura familiar, com relação às pensões, é a inserção da mulher no mercado de trabalho e a igualdade entre sexos adotada pela Constituição de 1988. Hoje, as filhas maiores e capazes dos atuais militares não mais fazem jus à pensão vitalícia, o que reflete a adequação legislativa às mudanças sociais. Todavia, àqueles militares que estavam ativos quando da extinção do benefício, foi editada regra de transição, mantendo os benefícios às filhas maiores e capazes.

A diferenciação entre sexos pode causar estranheza em um primeiro momento, mas torna-se natural quando se analiza a "família militar" em uma perspectiva histórica, permeada pela Ditadura Militar em períodos de exacerbado conservadorismo e repressão.

Na família vigente antes da constituição de 1988, principalmente uma família militar, o chefe de família passava dias, semanas ou até meses ausente - prestando serviço nos quartéis ou em missões e viagens oficiais. Desta forma incumbia à matriarca a mantença do lar, com os recursos enviados pelo militar, bem como a criação dos filhos, que ficavam sob sua dependência na ausência do pai, conforme art. 380 do Código Civil de 1916: "Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade. (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 27.8.1962)"

Com as restrições da inserção da mulher no mercado de trabalho, às filhas solteiras competia auxiliar suas mães nas tarefas do lar, mesmo enquanto maiores. Não lhes era dada autonomia na gerência dos bens do casal, tampouco autonomia para o trabalho, vivendo sob o jugo de sua mãe até a morte desta ou até o matrimônio, quando o marido passava a prover suas necessidades e sustento.

Diante de tais fatos, o legislador pátrio criou dispositivos incumbidos de suprir tais deficiências, deferindo benefícios custeados pelos cofres públicos, como se observa na Lei nº 3.373, de 12.03.1958, que dispõe sobre o "Plano de Assistência ao Funcionário e sua Família", que estabelecia no parágrafo único do art. 5º, que a "filha solteira, maior de 21 (vinte e um) anos, só perderá a pensão temporária quando ocupante de cargo público permanente". Da mesma maneira, a Lei nº 3.765, de 04.05.1960, regulando as pensões militares, passou a conceder ao estamento militar, tal benefício.

Conclui-se assim que a legislação - tanto no âmbito do Direito de Família, como no âmbito da Pensão Militar - tem sido incapaz de adequar-se precisamente às mudanças rápidas e sucessivas da estrutura familiar, uma vez que esta apresenta um dinamismo contínuo, vinculado à própria evolução moral, cultural e tecnológica da sociedade, cabendo ao intérprete, mais que nunca, suprir tais deficiências considerando todos os matizes históricos, teleológicos e sociais das leis pertinentes ao tema.


4. DISPOSITIVOS LEGAIS APLICÁVEIS À PENSÃO MILITAR: EVOLUÇÃO HISTÓRICO-DOGMÁTICA

As origens da pensão militar, no Brasil, remontam ao Século XVIII, quando criado o Plano de Montepio Militar dos Oficiais do Corpo da Marinha, em 23 de setembro de 1795. Este documento foi o primeiro ensaio no sentido de assegurar à família do militar falecido assistência condigna e compatível com o ambiente social em que vivia. Portanto, o advento da pensão militar tem uma historicidade que antecede mesmo ao movimento previdenciário no Brasil, cuja origem é atribuída à Lei Eloy Chaves de 1923 [12].

Um dos atuais problemas encontrados pelos operadores do direito é a interpretação e integração das inúmeras leis que versam sobre a pensão militar. Vítima de impropriedades técnicas, derivadas de inúmeras derrogações e emendas, os textos atuais ainda apresentam patente falta de clareza, induzindo o intérprete, muitas vezes, a uma exegese equivocada.

A principal lei que versa, especificamente, sobre as Pensões Militares é a Lei 3.765, de 04 de maio de 1960. Tal lei dispõe sobre as contribuições e contribuintes da pensão militar, beneficiários, ordem de vocação e condições para a habilitação e por fim traz dispositivos sobre a perda e reversão da pensão militar.

Em 23 de dezembro de 1971 foi publicada a Lei 5.774 – Estatuto dos Militares – que serviu durante bastante tempo como fonte normativa das pesões militares, sendo revogada pela Lei 6.880, de 08 de dezembro de 1980, que manteve em vigor (art. 156) os arts. 76 a 78 da Lei 5.774 até o advento da nova Lei de Pensões Militares.

A Lei 8.216, de 13 de agosto de 1991 introduziu mudanças significativas na ordem de vocação para a pensão militar, equiparando na primeira ordem de prioridades a viúva ou viúvo; companheira ou companheiro; filhas solteiras e filhos menores de 21 anos ou, quando estudantes, menores de 24 anos. Percebe-se que o legislador, atento às mudanças de cunho social implementadas após o advento da Constituição de 1988, introduziu beneficiários ausentes nas leis anteriores, como o viúvo, a companheira e companheiro e passou a considerar beneficiárias apenas as filhas solteiras, bem como estendeu o benefício aos filhos até 21 anos ou 24 anos, se estudantes.

Embora tenham sido implementadas mudanças importantes, a Lei 8.126/91 teve seu artigo 29 (que cuidava da ordem de prioridades da pensão militar) declarado inconstitucional pelo STF através da ADI 574. Apontou-se a inconstitucionalidade formal do dispositivo, pois, após emenda, não retornou à outra casa para reapreciação. Pouco tempo depois, a Lei 8.237, de 30 de setembro de 1991, introduziu outras modificações sobre a pesão militar, mas voltou-se a aplicar a ordem de prioridades da Lei 5.774/71, de acordo como o comando do art. 156 da Lei 6.880/90.

Finalmente, com o advento da Medida Provisória 2.215-10, de 31 de agosto de 2001, resolveram-se parte dos problemas advindos da multiplicidade legislativa atinente às pensões militares.

A citada MP vigora até hoje por força do disposto no art. 2º. da EC 32/01, ou seja, continuará em vigor até que medida provisória ulterior a revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.

A MP 2.215-10/01 dispõe sobre a reestruturação da remuneração dos militares das Forças Armadas, altera as Leis nº 3.765, de 4 de maio de 1960, e 6.880, de 9 de dezembro de 1980, e dá outras providências, principalmente criando regra de transição acerca da concessão da pensão às filhas maiores e capazes dos militares, bem como a manutenção de outros benefícios específicos da Lei 3.765/60.

A aludida MP ab-rogou a Lei 5.774/71 ao revogar expressamente o art. 156 e 160 da Lei 6.880/80, bem como ab-rogou a Lei 8.237/91, reduzindo o rol de diplomas legais aplicáveis à matéria, facilitando assim a exegese do operador do direito.

Desta forma, os diplomas que serão aplicados à pensão militar serão a Medida Provisória 2.215-10/01 e a Lei 3.765/60, com as modificações introduzidas pela MP.

As principais inovações da MP foram: a) alteração da ordem de vocação de beneficiários à pensão militar, equiparando cônjuge, companheiro, ex-cônjuge e ex-companheiros pensionados, filhos e menor sob guarda até 21 anos ou 24 anos, se estudantes, ou inválidos, enquanto durar a invalidez, todos na primeira ordem de vocação; b) repartição do benefício em partes iguais entre cônjuge ou companheiro e ex-cônjuge ou ex-companheiro, e existindo filhos, repartição de metade para estes e metade para cônjuge ou companheiro e ex-cônjuge ou ex-companheiro; c) a manutenção dos benefícios da Lei 3.765/60 para aqueles militares que optarem por contribuir com 1,5% do soldo mensalmente até 29 de dezembro de 2000.

O principal benefício da Lei 3.765/60, mantido pela contribuição específica, é a manutenção da pensão militar aos benefíciários descritos no antigo art. 7º. da referida lei, mais especificamente às filhas maiores de 21 anos e capazes, que com o advento da MP foram excluídas como beneficiárias da pensão militar.

Tal adaptação faz valer o princípio da isonomia entre homens e mulheres, o que cada vez mais torna-se realidade na sociedade contemporânea, mas a supressão de quaisquer direitos de ordem social deve ser gradativa, de modo que a regra de transição ainda manteve, de forma justa, o pensionamento paras as filhas maiores dos militares que contribuíram à época para ter o benefício mantido.

Um aspecto relevante a ser abordado é a Lei 10.486, de 04 de julho de 2002, que dispõe sobre a remuneração dos militares do Distrito Federal e dá outras providências. A importância da análise desta lei é que os militares do DF, até a edição desta norma, foram regidos pela Lei 3.765/60, em paridade de condições com os militares das forças armadas. Assim, a Lei 10.486/02, reproduziu em grande parte a MP 2.215-10/01, mas foi além, introduzindo inovações desejáveis na ótica do direito contemporâneo.

Duas importantes inovações trazidas pela Lei 10.486/02, dentro do contexto da pensão militar é o disposto em seu art. 39, §§ 1º e 3º. O § 1º estabelece que o rateio entre beneficiários da mesma ordem de prioridades será feito de maneira equânime entre eles, repetindo norma presente no art. 77 da Lei 8.213/91 – Lei do Regime Geral de Previdência. O § 3º estabelece inovação que tem sido objeto de decisões recentes de nossos tribunais, que é a manutenção da pensão alimentícia paga ao ex-cônjuge ou ex-companheiro, evitando que com a morte do instituidor do benefício, aqueles venham a sofrer enriquecimento sem causa, privando os entes mais próximos do benefício que já integrava seu padrão de vida.

Até a presente data a Medida Provisória 2.215-10/01 não foi convertida em Lei pelo Legislativo, vigorando indefinidamente, o que reflete a omissão do poder Legislativo no que concerne o tema da Pensão Militar, que sempre careceu de cuidado e melhor técnica legislativa.


5. ANÁLISE DA ORDEM DE VOCAÇÃO DOS BENEFICIÁRIOS DA PENSÃO MILITAR

Pode-se dizer que a análise da ordem de vocação da pensão militar é tarefa altamente complexa e controvertida, dado o número de diplomas legais que tratam do assunto, bem como o alto número de dispositivos revogados e repristinados, e ainda a intepretação conforme a constituição que deve-se fazer a alguns artigos editados antes da Carta de 1988.

A concessão da pensão militar é devida pela ocorrência do evento morte do militar, independentemente se este estava na atividade ou reformado, obedecendo ao disposto no art. 71 da Lei 6.880/80. O processo de habilitação à pensão militar tem como base a declaração de beneficiários preenchida em vida pelo contribuinte, de acordo com a regra do art. 71, §3º. da Lei 6.880/80, na ordem de prioridade e condições definidas especificamente no art. 7º da Lei 3.765/60, modificado pela MP 2.215-10/01, observado o disposto pelo art. 72 da retrocitada Lei de 1980.

Antes da edição da Medida Provisória 2.215-10/01, o art. 72 da Lei 6.880/80 era combinado com o art. 156 da mesma lei, que remetia aos arts. 76 a 78 da Lei 5.774, de 23 de dezembro de 1971, considerando-os vigentes, embora a norma já estivesse revogada. Estes artigos definiam a ordem de prioridades e condições para a concessão da pensão militar.

A Lei 5.774/71 estabelecia uma única ordem de prioridades, dividida em 6 classes, repetindo, com pequenas alterações, a ordem da Lei 3.765/60, sendo forçoso ressaltar que tais disposições foram editadas na égide da Constituição de 1967, com a redação dada pela EC nº. 01/69.

Ambas as Leis, 3.765/60 e 5.774/71, faziam referência exclusiva à viúva, que ocupava sozinha a primeira classe da ordem de vocação, seguida pelos filhos de qualquer condição, exclusive os maiores do sexo masculino, que não fossem interditos ou inválidos, classe em que se enquadravam as filhas maiores e capazes dos militares.

Com a revogação expressa do art. 156 da Lei 6.880/80, restou aplicável à espécie, a ordem de vocação estabelecida pela Medida Provisória de 2001, que adequou a lista de beneficiários à norma constitucional ora vigente (art. 226 e §§; CF), corrigindo distorções, com a introdução do termo cônjuge em substituição ao termo viúva, bem como a introdução do companheiro, a indistinção entre beneficiários do sexo masculino e feminino e finalmente, o enquadramento dos filhos e menores sob guarda na primeira ordem de prioridades.

Desta forma, cabe, no presente trabalho, a análise do art. 7º. da Lei 3.765/60, com a redação dada pela MP 2.215-10/01, bem como do revogado art. 7º. da mesma Lei, uma vez que tem sido aplicado – de maneira equivocada ao nosso entender - até hoje por força do art. 31 da referida MP.

Conforme exposto anteriormente, a ordem de vocação da Lei 3.765/60 contemplava em seu art. 7º as seguintes classes de prioridades: a) a viúva; b) os filhos de qualquer condição, exclusive os maiores do sexo masculino, que não sejam interditos ou inválidos; c) os netos, órfãos de pai e mãe, nas condições estipuladas para os filhos; d) a mãe viúva, solteira ou desquitada, e o pai inválido ou interdito; e) as irmãs germanas e consangüíneas, solteiras, viúvas ou desquitadas, bem como os irmãos menores mantidos pelo contribuinte, ou maiores interditos ou inválidos; f) o beneficiário instituído, desde que viva na dependência do militar e não seja do sexo masculino e maior de 21 (vinte e um) anos, salvo se for interdito ou inválido permanentemente.

A nova ordem de vocação, conforme a redação dada ao art. 7º pela MP 2.215-10/01, elenca 3 ordens de prioridade: I) Primeira ordem – contendo 5 classes, onde há concorrência entre os beneficiários: a) cônjuge; b) companheiro ou companheira designada ou que comprove união estável como entidade familiar; c) pessoa desquitada, separada judicialmente, divorciada do instituidor ou a ex-convivente, desde que percebam pensão alimentícia; d) filhos ou enteados até vinte e um anos de idade ou até vinte e quatro anos de idade, se estudantes universitários ou, se inválidos, enquanto durar a invalidez; e) menor sob guarda ou tutela até vinte e um anos de idade ou, se estudante universitário, até vinte e quatro anos de idade ou, se inválido, enquanto durar a invalidez; II) Segunda ordem – classe única, deferindo-se a pensão igualmente entre os beneficiários: a mãe e o pai que comprovem dependência econômica do militar; III) Terceira ordem – contendo 2 classes – a lei é omissa no que tange ao rateio em caso de mais de um beneficiário: a) o irmão órfão, até vinte e um anos de idade ou, se estudante universitário, até vinte e quatro anos de idade, e o inválido, enquanto durar a invalidez, comprovada a dependência econômica do militar; b) a pessoa designada, até vinte e um anos de idade, se inválida, enquanto durar a invalidez, ou maior de sessenta anos de idade, que vivam na dependência econômica do militar.

A maioria dos tribunais do país, conforme observa-se na jurisprudência, entende que os "benefícios" mantidos pelo art. 31 da MP 2.215-10/01 compreendem, principalmente, a lista de beneficiários arrolados no revogado art. 7º da Lei de 1960, de maneira que houve, para estes, a manutenção da pensão militar pela referida regra de transição, mediante contribuição de 1,5% do soldo do militar instituidor. Este é também o entendimento adotado pela administração pública.

Tal solução está em perfeita sintonia com o entendimento de que certos direitos e garantias considerados fundamentais (dentre eles os sociais) devem, quando da hipótese excepcional de sua supressão, sofrer um processo gradativo de retirada.

O problema reside na ordem de vocação a ser aplicada a tais beneficiários, resguardados pelo art. 31 da MP. Deverá ser aquele do primitivo art. 7º da Lei 3765/60 – revogado pela MP 2.215-10/01? Ou dever-se-á aplicar a nova ordem de prioridades da aludida Medida Provisória, que efetivamente deu nova redação ao art. 7º da Lei de 1960?

Assevera-se aqui que no conflito aparente de normas, onde fica a critério da administração, bem como do judiciário, definir quais sejam os benefícios mantidos pela referida Medida Provisória, devem os órgãos judiciários interpretar sempre a lei em consonância com a ordem Constitucional vigente.

O primeiro problema em aplicar o revogado art. 7º da Lei 3.765/60, é a falta de previsão ao pensionamento de beneficiários protegidos constitucionalmente pelo Estado, como o cônjuge varão (viúvo, ou ex-marido) e o companheiro ou companheira.

Outro problema ao aplicar a ordem de prioridades de 1960 reside no fato de não haver tratamento equiparado entre familiares onde os fundamentos da necessidade e solidariedade são exatamente iguais, como os filhos (incluido as filhas maiores) frente à viúva (ou ex-mulher), contrariando assim o comando Constitucional presente no art. 226 da CF em seu §4º que define a entidade familiar como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, conferindo proteção estatal a todos estes tutelados.

A outro giro, aplicando-se o art. 7º com a redação dada pela MP 2.215-10/01, sana-se questões concernentes à família constitucional mas esbarra-se na supressão arbitrária das filhas maiores ao direito de perceber o benefício, pois não estão mais elencadas no rol da referida MP.

A melhor solução reside na integração dos dispositivos, buscando o rol de beneficiários na Lei 3.765/60 original, fazendo valer a regra de transição do art. 31 da MP 2.215-10/01 (manutenção de benefícios da Lei 3.765), e enquadrando tais beneficiários à ordem prevista pela nova redação do art. 7º dada pela MP.

Adotando-se a solução proposta, as filhas maiores e capazes dos militares seriam habilitadas na primeira ordem de prioridades, em concorrência com o cônjuge, companheiro, ex-cônjuge ou ex-companheiro, em conformidade com o §3º. do art. 7º da Lei 3.765/60, modificado pela MP 2.215-10/01.

De forma objetiva, o que se tem é que o legislador tentou sucessivas vezes corrigir a ordem de vocação, incluindo os filhos na primeira classe. No entanto, no decorrer de três décadas nada foi feito. No início dos anos noventa, as tentativas foram frustradas. Somente, recentemente, em 2001 através de MP, o Executivo e não o Legislativo dispôs uma nova ordem de prioridades, incluindo os filhos na primeira ordem.


6. LEGALIDADE DA CONCESSÃO AB INITIO DA COTA-PARTE DAS FILHAS MAIORES E CAPAZES

Após a edição da Medida Provisória 2.215-10/01, as filhas maiores e capazes de militares não fazem mais jus ao benefício da pensão militar, adaptando o legislador, a norma, às mudanças sociais ocorridas a partir da edição da Constituição de 1988 até os dias atuais.

Todavia, atento às garantias fundamentais resguardadas pela Carta Magna, o Poder Executivo, ao suprimir tal benefício, implementou norma de transição que garantiu àqueles que fossem militares na data da edição da MP, optar por manter o pensionamento das filhas maiores e capazes, até 29 de dezembro de 2000, mediante contribuição de 1,5% do soldo.

O cerne da discussão proposta pelo presente trabalho, reside na adição da cota-parte das filhas à metade de suas mães, ocorrendo a reversão da cota-parte apenas com a morte da genitora, conforme art. 9º, §3º da Lei 3.765/60, que dispõe da seguinte forma: "Se houver, também, filhos do contribuinte com a viúva ou fora do matrimônio reconhecidos estes na forma da Lei nº 883, de 21 de outubro de 1949 metade da pensão será dividida entre todos os filhos, adicionando-se à metade da viúva as cotas-partes dos seus filhos."

A administração pública federal, fazendo interpretação literal do dispositivo, insiste em indeferir a pensão às filhas maiores e capazes dos militares, adicionando as cotas-partes às cotas de suas mães. De forma distinta, a administração entende que as filhas de militares do Distrito Federal devem perceber o benefício desde o evento morte do instituidor, dando aplicação distinta ao retro-citado parágrafo. Quanto aos tribunais, seja em primeira instância, segunda instância ou nas instâncias superiores, as decisões proferidas são bastante divergentes, sendo raro encontrar fundamentações harmônicas, mesmo em decisões semelhantes.

O aludido dispositivo merece assim especial atenção, devendo o intérprete aplicá-lo à luz das mudanças sociais ocorridas desde a data de sua edição (1960), haja vista transcorridos mais de 50 anos.

Frente às divergências de interpretação da Lei, dentro de um contexto social totalmente distindo daquele existente à época de sua edição, imperioso se faz afastar a interpretação literal do dispositivo, dando nova perspectiva ao citado parágraafo através do método teleológico. O citado método consite na interpretação realizada tendo em vista a ratio legis ou intento legis, isto é, conforme a intenção da lei. Busca-se entender a finalidade para a qual a norma foi editada, isto é, a razão de ser da norma, dentro do panorama contemporâneo do Direito. A "ratio legis" não se confunde com o ratio legislatores (vontade do legislador). Podem até coexistir, mas no confronto vale a intenção da lei, haja vista que a vontade do legislador de 1960, por exemplo, não será a mesma vontade do legislador de 2010.

Perquirindo-se a vontade da Lei ao adicionar a cota-parte dos filhos à de suas mães, chega-se de plano à conclusão de que tal dispositivo teria como finalidade conferir a administração da pensão, devida ao filho menor, à sua genitora, o que estaria em harmonia com o art. art. 1.689, II do Código Civil: "O pai e a mãe, enquanto no exercício do poder familiar têm a administração dos bens dos filhos menores sob sua autoridade". Sendo assim, nada justifica que, cessado o poder familiar com a maioridade, de acordo com o art. 1.635, III do mesmo Diploma Legal, mantenha-se a cota-parte das filhas incorporada à cota de sua genitora, uma vez que, maiores de idade e capazes, as filhas dos militares encontram-se na plena administração de seus bens.

Observe-se que a controvérsia acerca da administração da pensão das filhas maiores encontra solução no art. 23, I da própria Lei 3.765/60, que dispõe: "Perderá o direito à pensão militar o beneficiário que: venha a ser destituído do pátrio poder, no tocante às quotas-partes dos filhos, as quais serão revertidas para estes filhos".

Desta forma, caso a filha do militar seja menor na data do seu falecimento, terá sua pensão incorporada à cota de sua genitora – o que aconteceria, independente de comando específica, uma vez que o Código Civil confere aos pais tal responsabilidade, como descrito anteriormente. No caso das filhas maiores na data do falecimento do militar, deve-se habilita-las de maneira originária, em concorrência com sua mãe, uma vez estarem equiparadas na ordem de prioridades definida na MP 2.215-10/01, e não haver justificativa para submetê-las a um poder familiar inexistente, causando uma sujeição e hierarquização familiar odiosa e indesejável para a família constitucional contemporânea, onde deve-se observar a igualdade entre seus integrantes, principalmente os pais e filhos maiores. Deve-se salientar que igual posição foi deferida às filhas maiores de militares do DF, no âmbito do processo nº. 11.622/08 (Decisão 7.795/2008), prolatada pelo TCDF e ratificada pelo MPjTCDF [13].

Constata-se que a adição da cota-parte da filha à parte de sua mãe é condicionada à menoridade, ou seja, extinto o poder familiar com a maioridade, cai por terra o direito subjetivo da genitora de administrar os bens das filhas, agora maiores, devendo-se transferir a estes a cota que lhes cabe, pela manutenção do benefício proporcionado pelo desconto de 1,5% (um e meio por cento) conforme regra da aludida MP.

Interpretando-se diferentemente o dispositivo que dispõe sobre a incorporação do benefício das filhas maiores e capazes ao benefício de suas mães, pode-se sugerir que a parte final do art. 9º, §3º da Lei 3.765/60 pressuporia hipótese de transferência legal, ou seja, aplicar-se-ia quando presente alguma das situações do artigo 23 ou 24 da Lei, para que se transfira a respectiva cota-parte do filho à sua mãe (evitando a redistribuição do benefício entre os filhos de outro leito), de modo a preservar na entidade familiar o percentual percebido anteriormente [14].

Ainda, no contexto do pensionamento do cônjuge em concorrência com as filhas, é importante analisar o caso do(a) ex-cônjuge que percebia pensão alimentícia em concorrência com filhas maiores de idade. Cada vez mais é predominante na doutrina e jurisprudência a idéia de que o credor de alimentos deve, quando da morte do instituidor do benefício, perceber o mesmo valor que recebia quando vivo o funcionário ou militar.

Esta posição baseia-se não apenas nos valores e princípios constitucionais em matéria de Família Constitucional e de Seguridade Social, mas também, e principalmente, na circunstância de que outras pessoas que mantinham vínculos efetivos e permanentes com o servidor, como os filhos, até o momento da morte, merecem maior proteção estatal do que o ex-cônjuge ou ex-companheiro [15].

Observa-se, ainda, o aspecto da manutenção da coisa julgada em matéria do juízo de família, de modo que a legislação previdenciária hodierna deve ser interpretada de molde a preservar a coisa julgada, que no caso é sujeita à cláusula rebus sic stantibus, visto que referida decisão é passível de revisão judicial, em ação autônoma, de molde a se aquilatar o binômio necessidade-possibilidade [16]. Nada justifica, assim, que o ex-cônjuge tenha seu pensionamento majorado pela morte do alimentante, fato que consubstanciaria enriquecimento sem causa por parte do alimentado, sendo vedado de forma expressa pelo Código Civil nos arts. 884 a 886 e ferindo o princípio da razoabilidade, que deve ser observado pela administração pública.

Do mesmo modo dispõe o art 39, §3º da Lei 10.486/02, que rege a remuneração dos militares do Distrito Federal, anteriormente regulada pela mesma Lei 3.765/60: "Havendo pensionista judiciária, a pensão alimentícia continuará a ser paga, de acordo com os valores estabelecidos na decisão judicial". Há no caso, inclusive, quebra do princípio da isonomia por parte do legislador, que passou a tratar de maneira diferenciada os beneficiários dos militares do DF e das Forças Armadas, regidos anteriormente pela mesma Lei, conforme o revogado art.1º da Lei 3.765/60.

Aprofundando o tema em pauta, pode-se citar ainda a manifestação da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais no sentido da manutenção dos alimentos fixados por decisão com trânsito em julgado, no âmbito de concessão das pensões militares à ex-cônjuges pensionadas, conforme a seguinte ementa:

ADMINISTRATIVO E PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO MILITAR. RATEIO ENTRE A VIÚVA E A EX-MULHER DIVORCIADA. MANUTENÇÃO DA PROPORÇÃO DEVIDA A TÍTULO DE ALIMENTOS À EX-ESPOSA. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO.

Recurso de Sentença Cível - Processo n° 2006.51.51.042109-0/01

Relator: Juiz Federal Manoel Rolim Campbell Penna

Recorrente(s): Marlene Pereira Castelo Branco

Recorrido(s): União Federal e Marly da Silva Castelo Branco

Juízo de origem: 3o Juizado Especial Federal do Rio de Janeiro

Este é o entendimento predominante do egrégio Tribunal Regional Federal da 2ª. Região:

PREVIDENCIÁRIO - PENSÃO POR MORTE - EX-ESPOSA E COMPANHEIRA - RATEIO - MANUTENÇÃO DA PROPORÇÃO DEVIDA A TÍTULO DE ALIMENTOS.

I - O rateio da pensão por morte meio a meio entre a companheira e a ex-mulher do instituidor do benefício, quando esta recebia alimentos em percentual inferior a 50%, consiste em majoração da pensão alimentícia, sem qualquer base legal que a justifique.

II - Assim, afigura-se justa a pretensão de divisão do benefício, guardando-se equivalência da cota-parte da ex-esposa com os alimentos a ela prestados, sobretudo se considerarmos que, no caso, conforme se extrai dos autos, a companheira conviveu com o segurado por aproximadamente 35 anos, dividindo com ele toda uma vida, até a data de seu falecimento.

III - Remessa necessária improvida.

(T.R.F. da 2ª Região - 2ª Turma - REO nº 333.193/RJ - rel. Des. Fed. CASTRO AGUIAR - unânime - DJU de 09/12/2003, p. 218). (grifamos)

"PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE E PENSÃO ALIMENTÍCIA FIXADA PELO JUÍZO DE FAMÍLIA – RATEIO DO BENEFÍCIO – IMPOSSIBILIDADE – COISA JULGADA. 1 - A igualdade de concorrência do ex-cônjuge alimentando, preconizada pelo § 2º do art. 76 da Lei nº 8.213/91, não deve ser entendida no sentido literal deste texto, mas sim, em seu sentido teleológico e em conformidade com os preceitos constitucionais, sob pena de malferimento à intangibilidade da coisa julgada que se forjou no Juízo de Família; o que conduz apenas a um resguardo da situação daquele que, em razão do desfazimento dos laços matrimoniais (máxime pela alteração do estado civil), deixaria de ser dependente do segurado, ficando, conseqüentemente, excluído do rol constante do art. 16 daquele Diploma Legal. 2 - A legislação previdenciária hodierna deve ser interpretada de molde a preservar a coisa julgada, que no caso é sujeita à cláusula rebus sic stantibus, visto que referida decisão é passível de revisão judicial, em ação autônoma, de molde a se aquilatar o binômio necessidade-possibilidade, conforme, inclusive, pugnava o Decreto nº 89.312/84, art. 4º, § 2º. 3 – Apelação e remessa necessária desprovidas." (TRF-2ª Região. 6ª Turma. AC 195467. Processo 9902098193/RJ. Julgamento: 03/08/2004. Publicação: 16/08/2004, p. 954. Relator Des. Fed. Poul Erik Dyrlund.) (grifamos)

Conclui-se que, quando houver concorrência entre a filha maior do militar e a ex-cônjuge pensionda - ainda que na condição de genitora daquela - deve ser mantido o percentual de pensionamento fixado no juízo de família, deferindo-se o restante do benefício à filha maior, desde a morte do instituidor, não havendo incorporação de sua cota-parte pelos motivos já expostos anteriormente.

A título de exemplo, suponhamos uma situação em que o militar, contribuinte do percentual de 1,5% de seus vencimentos para beneficiar sua filha, separado judicialmente, devedor de alimentos fixados em 35% de seus vencimentos por decisão judicial com trânsito em julgado, venha a falecer deixando da relação com sua ex-cônjuge uma filha, maior e capaz na data do óbito. Diante de tais condições, a solução mais adequada, conforme o presente estudo seria a habilitação da ex-cônjuge, mantendo-se a proporção devida em vida pelo militar , ou seja 35% da pensão militar; e a habilitação da filha maior no percentual restante, ou seja, 65% da pensão militar, deferida desde a morte do instituidor, sem a incorporação de sua cota à cota da ex-cônjuge.

Demonstra-se assim que no momento da morte do instituidor do benefício, há a consolidação de direito adquidiro por parte das filhas maiores, beneficiadas pela regra de transição, consubstanciado no direito subjetivo do militar que contribuiu em vida com 1,5% de seus vencimentos para a finalidade citada.

Em decisão de grande relevância do Superior Tribunal de Justiça, como guardião da Lei e unificador do Direito, o eminente Ministro Hamilton Carvalhido ressaltou em seu voto que: "(...) ao negar o direito da filha de receber a pensão, nega-se, também, o direito subjetivo de seu pai, que outro não era que de assegurar o pagamento da pensão post mortem à filha, induvidosa titular do direito subjetivo ao seu recebimento, a partir do óbito de seu genitor (...)". (grifamos)

O acórdão citado confirma a constitucionalidade do pensionamento, bem como a legalidade da concessão ab initio do referido benefício, afastando o condicionamento do direito em voga, ao óbito da genitora da filha maior:

Recurso especial da União. Pensão militar. Filha maior e capaz. Art. 7° da Lei n° 3.765/60. Art. 31 da Medida Provisória nº 2.215-10/01. Regra de transição. Contraprestação realizada pelo instituidor do benefício.

1. O benefício de pensão por morte de servidor militar, regulado pela Lei nº 3.765/60, foi parcialmente alterado pela Medida Provisória nº 2.215-10/01.

2. Os que eram militares na data da entrada em vigor da mencionada medida provisória adquiriram o direito de manter, no rol de beneficiários, filha maior e capaz, tal como previsto no art. 7º da Lei nº 3.765/60, desde que optassem por contribuir com mais 1,5% de sua remuneração, além dos 7,5% obrigatórios. A regra de transição entre o novo e o antigo regime de pensão militar está diretamente ligada a essa contraprestação específica.

3. Verificada, como na espécie, a contribuição realizada pelo servidor consoante o art. 31 da Medida Provisória n° 2.215-10/01, é assegurada à filha capaz maior de 21 anos a manutenção da pensão prevista na redação original da Lei n° 3.765/60, art. 7°.

4. Recursos especiais da ex-mulher e da filha, não-conhecidos, e recurso especial da União, provido.

(STJ - REsp 871269/RJ Recurso Especial 2006/0161069-7 Relatora: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA. Relator p/ Acórdão: Ministro NILSON NAVES - Órgão Julgador: 6ª TURMA. Data do Julgamento:11/12/2007 Data da Publicação: DJe 12/05/2008). (grifamos)

Em decisão monocrática no REsp 949.178 a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, citando o REsp 871269, manifestou-se pela legalidade da concessão da pensão militar às filhas maiores e capazes dos militares:

(...) "A matéria já foi objeto de exame por este Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial 871.269/RJ, tendo sido adotada a tese segundo a qual "os que eram militares na data da entrada em vigor da mencionada medida provisória adquiriram o direito de manter, no rol de beneficiários, filha maior e capaz, tal como previsto no art. 7º da Lei nº 3.765/60, desde que optassem por contribuir com mais 1,5% de sua remuneração, além dos 7,5% obrigatórios" (Rel. p/ Acórdão Min. NILSON NAVES, SEXTA TURMA, DJe 12/05/2008)." (grifamos)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pensão militar conta com certas especificidades que a distinguem dos outros modelos previdenciários. Devido à complexa legislação aplicável ao caso, certos institutos, como a ordem de deferimento – no caso de concorrência entre mãe e filha maior de 21 anos e capaz – geram patente divergência na jurisprudência, ressaltando ainda que a doutrina aplicável à espécie é escassa.

A exegese necessária à correta aplicação dos dispositivos deve não apenas levar em conta a promulgação da Constituição de 1988, mas considerar toda a evolução histórica da arquitetura familiar brasileira, bem como as mudanças legislativas que levaram à alteração das regras da ordem de vocação, bem como a extinção do benefício para as filhas dos atuais militares e a manutenção às filhas daqueles que optaram pelo benefício da regra de transição estabelecida pelo Estado.

Em que pese o princípio da igualdade entre os sexos, defende-se no presente estudo a constitucionalidade do benefício às filhas maiores e capazes dos militares, por tratar-se de ação afirmativa implantada pelo Estado de modo a suprir uma hipossuficiência histórica. Uma vez implantado, passa o benefício a ter caráter de direito social, não podendo, assim, sofrer uma supressão abrupta por violar o pricípio da vedação ao retrocesso social.

A regra de transição para aqueles que desejavam manter o direito subjetivo de pensionar suas filhas maiores, baseia-se no mais importante princípio constitucional: o da dignidade da pessoa humana. O aludido princípio deve estar presente nas relações familiares e na tutela estatal de tais relações, primando pela solidariedade e atenção integral a cada membro da nova Família Constitucional.

A legislação aplicável hoje ao caso consiste na Lei 3.765/60 e MP 2.215-10/01. Além destas, é pertinente a análise da Lei 10.486/02, por versar sobre a pensão dos militares do DF e por conter regra de transição que remete à mesma Lei de 1960 aplicada aos militares das forças armadas.

O cerne do presente estudo reside na concorrência na habilitação entre a viúva (companheira, ex-cônjuge ou ex-companheira) e a filha maior do casal. O art. 9º, §3º da Lei 3.765/60 diz neste caso que havendo filhos do casal, 50% da pensão cabe aos filhos, rateados em partes iguais, e 50% da pensão cabe a viúva, adicionando-se à metade desta a cota de seus respectivos filhos. Observa-se neste caso que os filhos de outro leito terão tratamento privilegiado, pois receberão desde o início suas cotas-partes, ferindo o disposto no art. 227, §6º da Constituição, que veda o tratamento discriminatório aos filhos. Mais ainda, não se pode conceber que a filha maior e capaz – na plena administração de seu patrimônio - tenha seu benefício administrado pela matriarca, sob pena de criar divergências irreparáveis no lar e sujeitar a filha do militar à condição degradante e incondizente com a dignidade da pessoa humana.

Propõe-se neste trabalho a concessão, desde a morte do instituidor, da cota-parte de 50% às filhas maiores e capazes dos militares que contribuíram com 1,5% de seus soldos para manter o benefício. Este é o sentido teleológico da norma, bem como constitui direito subjetivo do militar que optou por garantir a pensão à sua filha.

Tal posição encontra amparo em decisão do STJ, pareceres do TCU, bem como é a solução adotada pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal com relação às filhas dos militares do DF, regidas pela mesma Lei que as filhas dos militares das forças armadas.

Quando existir concorrência entre a filha maior do militar e a ex-cônjuge pensionda - ainda que na condição de genitora daquela - deve ser mantido o percentual de pensionamento fixado no juízo de família, deferindo-se o restante do benefício à filha maior, desde a morte do instituidor, não devendo haver incorporação da cota-parte, como demonstrado.

Conforme exposto no presente estudo, a Pensão Militar não se constitui propriamente de um sistema de repartição, em que um universo de contribuintes sustenta um universo de beneficiários. Tal posicionamento é extemporâneo à instituição da pensão militar, e gera decisões equivocadas e danosas, quando utilizado o Regime Geral de Previdência como paradigma.

Cálculos demonstram que uma contribuição anual de 6% sobre os vencimentos dos militares constituem um fundo que supre a despesa com o pagamento da pensão do militar por toda a vida de seu cônjuge e de seus filhos e, se considerarmos o desconto de 9,0% sobre a remuneração bruta (7,5% do desconto para pensão militar + 1,5% do desconto facultativo para manter o benefício às filhas maiores), o procedimento em vigor a partir de dezembro de 2000 suportaria por tempo indeterminado o pagamento da pensão aos dependentes do militar.

Cálculos realizados durante os anos de 2001 e 2002, logo após a instituição da regra de transição da MP 2.215-10/01, mostram que esse sistema será superavitário até 2036, quando ocorrerá gradativamente sua extinção, em decorrência da população de beneficiários atingir o limite previsível de sobrevida.

Desta forma, há argumentos sólidos que favorecem o entendimento de que as filhas maiores e capazes tem pleno direito à percepção da pensão vitalícia instituída pelos militares, bem como à habilitação desde a morte do militar, momento em que devem passar a receber suas cotas-partes, mesmo quando em concorrência com suas genitoras, dando-se a correta interpretação ao artigo 9º, §3º da Lei 3.765/60.


REFERÊNCIAS

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WALD, Arnoldo. O novo direito de família. 16ª.ed. São Paulo: Saraiva, 2005.


Notas

  1. ARAUJO, Luiz Alberto; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional, p. 93.
  2. Eduardo Frigoletto de Menezes. A participação da mulher no mercado de trabalho no Brasil. Disponível em: <http://www.frigoletto.com.br/GeoPop/mulher.htm>.
  3. Decisões do STF trataram do tema da proibição de retrocesso social, como as ADIs nºs 3.105-8-DF, 3.128-7-DF e ADI nº 3.104-DF, o MS nº 24.875-1-DF. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também já analisou o tema na Apelação Cível nº 70004480182, que foi objeto do RE nº 617757 para o STJ. A matéria mereceu análise também pela 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Mato Grosso do Sul – Processo nº 2003.60.84.002458-7 dentre outros julgados que analisam a questão abordada.
  • Vide informativo STF 582 - STA 175-AgR/CE. Voto do Sr. Min. Celso de Mello.
  • – "Pensão militar. Concessão inicial. Filhas maiores de 21 anos. Assegurada manutenção dos benefícios previstos na redação original da Lei 3.765/60, mediante contribuição específica dos atuais militares, consoante o artigo 31 da Medida Provisória 2.131/2000. Verificação da contribuição realizada pelo ex-militar. Legalidade. Registro." (grifamos)

    "2. A pensão concedida a filha maior de militar depende da comprovação específica prevista no art. 31 da Medida Provisória n.2.131/2000 e edições."

  • STJ - REsp 871269/RJ Recurso Especial 2006/0161069-7 Relatora: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA. Relator p/ Acórdão: Ministro NILSON NAVES - Órgão Julgador: 6ª TURMA. Data do Julgamento: 11/12/2007. Data da Publicação: DJe 12/05/2008.
  • Divaldo Pereira Franco. Estudos Espíritas. p.10.
  • Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil. Volume VI: direito de família. p.15-18.
  • Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. v.5, p26-27; Arnoldo Wald. O novo direito de família. p. 10-12.
  • Gustavo Tepedino. Temas de direito civil.p. 326.
  • Termo utilizado por Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias em "Direito de Família e o novo Código Civil". Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
  • Site oficial da Marinha do Brasil. Disponível em : <https://www.mar.mil.br/menu_v/ingresse_na_marinha/pensao.htm>.
  • "(...) as filhas do militar instituidor, menores e maiores, solteiras ou casadas, estariam na mesma ordem de prioridade da viúva, percebendo suas quotas-partes, desde o início da concessão. Sensível à argumentação do Parquet, especialmente no que respeita aos transtornos que serão causados aos órgãos jurisdicionados e à questão da segurança jurídica, acatei a sugestão de a Corte voltar a adotar os termos da Decisão nº 6.827/2007, promovendo a partilha do benefício, desde já, entre a viúva e todas as filhas, em igualdade de condições, que foi o procedimento adotado nestes autos pela Corporação." (grifamos).
  • Parece semelhante ao exposto, o pensamento descrito em acórdão do egrégio TRF da 2ª. Região na seguinte passagem: "No caso em tela, não há que se falar em reversão legal, em virtude da inexistência das hipóteses do art. 24 da citada lei, que autorizem a transferência da respectiva cota-parte da autora à viúva." Apelação Cível 398689 - Processo 2003.51.51.056541-3 – Rel. Des.Federal POUL ERIK DYRLUND – 8ª Turma Especializada - Publicação de Acórdão no DJU 14.12.2007. (grifamos).
  • Guilherme Calmon Nogueira da Gama. A constituição de 1988 e as pensões securitárias no direito brasileiro. p.147.
  • TRF-2ª Região. 6ª Turma. AC 195467. Processo 9902098193/RJ. Julgamento: 03/08/2004. Publicação: 16/08/2004, p. 954. Relator Des. Fed. Poul Erik Dyrlund.

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    MAGNO, Rodrigo Cardoso. Pensão militar: a legalidade da concessão às filhas maiores de 21 anos e capazes e a controvérsia da ordem de prioridades para seu deferimento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2732, 24 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18104. Acesso em: 26 abr. 2024.